85% das famílias atingidas pela barragem, em Mariana, sofrem com deslocamento compulsório - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

85% das famílias atingidas pela barragem, em Mariana, sofrem com deslocamento compulsório

20/08/2022

Análise do cadastro de atingidos mostra que há comunidades inteiras deslocadas, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo

[Reportagem de Ellen Barros, com edição de Elis Almeida, para o Brasil de Fato Minas Gerais, publicada na última quarta-feira, 17 de agosto, e republicada aqui com algumas edições.]

Perda da moradia, dos modos de vida, das atividades produtivas, das relações comunitárias e de parentesco. Perda do acesso aos recursos naturais e de segurança alimentar, entre diversas outras violações, são as consequências do deslocamento compulsório causado pelo desastre-crime de responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP desde novembro de 2015.

Essa é a conclusão da análise dos dados do processo de cadastramento das pessoas atingidas de Mariana, conduzido pela Cáritas MG. A análise mostra que pelo menos 1246 famílias foram forçadas a migrar, o que corresponde a 85% do total.

Migrações das famílias atingidas de Mariana em decorrência do rompimento da barragem Fundão. Infográfico: Cáritas.

Foi assim com a família de Marino D’Angelo, atingido de Paracatu de Cima. Produtor rural, Marino e sua família possuem um modo de vida ligado à lida na roça com os animais. Hoje, ele mora numa propriedade alugada no distrito de Águas Claras, onde tenta, a duras penas, seguir produzindo.

O processo de empobrecimento da família após o rompimento da barragem é fator de intenso sofrimento. Além disso, Marino conta sobre o que considera gastos absurdos por parte da Fundação Renova/Samarco em ações que não promovem a efetiva reparação dos danos.

“Eu moro numa moradia provisória que o aluguel é quase R$ 7 mil, a Fundação Renova tem gasto muito dinheiro nessa propriedade e isso mascara a realidade”.

Maryellen Milena de Lima, do Grupo de Estudos em Temática Ambiental (Gesta) da UFMG, analisa que “a falta de autonomia colocada pela moradia por residir em casas alugadas é mais um fator de intranquilidade, o que acaba intensificando a ansiedade de ter de volta a sua casa, a vida de trabalho e o resgate do que a lama solapou”.

‘Vida provisória’ gera insegurança e sofrimento

Marino D’Ângelo fala sobre os recursos investidos em benfeitorias na moradia provisória, enquanto questões estruturais são ignoradas e sua família segue sem indenização e sem o auxílio alimentação em quantidade e qualidade adequadas para os animais. “Fazem melhorias nas propriedades alugadas, todos estes gastos feitos em torno dos atingidos não trazem efetividade nenhuma pra nossa vida. A gente fica sem ter nem o mínimo que é alimentação para os animais, sem assistência ou apoio para nossa retomada de vida. A casa aqui tá com muita goteira, não se resolve essas questões básicas, mas rasga dinheiro no terreiro e na propriedade da pessoa [locatária] que nem é atingida”.

“1246 famílias foram forçadas a migrar”

No texto, “Incerteza e agravos na vida provisória em Mariana”, publicado no museu virtual “Mariana Território Atingido”, Maryellen Lima também comenta acerca da má qualidade das habitações disponíveis em Mariana. “Há diversas moradias com problemas de infiltração, sem condições adequadas de ventilação ou mesmo de segurança, com residências alugadas em locais com risco geológico ou de inundações”, pontua a pesquisadora. Segundo o relatório da empresa Ramboll (2021), das 184 moradias temporárias vistoriadas em Mariana, 46% apresentam condições de inadequação, com situações inclusive de risco geotécnico.

A maior parte (75%) das famílias atingidas forçadas a sair de suas comunidades de origem buscaram refúgio na sede de Mariana. Ao todo, 947 famílias precisaram forçosamente enfrentar os desafios da vida na área urbana do município, muitas delas sofrendo com o preconceito e o sentimento de inadequação à vida na cidade.

“A gente fica sem ter nem o mínimo que é alimentação para os animais, sem assistência ou apoio para nossa retomada de vida”, narra Marino D’Angelo, atingido de Paracatu de Cima. Foto: Joice Valverde / Jornal A Sirene.

Tem os casos de comunidades inteiras deslocadas, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, mas também de famílias de outras 11 comunidades rurais do município (Águas Claras, Bicas, Borba, Camargos, Campinas, Monsenhor Horta, Mata do Chaves, Paracatu de Cima, Pedras, Ponte do Gama e Santa Rita Durão) que tiveram que deixar para trás a vida na roça.

“Distância de parentes e vizinhos causa grande sofrimento”

A família de Mirella Lino Sant’Ana, de Ponte do Gama, é uma dessas centenas. A jovem estudante, que na época do rompimento da barragem tinha apenas 17 anos, teve sua vida drasticamente alterada com a mudança para a cidade. “Algumas famílias da zona rural não vão voltar para a terra de origem, não vão morar novamente no local atingido pela lama, até porque, na maioria dos locais, esses imóveis atingidos ainda estão com a lama no terreno”, explica Mirella.

A experiência do deslocamento compulsório configurou para as vítimas uma ‘vida provisória’ em um espaço completamente distinto das suas comunidades de origem, constata a pesquisadora do GESTA/UFMG. Maryellen explica que “a distância entre parentes e vizinhos é causa significativa de sofrimento, pois a dissolução dos núcleos próximos representou também a ruptura das redes de reciprocidade e solidariedade, ocasionando o isolamento dos grupos familiares”.

