A evolução de um mosquito e o caos da saúdeProjeto Manuelzão

A evolução de um mosquito e o caos da saúde

18/03/2024

Artigo de professor da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador do Projeto Manuelzão, Marcus Polignano, publicado na Revista Manuelzão 76, em abril de 2016

[Artigo de professor da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador do Projeto Manuelzão, Marcus Vinícius Polignano, publicado na Revista Manuelzão 76, de abril de 2016; republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse as edições da Revista Manuelzão através deste link.]

“O momento era de transição entre o império e a república. Nesse tempo a capital federal ainda não era chamada de ‘Cidade Maravilhosa’, na verdade ganhava a alcunha não tão honrosa de ‘cidade da morte’, devido à grande quantidade de mortes como consequência da precariedade dos serviços públicos e as péssimas condições de vida aqui encontradas. A febre amarela, a peste, a varíola, a tuberculose e a malária já faziam parte do cotidiano carioca. Com a opressão imposta pelo governo em impostos, a falta de emprego e em condições de vida precárias, a população, com frequência, explodia em revoltas, espalhando a desordem e o caos pela cidade”¹. 

Este quadro se referia à cidade do Rio de Janeiro ao final do século XIX. Tomando os devidos cuidados no que se refere às dimensões da cidade, dos momentos políticos e sociais diferentes, podemos ver semelhanças nas demandas e problemas apresentados pela população no que se refere à saúde, ambiente e cidadania. Um dos elementos que permite fazer este elo histórico é o já bastante conhecido Aedes aegypti

Originário do Egito, a dispersão pelo mundo ocorreu a partir da África, indo primeiro na direção da costa leste do continente americano e depois para a costa oeste da Ásia. Chegou ao continente americano por embarcações do tráfico de escravos que aportaram no Brasil. Uma vez instalado na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX, que apresentava uma situação precária de saneamento e de moradias, passou a transmitir a febre amarela urbana, que ceifou cerca de 60 mil pessoas num período de 40 anos, gerando debates políticos e uma grande comoção social. 

Foi quando Oswaldo Cruz introduziu o combate à epidemia baseado num modelo higienista e campanhista, com a formação de brigadas organizadas de combate ao mosquito e aos seus focos, centralizando e coordenando todas as ações, que eram contínuas e sistematicamente avaliadas em função dos resultados alcançados. O combate aos focos do mosquito se dava o tempo todo, e não apenas nos momentos epidêmicos, como o verão. 

Embora muitos dos métodos utilizados naquela época possam ser considerados autoritários, e que não se aplicariam hoje em dia, o fato é que a sistemática proposta foi aplicada para outras endemias do país, resultando na erradicação do Aedes na cidade do Rio de Janeiro. Em 1955 os agentes de saúde destruiriam o último foco de Aedes no Brasil no interior do país. 

A partir de 1970, o Aedes ressurgiu no Brasil pela região Norte e se espalhou por todo o país com conivência das autoridades, que não viam no mosquito um perigo, uma vez que a febre amarela urbana estava erradicada dos grandes centros, e evidentemente camuflada pelos dados oficiais da época da ditadura. Assim, na década de 1980, em um ambiente urbano mais ampliado, complexo, com precariedades de saneamento, dentro de um consumismo descartável, com o aumento na produção e diversidade dos resíduos sólidos e sem predadores no ambiente urbano o mosquito proliferou e se domiciliou.

Surge a dengue

A doença surge como a mais importante arbovirose que afeta o ser humano, constituindo-se em sério problema de saúde pública no mundo. Ocorre e dissemina-se especialmente nos países tropicais e subtropicais, onde as condições do meio ambiente favorecem o desenvolvimento e a proliferação do Aedes aegypti e Aedes albopictus. A suscetibilidade é universal, ou seja, qualquer pessoa pode contrair. Como existem quatro tipos diferentes de vírus circulante, a imunidade é permanente e específica para o tipo de vírus adquirido. 

