12/08/2018
Texto elaborado por Rodrigo Lemos, geógrafo e membro do Grupo de Educação e Mobilização – GEM do Projeto Manuelzão O planejamento urbano no Brasil acontece principalmente a partir da ditadura militar para o ordenamento da cidade formal e tem, ainda nos idos de hoje, uma forte centralidade técnica, Estatal e política (MONTE-MOR, 2007: 28; CAMPOS, […]
Texto elaborado por Rodrigo Lemos, geógrafo e membro do Grupo de Educação e Mobilização – GEM do Projeto Manuelzão
O planejamento urbano no Brasil acontece principalmente a partir da ditadura militar para o ordenamento da cidade formal e tem, ainda nos idos de hoje, uma forte centralidade técnica, Estatal e política (MONTE-MOR, 2007: 28; CAMPOS, 1989: 29). Esse planejamento de origem positivista tenta apreender as formas da cidade no intuito de ordená-la segundo a racionalidade técnica e científica: esse modelo de planejamento não reconhece a cidade como produto social, como espaço geográfico com suas temporalidades e espacialidades, a cidade “é uma coisa, um objeto reprodutível. É extraída da temporalidade concreta e torna-se, no sentido etimológico, utópica, quer dizer, de lugar nenhum” (CHOAY, apud MONTE-MOR, 2007: 19 ). Essa representação de cidade não reflete o movimento contínuo que é a produção espacial urbana e as ações do lugar1: a cidade ideal afasta-se da realidade e das pessoas cotidianas. No entanto, o plano urbano deve ser, nas palavras de Ermínia Maricato (2000: 180), “a expressão democrática de nossa sociedade” extremamente desigual e conflituosa, sua formulação deve ter por base a participação de todos os sujeitos envolvidos, pois o processo de construção do planejamento pode ser mais importante que o plano em si .
Essa forma de planejamento, participativo, mais discutida que praticada, para ser coerentemente efetivada tem de visar a autonomia2 de seus participantes e a intensa colaboração da sociedade, uma vez que “planejar e gerir uma cidade não é planejar e gerir apenas ou sobretudo coisas (substrato espacial, mobiliário urbano etc.), mas sim planejar e gerir relações sociais”. (SOUZA, 2003: 178). A participação, em um processo horizontal e dialógico de debate, no qual conhecimento técnico não se sobreponha aos saberes tradicionais3, é importante para que o planejamento trabalhe lugares e realidades, ou seja, as pluralidades inerentes ao espaço social e não espaços homogeneizadores instituídos pelos detentores de poder, que se detêm antes na imagem que na essência: espaços que Henri Lefebvre definiu como abstratos (SERPA,2004 :24; COSTA, 2007:17).
Esse planejamento, descentralizado e participativo, que percebe os lugares e os saberes tradicionais é perceptível na formulação da lei nº 9433, de 08 de janeiro de 1997, chamada lei das águas, que no inciso VI do artigo primeiro institui que “a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades”; da mesma forma no inciso V, define que “a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos”. A bacia hidrográfica é definida a partir desse momento como unidade territorial de planejamento e gestão, em detrimento de outras unidades político-administrativas como municípios, estados e regiões (SALDANHA, 2003: 125). Todavia, a dimensão de análise proposta incorpora uma pluralidade de poderes e interesses, muitas vezes conflitantes e incompatíveis, de forma que foi proposto um novo instrumento que por sua diversidade de protagonistas intencionava a participação e a descentralização dos poderes: os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH). Diversos comitês foram criados, entre eles o CBH Rio das Velhas ao qual era atribuída a análise de uma área que abrange 51 municípios, 29.173 km², com contribuição de 62% do PIB do Estado de Minas Gerais e uma população de aproximadamente 4,5 milhões de pessoas. (CAMARGOS, 2005:25)
Pela grande diversidade de agentes já mobilizados (principalmente pelas ações do Projeto Manuelzão) foram, pela da Deliberação Normativa (DN) 02/2004 do CBH Velhas, criados os Subcomitês de Bacia Hidrográfica [Acesse a DN que dispõe sobre os Subcomitês]. A medida é uma reafirmação da descentralização do poder, partindo do pressuposto que os SCBH permitiriam uma inserção locacional que qualificaria os debates e análises do CBH Velhas. Os SCBH seriam, segundo o artigo 1° da DN 02/2004 do CBH Velhas, “grupos consultivos e propositivos”, com atuação nas sub-bacias hidrográficas do rio das Velhas. Sua constituição, tal qual nos CBH, exige a presença de representantes da sociedade civil organizada, dos usuários de água e do poder público. “Os subcomitês poderão ser consultados sobre conflitos referentes aos recursos hídricos e, também, poderão levar ao conhecimento do CBH-Velhas e dos órgãos e entidades competentes os problemas ambientais porventura constatados em sua sub-bacia” (SEPULVEDA, 2006: 6).
Apesar das diversas dificuldades inerentes a uma articulação tão complexa como a proposta, alguns SCBH conseguiram uma crescente inserção na política, nas ações e nas intervenções em desenvolvimento no seu território de trabalho. Assim, podemos entendê-los como instrumentos de gestão participativa, da mesma forma que podemos aproximá-los dos conselhos de desenvolvimento urbano, caracterizados por Ermínia Maricato como “instâncias participativas referentes ao planejamento da cidade: definição, confecção e acompanhamento da implementação de políticas públicas e intervenção diversas, tais como planos diretores, políticas setoriais de transportes e meio ambiente, programas de urbanização de favelas etc” (2000: 359).
