Andando para trás: Câmara Federal aprova PL que fragiliza ainda mais a proteção de rios urbanos - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Andando para trás: Câmara Federal aprova PL que fragiliza ainda mais a proteção de rios urbanos

17/09/2021

Aprovado em regime de urgência, projeto contorna legislação mais restritiva e deixa a cargo dos municípios a definição da faixa não edificável às margens de cursos d’água

A Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, no dia 26 de agosto, um projeto de lei (PL) que municipaliza a proteção ambiental de margens de rios em perímetro urbano. Na prática, o PL visa a redução da faixa não edificável, isto é, a área ao lado de cursos e reservatórios d’água em que é proibido construir. Essa faixa, atualmente fixada pela legislação federal em no mínimo 30 metros, é fundamental para garantir a saúde dos mananciais, reservando espaço à mata ciliar, e a absorção da água das chuvas pelo solo.

Aprovado sem a devida atenção e debate, o PL 2.510 representa um grande retrocesso, que coloca em risco os rios, as cidades e as pessoas. As faixas de proteção dos cursos d’água estão entre os principais responsáveis por evitar desastres como enchentes e deslizamento de encostas, relacionados à perda de cobertura vegetal e à consequente impermeabilização do solo, e por garantir a qualidade das águas.

A proposta teve apoio do governo federal, do setor imobiliário e da bancada ruralista e contou com 314 votos a favor e 140 contra. Por ter transitado em regime de urgência, o PL não passou pelas comissões temáticas e foi votado diretamente no Plenário da Câmara. O texto propõe que “as faixas marginais de qualquer curso d’água natural que delimitem a faixa de passagem de inundação terão sua largura determinada pelos respectivos planos diretores e leis municipais de uso do solo, ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente”.

Até abril deste ano, perdurou por décadas a dúvida sobre qual legislação deveria ser seguida na definição da margem de proteção dos cursos d’água: o Código Florestal, mais restritivo, que determina que a faixa deve ser de no mínimo 30 metros, ou a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que previa uma margem de 15 metros sem construções. A aprovação do PL, para quem acompanha a questão, está diretamente ligada à opção do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que queria colocar um ponto final na discussão com a decisão de meses atrás, pelo Código Florestal.

Rio das Velhas em Honório Bicalho, Nova Lima. Foto: CBH Velhas

Conflito normativo

Desde a década de 80, há um conflito que envolve o Código Florestal e a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, também conhecida como Lei de Uso e Ocupação do Solo, ambos federais. A lei do Código Florestal foi publicada em 1965 e, a partir dela, a proteção marginal dos rios começou a ser aplicada na área rural, com 5 metros. Depois, veio a Lei do Uso e Ocupação do Solo, que determina ao menos 15 metros de faixa não edificável. Em 1986, o CF foi reformado e passou a determinar a distância mínima de 30 metros e a ser aplicado à área urbana.

“Assim começou uma discussão jurídica, que dura até hoje, se deveria ser aplicado o Código Florestal ou a Lei de uso e ocupação do solo”, conta Leonardo Corrêa, professor de direito econômico ambiental da Faculdade de Direito da UFMG.

A decisão do STJ de abril deste ano reiterou que o Código Florestal, atual Lei 12.651/2012, que prevê área de proteção de 30 a 500 metros marginais, dependendo da largura do curso d’água, prevalece sobre a Lei de Uso e Ocupação. Era a última que vinha sendo  utilizada nos casos desse tipo. A sentença do STJ era vinculante: todos os processos similares seguiriam o mesmo critério, portanto o Código Florestal.

O problema, segundo o professor, foi que uma decisão que tinha o intuito de resolver esse conflito normativo acabou não encerrando a questão, porque o STJ não “modulou os efeitos” de seu julgamento. Corrêa explica: “a decisão de aplicar o Código Florestal, que é legítima, não definiu a partir de que marco temporal a situação geraria efeitos jurídicos”.

O PL 1.869, vinculado ao 2.510, propõe alterar o marco temporal para abril deste ano. “É complicado ter um efeito retroativo nesse caso, porque as construções até 2012 foram feitas em legalidade, receberam autorização do órgão ambiental ou da prefeitura. Existia discussão, sim, mas havia autorização”, avalia o professor. Para Corrêa, os projetos de lei são uma reação a essa questão mal resolvida.