A doença é altamente debilitante na fase aguda, levando ao afastamento do trabalho e das atividades do dia a dia. Neste contexto, se apresenta como um mal maior para crianças, idosos e aqueles que apresentam morbidades (asma brônquica, diabetes mellitus, anemia falciforme). Em função de reações imunológicas pode liberar substâncias químicas que diminuem a produção de plaquetas (interferon) e causa extravasamento capilar, o que leva a risco de “queda de pressão”, choque e quadros hemorrágicos, e eventualmente a morte. 

Seis em cada 100 casos tem o risco de morrer de dengue no Brasil. Essa taxa de letalidade é considerada alta pela Organização Mundial de Saúde que trabalha com o índice de 1 para 100. O que reflete deficiências no atendimento às pessoas infectadas. 

A primeira epidemia de dengue no Brasil ocorreu em 1981, em Roraima. Lá foram isolados os vírus DEN1 e DEN4. Em 1986 a epidemia chegou ao Rio de Janeiro e em algumas áreas urbanas do Nordeste com disseminação do vírus DEN1 com mais de 50 mil casos. Em 1990, houve a introdução do vírus 2 no Rio de Janeiro, atingindo várias áreas do Sudeste. 

Em 1998, ocorreu uma pandemia com mais de 500 mil casos no Brasil. O vírus se espalhou por todo o país, sendo a região Nordeste a mais atingida. Em 2000, o vírus 3 foi isolado no Rio de Janeiro, e uma nova epidemia de dengue aconteceu entre 2001 e 2003, quando vários Estados do Sul foram atingidos pela primeira vez. 

Os dados demonstram que as variações ao longo do tempo no número de casos de dengue, com período de casos menores seguidos de aumento do número de casos tem haver com a introdução de vírus diferentes e que as ações contra a transmissão e o mosquito não foram eficazes ao longo do tempo. Após viver a pior epidemia de dengue da sua história em 2015, o país registrou nos primeiros meses de 2016 números ainda piores do que os do ano passado. De janeiro até a primeira semana de março, foram notificados ao Ministério da Saúde, 495.266 casos prováveis da doença, alta de 46% em relação ao mesmo período de 2015, quando 337.738 suspeitas foram reportadas.

Esses fatos se encontram em uma explicação histórica nas ações erráticas da saúde pública no país. Infelizmente, no país, as doenças se tornam problemas de saúde pública quando são novidades e ocupam as manchetes dos jornais, quando então se tomam medidas emergenciais pontuais. Essa exposição, ao longo do tempo vai diminuindo de intensidade. À medida que saem de foco, as epidemias passam a ser enquadradas como endemias e as ações vão minguando até que outro forte surto epidêmico apareça. E assim vamos caminhando numa política errática de combate às nossas epidemias.

Surge a Chikungunya

Quando gradativamente já estávamos aceitando os casos de dengue como uma típica “doença comum do verão”, e já sendo ela desqualificada de epidemia para endemia surge uma nova doença, a Febre Chikungunya (CHIKV). Após ser isolada em 1952, na Tanzânia, a primeira emergência documentada do CHIKV ocorreu com sua introdução no sudeste asiático e na Índia, instalando-se em um ciclo esporádico de transmissão urbano que continua até hoje, onde o Aedes aegypti é o principal.

Em outubro de 2013, o CHIKV chegou às Américas pelo Caribe, resultando em milhares de infecções. No Brasil, o primeiro caso foi detectado em setembro de 2014, em Oiapoque (Amapá). Ao longo de 2014 foram confirmados 2.772 casos de CHIKV, distribuídos em seis Unidades Federativas: Amapá (1.554 casos), Bahia (1.214), Distrito Federal (2), Mato Grosso do Sul (1), Roraima (1) e Goiás (1). 