Como dito, a formação dos subcomitês apenas foi possível pela intensa mobilização já realizada pelo Projeto Manuelzão: diversos segmentos da sociedade civil (Organizações Não Governamentais, associações de bairro, movimentos populares, entre outros) já acompanhavam de forma marginal as ações do CBH Velhas. Os subcomitês foram criados para a participação direta desses agentes no processo decisório: o caminho se inverte, o SCBH é um espaço articulado pela sociedade civil que foi institucionalizado, não um espaço institucional com atuação comunitária.
A participação da sociedade civil impõe a necessidade de capacitação e formação para um debate efetivamente dialógico e inclusivo (BRASIL:2004: 43). É de se notar, todavia, que os conhecimentos já possuídos pelas capacitações quando núcleos Manuelzão, associados à sua intensa participação em cursos promovidos pelos poderes municipais e Estaduais e pelo CBH Velhas4 permitiram uma formação e capacitação dos membros dos SCBH, que hoje discutem e argumentam assuntos técnicos inacessíveis à grande parte da população. Dessa forma, é possível afirmar que os segmentos de participação têm capacidade de intervenção razoavelmente igualitária nos processos de decisão. Como conselhos consultivos e propositivos os SCBH consolidaram dinâmicas singulares de debates e adquiriram representações diversas por suas histórias e conformações únicas.
Atualmente, existem 12 SCBH formados e legalmente registrados:
Subcomitês criados pelo CBH-Velhas |
Municípios |
Ribeirão Arrudas | Belo Horizonte, Contagem e Sabará |
Rio Caeté/Sabará | Caeté e Sabará |
Ribeirão Macacos/Cristais/Peixes | Nova Lima, Itabirito, Rio Acima |
Rio Curimataí | Augusto de Lima, Buenópolis e Joaquim Felício |
Rio Itabirito | Itabirito e Ouro Preto |
Rio Jaboticatubas | Jaboticatubas |
Ribeirão Jequitibá | Capim Branco, Funilândia, Jequitibá, Prudente Morais e Sete Lagoas |
Ribeirão da Onça | Belo Horizonte e Contagem |
Rio Paraúna | Conceição do Mato Dentro, Congonhas do Norte, Datas, Diamantina, Gouveia, Presidente Juscelino, Presidente Kubitschek, Santana de Pirapama |
Ribeirão da Mata | Capim Branco, Confins, Esmeraldas, Lagoa Santa, Matozinhos, Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves, Santa Luzia, São José da Lapa e Vespasiano |
Rio Taquaraçu | Caeté, Nova União, Taquaraçu de Minas, Santa Luzia e Jaboticatubas |
Riachinho(Cipó) | Santana do Riacho |
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1 – O lugar é a base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitante-identidade-lugar. A cidade, por exemplo, produz-se e revela-se no plano da vida e do indivíduo. Este plano é aquele do local. As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos do uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É o espaço de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo (CARLOS, 1996:20)
2 – A partir da concepção proposta por Castoriadis, Marcelo souza propõe que “a idéia de autonomia engloba dois sentidos inter-relacionados: autonomia coletiva, ou o consciente e explícito autogoverno de uma determinada coletividade, o que depreende garantias político-institucionais, assim como uma possibilidade material efetiva, e autonomia individual, isto é, a capacidade de indivíduos particulares de realizarem escolhas em liberdade, com responsabilidade e com conhecimento de causa”. (SOUZA, 2006 :175)
3 – A proposta é um efetivo diálogo entre saber e conhecimento, no qual ambos estejam dispostos a relativizarem suas certezas, como afirma Marcelo Souza “o planejamento crítico, enquanto pesquisa científica aplicada, deve, por um lado, manter-se vigilante diante do senso comum, sempre duvidando de certezas não-questionadas; ao mesmo tempo um planejamento crítico não arrogante não pode simplesmente ignorar os saberes locais e os mundos da vida”(2006: 180)
4 – Diversos cursos são realizados anualmente, cito o exemplo do curso de capacitação para núcleos e subcomitês Arrudas e Onça que organizei pelo Projeto Manuelzão em 2008-2009, com 30 horas de duração e que envolveu temas diversos como geoprocessamento, legislação ambiental, geologia urbana, drenagem urbana, entre outros.
Bibliografia utilizada
CAMARGOS, Luiza de Marillac Moreira (coord.). Plano diretor de recursos hídricos da bacia hidrográfica do rio das Velhas: resumo executivo – dezembro 2004. Belo Horizonte: Instituto Mineiro de Gestão das Águas, Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, 2005.
CAMPOS Fo., C.M. Cidades brasileiras: seu controle ou o caos. São Paulo: Nobel, 1989.
COSTA, Geraldo Magela. Teorias sócio-espaciais: diante de um impasse? Etc…espaço, tempo e crítica, vol 1, no.2.15 de julho de 2007 (www.uff.br/etc)
MONTE-MÓR, R.L. 2007. Planejamento urbano no Brasil; emergência e consolidação. Etc…espaço, tempo e crítica, vol 1, no.1. (www.uff.br/etc)
SALDANHA, Carlos José. Recursos Hídricos e Cidadania no Brasil: Limites, Alternativas e Desafios. Ambiente & Sociedade – Vol. VI nº. 2 jul./dez. 2003.
SEPULVEDA, R. O. Sub-comitês como proposta de descentralização da gestão das águas na bacia do Rio das Velhas: o Projeto Manuelzão como fomentador. Cadernos Manuelzão. V. 1, nº 2, Belo Horizonte: Projeto Manuelzão, 2006.
SERPA, Ângelo. Espaço público e acessibilidade: notas para uma abordagem geográfica. GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 15, pp. 21 – 37, 2004.
SOUZA, M. L. 2003. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.