Os encontros entre vizinhos foram dificultados pela dispersão e pelo distanciamento entre as casas alugadas para abrigar os atingidos e atingidas. Desde então, são frequentes as observações de que as pessoas ficam dias ou até meses sem se verem”. A desarticulação de redes de sociabilidade de apoio tende a ser agravada nos casos de emigração para outros municípios, situação atual de 13% das famílias atingidas de Mariana cadastradas pela Cáritas MG.

Migração para outros municípios de Minas Gerais. Infográfico: Cáritas.

Apenas 395 famílias permaneceram na zona rural, o que representa 12% das famílias. Já 15% dos núcleos familiares cadastrados pela Cáritas MG, continuam nas próprias comunidades de origem.

O atingido, morador de Ponte do Gama, se solidariza com as famílias que foram obrigadas a deixar suas comunidades para viver na cidade. “Para as pessoas que foram obrigadas a mudar, o sentimento de perda foi muito maior”.

Aos 66 anos, Zé de Félix nunca deixou sua roça. “Lá que é meu canto, lugar de eu viver minha vida tranquilo, graças a Deus”. O atingido, que trabalha como motorista do transporte escolar da sua comunidade, mostra empatia e relata o que percebe na relação com as famílias atingidas que vivem hoje na área urbana. “Eu tô tirando base por mim, eu não gostaria de morar na cidade. Se tivessem pagando uma mansão pra eu viver na cidade eu não quero. Então, o pessoal atingido da região toda tem o sofrimento por morar na cidade. As empresas estão pagando aluguel pra eles, mas eles estão sentidos de morar na cidade porque não gostam. Essa lama que foi em cima de nós, foi um desastre horrível”.

“13 comunidades rurais tiveram famílias obrigadas a deixar a vida na roça”

Viver em terra arrasada

O rejeito tóxico ainda depositado nas áreas atingidas, o isolamento comunitário, a impossibilidade de seguir com as atividades produtivas e o consequente empobrecimento são alguns dos fatores de sofrimento para muitas famílias que seguem vivendo no território de origem. Isso faz com que as famílias que permanecem em Paracatu de Baixo e nas comunidades atingidas na zona rural de Mariana vivam o que as pesquisadoras Raquel Teixeira, Andréa Zhouri e Luana Dias Motta, chamam de “deslocamento in situ”.

Êxodo rural compulsório. Infográfico: Cáritas.

No texto publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, em 2021, elas definem: “O ‘deslocamento in situ’ se refere a processos em que as pessoas permanecem no lugar, mas têm suas condições de existência significativamente alteradas, modificando sua posição social, em especial suas condições de vulnerabilidade e risco. Nessa medida, o deslocamento compulsório diz respeito não ao movimento físico em si, mas às relações a partir das quais as pessoas perdem acesso e controle de suas condições de existência e reprodução social, incluindo recursos naturais, moradia, segurança e redes de solidariedade, confiança e parentesco”.

Em Mariana, trata-se de pessoas obrigadas a viver e conviver com mudanças drásticas no território, mudanças que não escolheram, sobre as quais não têm controle e que as colocam em extrema vulnerabilidade. Essas pessoas não deixam seus lugares de origem, mas veem seus recursos e formas de vida serem minados pelas consequências do desastre-crime.

Repactuação gera ainda mais incertezas

Quase sete anos se passaram e os danos causados pelo desastre-crime das mineradoras Samarco, Vale e BHP seguem sem efetiva reparação.

Diversos acordos celebrados, como o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), conhecido como “acordão”, firmado em março de 2016, que estabeleceu 42 programas de reparação e instituiu a criação da Fundação Renova; e o TAC Gov, homologado em agosto de 2018, para definir um sistema de governança que visava incluir as pessoas atingidas, jamais foram aplicados efetivamente.

Apesar das sucessivas denúncias das pessoas atingidas e da ATI da Cáritas MG, nunca houve qualquer punição pelos descumprimentos.

Nesse cenário, surge o processo de repactuação conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, cuja carta de premissas foi assinada em julho de 2021 e as rodadas de negociações acontecem desde setembro do mesmo ano. No entanto, apenas em março de 2022 os atingidos de Mariana foram informados de que seriam considerados no escopo desse processo, que, como nos dois acordos mencionados acima, segue sem participação efetiva das vítimas do rompimento.

Na mesa de negociação, em que se decide pontos fundamentais para as vidas das milhares de famílias atingidas, participam as empresas rés, o Poder Público, representantes da União e dos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, além dos respectivos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas. São muitas as incertezas, entre elas o que será definido sobre a destinação das terras de origem, o seguimento dos reassentamentos e como ficam os animais atingidos.

“13% das famílias atingidas mudaram de município”

Mirella Lino Sant’Ana conta sobre a conquista dos reassentamentos para as famílias que sofreram deslocamento compulsório. “A gente conquistou o reassentamento familiar, que nos deu o direito a ter um novo reassentamento, uma nova casa, em um local diferente daquele que foi atingido. É o caso da minha família, nós não vamos voltar para o imóvel que foi atingido lá em Ponte do Gama”.

A jovem destaca a conquista da não-permuta. “A gente também conquistou o direito de que, nas terras de origem atingidas aqui de Mariana, de Bento, de Paracatu ou da zona rural, as pessoas atingidas não perderiam o direito e o acesso em detrimento da indenização e do reassentamento. A empresa não iria comprar, digamos assim, as terras dos atingidos com uma indenização e com o novo reassentamento”.

No entanto, com o processo de repactuação em curso, sem a participação das pessoas atingidas, Mirella demonstra receio de retrocesso. “Foi um dos direitos mais difíceis de serem conquistados. Mas parece que está em perigo agora com o movimento da repactuação, principalmente para as pessoas de Bento e de Paracatu. Ali, toda a comunidade foi deslocada”.

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