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A lama invisível que atormenta Antônio Pereira

04/02/2021

Instabilidade de barragem força remoções em massa e assombra aqueles que permanecem no distrito de Ouro Preto

Lama invisível é uma expressão que define a incerteza sobre o possível rompimento de uma barragem e chama atenção para os imensos transtornos que essa dúvida gera na população próxima da estrutura. É com esse fantasma que o distrito ouro-pretano de Antônio Pereira convive nos últimos anos em função do risco de rompimento da barragem de Doutor, pertencente à mineradora Vale.

Até dezembro do ano passado, 473 pessoas que viviam na chamada zona de autossalvamento (ZAS) da barragem foram removidas de suas casas em Antônio Pereira e no Residencial Vila Antônio Pereira, conhecido como Vila Samarco. A ZAS é aquela numa área de 10km ao longo do curso do vale passível de ser atingida pela onda de inundação num prazo de 30 minutos.

O impacto das remoções, entretanto, não atinge somente os moradores forçados a abandonar suas casas para se salvar de um possível rompimento, mas escoa silenciosamente até adentrar todas as ruas e lares do distrito na forma de insegurança, abandono, prejuízos materiais, danos sociais, culturais, psicológicos, entre outros.

A população de Antônio Pereira realizou várias manifestações contra a Vale nos últimos meses, pedindo que a mineradora se reunisse com os moradores para prestar esclarecimentos e resolver impasses sobre as obras de descomissionamento da barragem e as remoções. Algumas reuniões até chegaram a ser realizadas, mas a insatisfação da comunidade, que tem cerca de 5 mil habitantes, só aumentou com a postura da empresa na condução do processo e na tratativa com os moradores.

“Só pedimos à Vale que respeite nosso território, pois a mineradora faz o que quer sem consultar a população. A Vale se esconde atrás de reuniões de muito falatório e que nada resolvem para os moradores. Sua postura sempre foi de tentar nos cansar e impor suas condições”, critica Maria Helena Rocha, servidora pública da Justiça de Mariana e moradora da Vila Samarco.

Ainda hoje, no entanto, a Vale, responsável pela causa das incertezas, continua dando as cartas na retirada de moradores de áreas de risco e na negociação de indenizações aos moradores afetados.

Antecedentes

A história de Antônio Pereira e da Vila Samarco se confunde com a história e os impactos sistêmicos da mineração na região, mas foi entre o final de 2018 e o início de 2019, que essa relação se transformou num flagelo para as comunidades. Se a segurança da barragem do Doutor, ainda ativa na época, já era vista com desconfiança pela população vizinha e pelo poder público, o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, fez ruir a alegada estabilidade de Doutor, que integra o complexo da mina de Timbopeba.

Já em março de 2019, a Justiça acatou o pedido de uma ação movida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e determinou a suspensão das atividades da barragem do Doutor, depois que uma empresa contratada para atestar a segurança da barragem, não garantiu a estabilidade da estrutura.

Após o embargo, a Vale anunciou, em fevereiro de 2020, que iniciaria o processo de descaracterização da barragem de Doutor, isto é, a desativação da estrutura. Com o anúncio, vieram também as primeiras remoções de moradores na região, para viabilizar as obras de descomissionamento. 11 famílias deixaram suas casas.

Em abril de 2020, a situação se agravou. A Vale elevou o nível de alerta de Doutor de 1 para 2 (em uma escala que vai até 3), “em função da adoção de critérios mais conservadores para determinar a condição de segurança”, segundo a empresa. Com isso, a mineradora acelerou o processo de remoção de outras 67 famílias que viviam na Zona de Autossalvamento da barragem, em meio à pandemia do coronavírus.

A barragem tem capacidade para 35 milhões de m³ de rejeitos e o prazo para a finalização do processo descaracterização é de 8 anos. O volume é quase o triplo do que continha a barragem da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, por exemplo, que se rompeu em 25 de janeiro de 2019 e represava 12, 7 milhões de m³ de lama tóxica.

“Estamos presenciando um atentado à dignidade humana”, avaliou Ronald de Carvalho Guerra, ambientalista e vice-presidente do Instituto Guaicuy. “Um atentado à casa, ao trabalho, à educação, ao lazer e à saúde da população. Não existe a tragédia consumada da enxurrada de lama sobre as pessoas mas existe o atentado à dignidade”.

Morador da região, Guerra ressalta que Antônio Pereira vem sofrendo danos sistêmicos da mineração há muitas décadas. “Trata-se de uma comunidade que vive em condições de vulnerabilidade social, que enfrenta problemas com violência, a falta de saneamento e de outros serviços básicos. Antônio Pereira não recebeu uma contrapartida mínima por todo esse tempo de exploração”, pontuou Guerra.

A incerteza da mancha

A enxurrada de reclamações dos moradores sobre a falta de transparência da Vale têm fundamentos de sobra. Após a remoção de mais de 70 famílias, a mineradora abandonou o primeiro estudo de impacto de um possível rompimento da barragem, no qual tinha se baseado para conduzir todo o processo até a primeira metade de 2020.

Em agosto, a Vale divulgou um novo estudo que ampliou a mancha de inundação de Doutor e passou a abranger 144 famílias. Foram 75 moradias a mais do que o divulgado no primeiro estudo e uma porção considerável do território que passaram a ser considerados.