Posteriormente tida como uma doença “benigna” e autolimitada, que causa “somente” o sofrimento temporário e passageiro para os acometidos foi sendo gradativamente aceita e assumida pelos serviços públicos de saúde como mais uma doença inevitável transmitida pelo Aedes.

Aparece o Zika

O Zika é um vírus transmitido também pelo Aedes aegypti e identificado pela primeira vez no Brasil em abril de 2015. O vírus recebeu a mesma denominação do local de origem de sua identificação em 1947, após detecção em macacos sentinelas para monitoramento da febre amarela, na floresta Zika, em Uganda. 

Cerca de 80% das pessoas infectadas pelo vírus Zika não desenvolveram manifestações clínicas. Por este motivo, teria tudo para ser mais uma doença negligenciada pelo Sistema de Saúde até que, no caso do Brasil ela veio associada à microcefalia em recém-nascido (4 mil casos de microcefalia no país e mais de 400 já confirmados e associados ao Zika Vírus – março de 2016), em adultos o vírus ainda é associado a síndrome de Guillain–Barré. 

Que nos perdoem as outras arboviroses, mas a epidemia da vez é a Zika. Sem dados confiáveis sobre o número de casos do vírus, no Brasil eles prosperam, sendo que os diagnósticos têm sido feitos muito mais em decorrência das sequelas produzidas pela doença do que propriamente pelos seus sintomas e exames disponíveis. 

E apesar da Zika não ser uma doença nova, nos deparamos com o despreparo em nível nacional e internacional para lidar com a questão. Até entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) se demonstraram atordoados para o enfrentamento da crise, pois sequer existe um teste rápido, sensível e de baixo custo disponível para o diagnóstico.

Semelhanças

Todos os três são vírus, que fazem parte de um grupo denominado de arbovírus, que são vírus que podem ser transmitidos ao homem por vetores artrópodes (insetosmosquitos-Aedes) hematófagos, ou seja, que sugam sangue. 

É importante dizer que estes vírus existem na natureza há milhares de anos, onde circulam entre animais silvestres de florestas africanas e até mesmo na Amazônia. Então, a pergunta que se faz é como ele veio parar nas cidades? A resposta passa pela questão ambiental. As arboviroses têm se tornado importantes e constantes ameaças em regiões tropicais devido às rápidas mudanças climáticas, desmatamentos, migração populacional, ocupação desordenada de áreas urbanas, devido à precariedade das condições sanitárias que favorecem a amplificação e transmissão viral. 

Atualmente, estima-se que haja mais de 545 espécies de arbovírus, dentre as quais, mais de 150 relacionados com doenças em seres humanos, sendo a maioria zoonótica. Estes são mantidos em ciclos de transmissão entre artrópodes (vetores) e reservatórios vertebrados como principais hospedeiros amplificadores. E se inserem no grupo das doenças infecciosas emergentes e reemergentes, que têm sido negligenciadas pelos sistemas nacionais e internacionais de saúde, porque atingem populações de países pobres ou em desenvolvimento.

Enfrentamento ao Aedes

Dado que todo o ciclo de transmissão se torna possível pela presença do Aedes é lógico que todos os esforços sejam direcionados para a retirada dele do cenário das cidades. Ocorre que as ações têm sido direcionadas principalmente para os insetos em si e pouco tem sido para criar ambientes saudáveis que no todo impeçam a existência dos mosquitos e promovam a saúde plena das pessoas. 

Os recursos para combater o mosquito têm crescido ao longo dos últimos anos. Entretanto, os dados não estão disponíveis para consulta no Portal da Transparência da União, que reúne informações sobre todas as despesas e receitas do governo federal. Pelas informações do Ministério da Saúde, em 2015 houve a liberação de R$ 1,25 bilhão do Piso Fixo de Vigilância em Saúde (PFVS) para Estados e municípios. Na verdade, este valor é determinado para diferentes ações de vigilância e não especificamente para o combate à dengue. Uma vez no caixa único do Fundo Municipal de Saúde pode ser amplamente utilizado para cobrir outras necessidades em função da precariedade de recursos existentes e as demandas.