Ribeirão Arrudas cheio e com estrutura danificada após chuvas do início de 2020, em Belo Horizonte. Imagens: CBH Velhas

Uma questão que surge com a possível aprovação do PL é a vulnerabilidade de cidades com menor estrutura de regulação e fiscalização. “O texto altera radicalmente os parâmetros atuais, dá uma liberdade muito grande para os municípios. Aqueles sem estruturas terão mais dificuldade em montar bons corpos técnicos e travar uma discussão mais qualificada”, pontua o professor.

Para ele, porém, a aprovação do PL “está longe de ser o ponto final. Certamente haverá alterações no Senado, que tem revisado bastante o que vem da Câmara. E, mesmo que o texto seja aprovado, é muito provável que seja judicializado, porque será questionada sua constitucionalidade”.

Proteção do interesse público

Na decisão do tribunal, o Ministro Benedito Gonçalves ressaltou sua importância para a coletividade: “na vigência do novo Código Florestal, a extensão não edificável nas APPs [Áreas de Preservação Permanente] de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade”.

Para Roberto Andrés, professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG e fundador da revista Piseagrama, é extamente isso que os projetos de lei ameaçam: “os motivos para alterar a proteção dos rios urbanos não dizem respeito aos interesses da coletividade. São interesses privados, do capital imobiliário, de quem quer lucrar com a cidade. Não de quem quer viver a cidade, ou da maioria da população que dela precisa”, avalia.

Andrés ressalta que o modelo de urbanização historicamente vigente no Brasil, que prioriza o crescimento de edificações e rodovias em detrimento das águas e áreas verdes, é predatório – e hoje seus efeitos são potencializados pelos eventos climáticos extremos. Os PLs 2.510 e 1.869 fortalecem esse modelo: “o preço a ser cobrado é muito alto. As tragédias são intensificadas por esse modelo de desenvolvimento que não respeita elementos básicos da vida, como as cheias dos rios e a proteção dos mananciais”, argumenta.

Córrego Acaba Mundo canalizado na Avenida Afonso Pena, em 1928. Foto: Arquivo Público Mineiro

Os PLs jogam a responsabilidade para as prefeituras e seus planos diretores e leis de uso do solo pela decisão, que pode até mesmo eliminar por completo a faixa não edificável. Todas as emendas da oposição, como garantir o mínimo de 30 metros de proteção previstos no Código Florestal e fixar o marco temporal em 2012, a última atualização da lei, foram rejeitadas.

Agora o PL vai para o Senado e, se aprovado, para sanção presidencial. Em conjunto com o PL 2.510, estão sendo analisadas outras propostas, como o PL 1.869, que já está no Senado. Nele, o ponto mais grave é a mudança no marco temporal para 2021: construções irregulares até abril deste ano estariam regularizadas, devendo apenas compensação ambiental. O marco atual é de 2008.

Progresso?

“O rio é um ser vivo, ele precisa das margens e matas ciliares para se espraiar, quando chove. O mesmo dinheiro que é gasto todo ano em obras milionárias poderia ser usado para revitalizar os rios”, aponta Jeanine Oliveira, ambientalista do Manuelzão. A perda de proteção inevitavelmente levará a mais enchentes e desastres naturais, enquanto os custos de reconstruções de vias e infraestrutura urbana poderiam ser destinados à restauração dos rios e a uma melhoria da infraestrutura urbana, como defende Jeanine.

Enquanto isso, os deputados que defendem o pacote na Câmara falam em progresso e desenvolvimento das cidades. “Construir na margem de um rio e gerar demanda por obras gigantescas na primeira chuva de verão ou desmatar áreas de nascentes não é progresso, é destruição. Chamar as coisas pelo nome faz parte do nosso papel como cidadãos. Precisamos colocar essas questões de forma a separar interesses coletivos de individuais, que é o que essa turma busca tentar confundir”, complementa Roberto Andrés.

Córrego Cercadinho, na zona oeste de BH. Foto: CBH Velhas

Andando para trás

Uma pesquisa recentemente publicada na revista acadêmica Water concluiu que os rios urbanos mundo afora perderam biodiversidade. O professor Marcos Callisto, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, que integrou da pesquisa, afirmou ao site da UFMG que “não foram encontrados projetos de completa reestruturação de rios, apenas ações insuficientes para corrigir plenamente as severas alterações”.

Segundo o professor Diego Macedo, do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG, “é essencial a soma de esforços entre governos e sociedade”. Nesse sentido, os pesquisadores propõem implantação efetiva do Código Florestal, visando à recuperação das APPs, e de saneamento total em bacias urbanas, com coleta de esgoto e de resíduos sólidos e drenagem pluvial.

Matéria de Mariana Lage

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