A mudança ocorreu após uma auditoria contratada pela Vale colocar em dúvida a precisão da mancha proposta no primeiro estudo. Posteriormente, o Ministério Público entrou com um pedido na ação contra a mineradora para que fosse aplicada a nova mancha de inundação.

À esquerda, a projeção da mancha de inundação utilizada até julho de 2020. À direita, a nova projeção.

A adoção da nova mancha de inundação, contudo, não afastou dúvidas sobre a precisão das projeções. O novo estudo de impacto apresenta uma série de incongruências que os moradores percebem de forma bem clara. E os exemplos são muitos. Em uma rua plana, a Projetada 10, uma casa está inserida na mancha e outra não. Em outro caso, em um trecho da rua Água Marinha, um lado da rua foi incluído e outro não. A suspeita dos moradores é de que os técnicos responsáveis não foram a campo para realizar os estudos.

De acordo com a analista de geoprocessamento do Instituto Guaicuy, Paula Brasil, a partir de análises das manchas disponibilizada pelo Ministério Público, “não ficou claro qual foi o critério e a metodologia utilizada em sua definição”. Em alguns casos foi observado que a lama passaria no meio de casas, atingindo apenas uma metade das propriedades, o que é improvável na prática.

Para os moradores, inclusos ou não na mancha de inundação, resta um sentimento de insegurança e incerteza generalizadas.

A atual mancha incluiu as ruas Projetada 10 e Irineu Faria, em Antônio Pereira e Água Marinha, Vanádio, Topázio, Clorita, Ametista, Berilo, Fluorita, Alexandrita e Prata, na Vila Samarco. Além disso, a lama inundaria parte da rodovia MG-129, deixando a Vila Samarco ilhada e atingiria em cheio o rio Gualaxo do Norte, um dos afluentes do já contaminado rio Doce, reeditando as cenas vistas em 2015, com o rompimento da barragem do Fundão em Mariana.

Segundo a Comissão de Atingidos local, ainda há 25 famílias que estão na zona de autossalvamento, mas não são reconhecidas pela Vale, outras 5 famílias estão dentro da mancha de inundação, mas se recusaram a sair de suas casas antes de negociarem com a mineradora.

Para quem fica…

Para quem ficou, o ambiente é desanimador e a convivência com caminhões de mudança virou uma realidade. “A verdade é que a população está muito afetada. Estando ou não na mancha, todo mundo está nervoso, apreensivo. Muita gente não dorme mais. Outros estão doentes e ainda nem entenderam que estão doentes”, desabafou Maria Helena Rocha, que integra a Comissão de Atingidos.

Morando há seis anos na Vila Samarco, Maria Helena viu seu desejo por uma vida tranquila se transformar em um pesadelo. “Todo esse processo é muito exaustivo para a gente. São reuniões atrás de reuniões e não tive tempo nem mesmo de fazer a matrícula dos meus filhos na escola. Comprei minha casa para ter sossego e não sei se um dia terei”, lamentou a moradora.

Além do isolamento da comunidade, da desvalorização das propriedades e do desestímulo ao comércio, moradores também relatam sofrer transtornos com o tráfego intenso de veículos pesados das obras de descomissionamento da barragem do Doutor e a consequente nuvem de poeira gerada pelo vai e vem dos veículos.

“Temos em Antônio Pereira um exemplo categórico do terrorismo das barragens, isto é, uma comunidade que vive à sombra de remoções forçadas, insegurança generalizada e drástica piora nas condições de vida”, afirma Daniel Neri, professor do IFMG Campus Ouro Preto e doutorando em conflitos socioambientais oriundos da atividade minerária no Quadrilátero Ferrífero. Para o pesquisador, a Vale, de forma deliberada, vem causando uma “tragédia continuada” que afeta sistematicamente toda a região.

Equilibrando forças

Na busca por mitigar o sofrimento da população de Antônio Pereira, a Justiça determinou, em setembro do ano passado, o bloqueio de R$100 milhões nas contas da Vale e obrigou a mineradora a reparar integralmente os atingidos. Para promover o equilíbrio mínimo de forças nas disputas travadas entre a comunidade atingida e a Vale, a Justiça também determinou que o Ministério Público contrate uma assessoria técnica independente (ATI) para os atingidos.

A assessoria técnica é um direito das pessoas atingidas, instrumento de defesa de comunidades que sofrem danos ou ofensas a direitos humanos e fundamentais em razão de conflitos socioambientais. Seu objetivo é estar ao lado das comunidades, buscando viabilizar a participação informada das pessoas atingidas no processo de reparação integral e construir provas técnicas que entrarão nos autos do processo.

De acordo com Carla Wstane, coordenadora técnica do Instituto Guaicuy, a reparação integral envolve não apenas o pagamento da indenização, mas pressupõe o retorno da situação da vida da pessoa antes do desastre acontecer.

“É muito importante que as pessoas atingidas participem do processo de reparação, buscando mostrar todo o sofrimento causado. Faz parte da reparação a mitigação dos danos, a restituição da condição econômica, a reabilitação da saúde devido aos traumas causados, o pedido de desculpas e reconhecimento que pessoas foram atingidas pela empresa causadora do dano, a garantia da não repetição e a compensação pelos danos de ordem coletiva”, explicou Wstane.

Trata-se de um primeiro passo na busca por reconhecimento e pela reparação dos danos causados a uma comunidade cujo erro foi apenas estar abaixo de uma barragem.

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