Assim, apesar de manuais bem produzidos e tecnicamente corretos, falta coordenação centralizada que cobre resultados, fiscalize processos e estabeleça vínculos entre metas e captação de recursos para a efetividade das ações

O Aedes não é municipal, ele não obedece à lógica da gestão municipal, especialmente em áreas metropolitanas. 

Frente a este quadro de guerra, o exército foi chamado para combater o pequeno Aedes, mas ao invés de uma brigada organizada, preparada, coordenada e sistematizada, o combate se dá de forma errática. E mais uma vez o combate ao mosquito somente se configura efetivo nos discursos políticos e de gestores.

Cidadania do saneamento

Há tempos, o Projeto Manuelzão defende que o estoque de doenças da população brasileira vem só aumentando, e que isso é incompatível com o direito de cidadania, segundo a Constituição Brasileira. Ainda é necessário discutir grandes questões estruturais de saúde e não apenas focar num modelo assistencial e medicalizador, isto é, direcionar recursos a ações profissionais para um modelo de atenção à doença e não apenas para a prevenção e promoção da saúde. 

A questão principal, não está no pneu jogado na rua, no fundo das casas ou em outro lugar que irá acumular água, mas sim, nos milhares de pneus produzidos anualmente e que não são recolhidos. 

Para solucionar essa questão, em 2009, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) instituiu a Resolução número 416, que determinou aos fabricantes e importadores de pneus novos, a coletarem e destinarem adequadamente os pneus inservíveis existentes no território nacional. Além disso, a resolução estabeleceu ainda que sejam criados pontos de coleta desses pneus em todos os municípios com população superior a 100 mil habitantes. 

O mesmo ocorre com as garrafas pets jogadas nos fundos de quintal, nas ruas e rios. O que dizer de milhões de pets produzidas no Brasil e não recolhidas dentro de uma política de logística reversa. De acordo com o Instituto Trata Brasil, em média o brasileiro produz 378 quilos anuais, o que significa uma produção de 140 toneladas/dia, sendo que as estimativas dos órgãos de fiscalização ambiental competentes apontam para um índice de 55 a 60% ainda sendo destinados aos lixões. 

Como indica a edição 2014 do “Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil” existiram poucos avanços em gestão de resíduos, ele ainda alerta que os lixões a céu aberto desafiam prefeitos de 1.559 cidades, quatro anos após a promulgação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010).

O que fazer?

É fundamental que haja mudança do modelo político atual para a gestão da saúde numa visão transetorial. É preciso mudar as estruturas e inovar em políticas públicas que garantam educação, habitação adequada, saneamento ambiental, qualidade de vida e bem estar à população, construindo ambientes sustentáveis e saudáveis. 

Pois, sem respeito ao meio ambiente e com um modelo econômico que gera aquecimento global, desmatamento, destruição de ecossistemas e recursos hídricos como nunca antes visto, iremos produzir mais vetores de doenças. O desmatamento especialmente de florestas nos tornam mais vulneráveis a uma serie de agentes para os quais a humanidade não tem imunidade. Enquanto isso, as doenças infecciosas têm sido negligenciadas, colocando em risco a população, especialmente as mais pobres, carentes e desprovidos de boas condições ambientais. 

Nesse cenário, o Aedes que não tem recursos financeiros, não tem governo, QI e escolaridade, tem demonstrado uma trajetória de sucesso, enquanto a Saúde Coletiva registra um retrato de fracasso.

Infelizmente, no país, as doenças se tornam problemas de saúde pública quando são novidades e ocupam as manchetes dos jornais, quando então se tomam medidas emergenciais pontuais. 

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¹ MEDEIROS, Max Vinnicius. Transformações da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, UERJ: Rio de Janeiro, 2011.

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