04/03/2021
Esse é o terceiro prazo perdido pela fundação criada para gerir ações de reparação do desastre; pessoas atingidas sentem-se cansadas e têm desistido da espera
Mais de cinco anos após o rompimento da barragem do Fundão, que, em novembro de 2015, varreu do mapa os distritos marianenses de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, famílias atingidas ainda não têm suas casas de volta nem sabem quando poderão retomar suas vidas. Isso porque a Fundação Renova atrasou, pela terceira vez, a entrega dos reassentamentos daqueles que perderam tudo para a lama. O prazo terminava no último sábado, 27 de fevereiro.
A Renova foi criada pelas mineradoras responsáveis pelo rompimento – Samarco e suas proprietárias Vale e a anglo-australiana BHP Billiton – para gerir as ações de reparação às vítimas do maior desastre ambiental do mundo envolvendo barragens. Lentidão nas ações, irregularidades na gestão e o descaso com as pessoas atingidas, contudo, renderam inúmeros questionamentos do Ministério Público e até mesmo da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as reais intenções por trás de sua criação.
O primeiro prazo para entrega das obras, apresentado pela própria Renova, foi 31 de março de 2019. O segundo, determinado pela Justiça, foi 27 de agosto de 2020. Como se não bastasse o vencimento do terceiro prazo, na última semana, as obras ainda estão longe do fim e os locais escolhidos para os reassentamentos dos dois distritos têm o aspecto de um grande canteiro de obras.
De acordo com um relatório elaborado pela assessoria técnica dos atingidos de Mariana – a Cáritas MG –, entre 2019 e 2021, mais de 60 famílias de Bento Rodrigues desistiram de esperar pelo reassentamento coletivo no “novo Bento” e buscaram outras formas para conseguir suas casas junto à Renova.
Atualmente, 209 famílias que residiam no distrito esperam pelo reassentamento coletivo, que tem apenas 5 casas concluídas e 27 em construção. As casas concluídas, no entanto, não podem ser entregues, uma vez que estão cercadas por obras de infraestrutura.
Em Paracatu de Baixo, comunidade que cresceu às margens do rio Gualaxo do Norte, das 186 famílias que devem ser reassentadas, 97 escolheram o reassentamento coletivo e também tiveram sua espera prolongada. Até o momento, nenhuma casa foi concluída.
Em outras localidades atingidas, como a comunidade de Gesteira, distrito de Barra-Longa, a construção das novas moradias anda ainda mais atrasada e está apenas no papel.
Ineficiência não surpreende
O vencimento do novo prazo para a entrega das moradias não foi nenhuma surpresa para as pessoas atingidas, como dona Marcina Drummond Melo, que residia em Paracatu de Baixo, antes da enxurrada de lama levar tudo. “Isso infelizmente já era esperado, pois Paracatu não tem uma casa de pé até hoje. A gente acha que isso ainda vai demorar mais uns dois anos”, afirmou a aposentada de 63 anos, que atualmente reside em uma moradia temporária em Mariana.
“Hoje em dia eu não gosto nem de visitar a região, sinto uma angústia muito grande. O que eu mais sinto falta é da minha plantação: tínhamos feijão, milho, mandioca, cana, abóbora, couve, tudo muito bonito e sadio. Lá, a gente gostava do mato, gostava de bater papo com os amigos, de rezar, de ir na vendinha da dona Laura comer um pastel. Era desse jeito e era bom, todo mundo era feliz”, lamentou.
Marcina é uma das atingidas que preferiu deixar para trás os laços com Paracatu de Baixo e tentar uma nova vida em Mariana, onde vive com seu marido em um imóvel alugado pela Renova. Ela ainda negocia com a fundação a compra de uma casa e um recomeço definitivo. “Resta apenas esperar. Mas a verdade é que com a Renova e a Justiça tudo acontece muito devagar, quase parando…”.
Justificativas frágeis
A Justiça determinou uma multa à Renova de R$ 1 milhão por dia de atraso, a partir do vencimento do prazo. As mineradoras recorreram da decisão alegando que os atrasos são causados pelos processos de participação das famílias nas decisões e por dificuldades devido à pandemia da covid-19. Ainda não há decisão do Tribunal quanto ao pedido das mineradoras.
Para Gladston Figueiredo, coordenador da Cáritas, as justificativas dadas para os descumprimentos são baixas e irreais. “O que vemos é o contrário do que é dito pela Renova. Falta diálogo com os atingidos e, desde a compra dos terrenos, as empresas responsáveis pelo crime sistematicamente adotam posturas que atrasam o processo. Isso causa um desânimo geral nas pessoas atingidas, principalmente as mais velhas, que hoje desconfiam se um dia terão seus lares de volta”, afirmou o coordenador.
“Um exemplo é a total insensibilidade da Renova em projetar a unidade de tratamento de esgoto do reassentamento de Bento Rodrigues muito próxima às casas, o que gerou revolta da comunidade e demorou vários meses para ser revertido, mesmo havendo melhores opções disponíveis”, completou.
MPMG quer extinção da Renova
A “ineficiência e o desvio de finalidade” da Fundação Renova levaram o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) a ajuizar, no dia 24 de fevereiro, uma ação pedindo sua extinção. Para o MPMG a fundação atua muito mais como um instrumento de limitação da responsabilidade da Samarco, Vale e BHP Billiton, do que como agente de efetiva reparação humana, social e ambiental.
O MPMG pede também que as empresas sejam condenadas à reparação dos danos materiais por crimes praticados dentro e por intermédio da fundação, com a desvirtuação dos programas de reparação acordados, além de condenação por danos morais no valor de R$10 bilhões.
A lista de irregularidades apontadas é grande. Criada em 2016, a Fundação Renova teve sua prestação de contas rejeitada por quatro anos consecutivos, ou seja, suas contas nunca foram aprovadas pelo MPMG.
O órgão identificou o pagamento de altos salários pela fundação, o que classificou como “inconsistências preocupantes”. É destacado o caso da diretora de Planejamento e Gestão, que é citada duas vezes nos registros empregatícios, com remunerações diferentes, nos valores de R$ 639.866,70 e R$ 375.600,25, totalizando uma remuneração anual superior a R$ 1 milhão.
O MPMG também ressalta na ação que a Renova veicula informações falsas em diversas propagandas nas mais diversas emissoras de televisão, rádio e sites enaltecendo os “resultados” da reparação dos danos. Para esse fim, a fundação firmou um contrato no valor de R$ 17,4 milhões com uma agência de publicidade.
“Faltam resultados, falta reparação, falta boa vontade das empresas: falta empatia e humanidade para com as pessoas atingidas. Cinco anos depois, as duas maiores empresas de mineração em todo o mundo não conseguiram reconstruir um único distrito”, conclui trecho da ação.