25/05/2020
Procópio de Castro, integrante do Projeto Manuelzão e SOS Rio das Velhas e presidente do Instituto Guaicuy, reflete sobre as lições que podemos tirar do atual cenário
Catarse segundo os dicionários é: “na religião, medicina e filosofia da Antiguidade grega, libertação, expulsão ou purgação do que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por isso, o corrompe.” Portanto catarse em tempos de coronavírus pode ser entendido como um processo de purificação do espírito, dos hábitos, dos valores e das relações sociais, das formas de lidar com a natureza, dos modelos econômicos e de formas de governo.
A terceira guerra mundial foi deflagrada não pelos pseudos poderosos – sejam eles governantes, os possuidores de mega arsenais, super-empresários e os muito muito ricos – mas pela natureza. Não é uma guerra entre países ou de vaidades exacerbadas, nem mesmo de demonstração de forças e poder. Pelo contrário, o invisível submeteu a todos no planeta, sem distinção de classes, poder, riqueza, armas ou fronteiras, expondo as fragilidades do modelo vigente de como a humanidade tem lidado com o planeta e com a vida. O “insignificante” expôs as fragilidades, os descasos, os desníveis sociais e econômicos, o supérfluo, as meritocracias, os discursos falsos, as políticas excludentes e as desumanidades.
O vírus pegou o mundo de calças curtas, totalmente despreparado e sem ferramentas para o enfrentamento, pois lucros e armas para o assassínio de nada valiam para o combate. O “corona” exige valores esquecidos e desprezados. A ciência, a solidariedade, as atividades de suporte a vida foram elevados à ribalta. O distanciamento imposto fez que, em anos, convivêssemos com nossos familiares que mal víamos. Os amigos e os abraços subiram nas bolsas de valores importantes.
O Covid-19 expôs as mentiras, os interesses mesquinhos e as políticas de exclusão. Mostrou o descaso com a natureza, a falta de cuidado com a vida. Descobrimos que somos um só planeta, e que a vida é muito frágil. Ficou visível que mortes não são apenas números, mas pessoas com histórias e relações, mesmo quando estes números são expressos aos milhares. Não podemos perder o significado que esta contabilidade carrega. São perdas irreparáveis de patrimônios reais de conhecimentos, experiências, inter-relações e histórias de pessoas importantes em seus contextos de existência.
Discursos foram desmontados com clareza e rapidez. Serviços importantes para a sociedade, em qualquer parte do mundo, demonstraram que não é pelo lucro que eles serão executados com eficiência. O Estado tem responsabilidade inalienável em cumprir e exercer esforços por sua universalização. Não será privatizando responsabilidades que a saúde estará ao alcance de todos. O mesmo acontece em relação à educação e à gestão da natureza que não podem ficar apenas sob a égide do lucro. Estes e outros serviços precisam ser pensados como estratégicos para que o mundo que queremos e que futuros vamos construir para todos com conhecimento, cuidado e responsabilidade.
Pela realidade que a epidemia mostrou vimos que direitos ao acesso a serviços essencial a vida tem que ser ofertados a todos sem distinção nem privilégios. Direitos como o acesso a água, liquido da vida, não pode ser negociado. O mesmo deve ser cumprido em relação ao ambiente saudável, ao saneamento básico, ao aceso ao atendimento à saúde, ao ar com qualidade, à educação, à alimentação e a moradia. Será que não estamos investindo mais em muros e armas do que conexões com a vida?
O vírus, em sua pequenez, nos demostrou uma imensa crise e falha da representatividade. Nos fez questionar se nossos políticos realmente nos representam como povo ou estão a serviço da economia e do lucro. A situação que se coloca é que após a pandemia necessitamos de repensar nossos modelos econômicos e de governanças. Palavras como participação, colaboração, parcimônia, distribuição, fraternização, cooperação, empatia e corresponsabilidade precisarão ser mais praticadas. O amor ao próximo e ao planeta precisa voltar à moda. O retorno à ética e a verdade têm que suplantar os as mentiras para termos pessoas do bem e menos cidadão de bens.
A pandemia também mostrou que a natureza não tem fronteira e a nossa esfera planetária é única, interconectada, interdependente e tem muito mais a nos ensinar. Precisamos lidar com cuidado, respeito e conhecimento com seus bens. Ela é nosso suporte de vida. Mas não somos únicos e ninguém tem certificado de propriedade, de exclusividade ou de prioridade de seus patrimônios, dentre eles a vida. A vida é uma cadeia interdependente e é composta pela biota abrangente de todas as suas manifestações na forma de animais, plantas, fungos, bactérias, protozoários e até mesmo o vírus.
Isso mesmo. Todos eles carregam o código da vida e podem se conectar de muitas formas, trocando informações, ou não, para o suporte de toda esta maravilha que é o planeta com seus compostos químicos, nas formas de terras, ar, água e energia. Quem disse que o homem é o mais importante no sistema da vida foi o próprio homem.
Se isto é verdade, o conceito de sermos superiores, para ser considerado, carrega uma enorme responsabilidade para nós humanos. Se queremos ser os maiorais, não o conseguiremos com auto atribuição de títulos, mas pelas conquistas obtidas por nossas ações na preservação e cuidados com a vida e seu suporte, o planeta Terra. Teremos de ser mães e pais da preservação planetária. Como seres superiores, inteligentes e autoconscientes, teremos que passar de predadores ao estágio de cuidadores e parceiros da vida.
Não há de se esperar o fim da pandemia. É necessário começar agir, mesmo que em isolamento. É este momento de reavaliar nossos comportamentos como indivíduos, família, cidadãos e humanidade. É necessário como individuo iniciar a mudança em pensamento e ação nos perguntando se hoje vamos provocar uma nova fagulha-ação a favor da melhoria planetária ou vamos seguir no mesmo? Vamos construir igualdades, respeitos e direitos, vamos ajudar aos nossos irmãos planetários, vamos colocar nossa especialidade pessoal a serviço do necessário e importante?
Vamos construir, agora, um mundo melhor pós-pandemia, com valores reais recuperados, vamos dar valor a coisas como a beleza da montanha e não apenas a seus minerais, vamos valorizar o rio como suporte de vida e não como lugar de lavar nossa poluição, vamos nos permitir ser abraçados e abraçar o planeta.
Artigo publicado no site EcoDebate no dia 22 de maio.