A luta contra o decreto do governo federal que libera a destruição de cavernasProjeto Manuelzão

A luta contra o decreto do governo federal que libera a destruição de cavernas

04/02/2022

Medida, que faz parte de pacote encomendado pela mineração, terá impactos incalculáveis na biodiversidade brasileira e no patrimônio espeleológico e histórico-cultural

Um decreto que autoriza a destruição de cavernas brasileira, incluindo as de máxima relevância ecológica, histórica, e cultural, liberando a exploração e instalação de empreendimentos de “utilidade pública”, foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), em 12 de janeiro. Parte da “boiada” do governo federal, o Decreto 10.935/2022 faz parte de um projeto de mudanças regulatórias encomendadas pelo setor da mineração. Pesquisadores, ambientalistas e entidades apontam impactos incalculáveis na biodiversidade brasileira e no patrimônio histórico, arqueológico e espeleológico e consideram o decreto um crime contra a humanidade.

No dia 24 de janeiro, o ministro Ricardo Lewandowski , do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu dois artigos do decreto original, impedindo a permissão para a construção de empreendimentos de “utilidade pública” e atividades ou destruição das cavernas classificadas em relevância máxima. A decisão é provisória e vale até que o caso seja analisado pelo plenário do Supremo, e não impede a maior parte dos retrocessos definidos pelo presidente.

Segundo o Observatório da Mineração, a destruição das cavernas faz parte de um programa encomendado pelo setor mineral, que prevê “aprimorar” (ou seja, desmontar) a regulação que trata de cavidades naturais. O Programa Mineração e Desenvolvimento (PMD) foi lançado no final de 2020 pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e teve boa parte de suas 110 medidas ditadas pelo setor mineral. A meta do governo é que 40% do território nacional esteja livre das “barreiras” à expansão da mineração – que também podem ser terras indígenas e unidades de conservação. O decreto tem efeito retroativo.

Com o Decreto 10.935/2022, qualquer cavidade natural subterrânea – caverna, gruta, abismo – pode ser destruída e compensações ambientais ficaram mais flexíveis e menos contundentes. Quatro dos onze atributos de classificação para máxima relevância foram excluídos: morfologia (composição) única; habitat essencial para preservação de populações geneticamente viáveis de espécies de troglóbios (animais típicos de cavernas) endêmicos ou relictos (encontrados apenas em certos locais); interações ecológicas únicas; e cavidade testemunho (usadas para pesquisas geológicas).

As decisões sobre o grau de relevância das cavernas ficarão sujeitas à influência dos ministros de Minas e Energia e Infraestrutura – por conseguinte, ao lobby dos respectivos setores. A classificação de relevância das cavernas também poderá ser alterada pelos órgãos ambientais com pedido de revisão dos empreendedores. O texto ainda garante a aprovação de projetos “sem alternativa locacional viável” (como a mineração, que precisa ser instalada onde fica a jazida) e, enquanto admite a possibilidade de danos irreversíveis, prevê compensação ambiental, ainda que não haja como compensar o patrimônio que já foi destruído.

Caverna no Parque Estadual de Campinhos, em Tunas do Paraná e Cerro Azul (PR). Foto: Agência Estadual de Notícias

Respostas institucionais

Parlamentares solicitaram a suspensão do Decreto Federal 10.935/2022, como a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), que acionou o Ministério Público Federal (que já se pronunciou contra o decreto), e o partido Rede Sustentabilidade, que protocolou ação no Superior Tribunal Federal (STF). Ainda não há data para que o Plenário do Supremo discuta a suspensão de dois artigos do decreto original pelo ministro Lewandowski.

Em nota, a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) denunciou que “a suspensão apenas dos artigos 4° e 6° do referido decreto ainda mantém a possibilidade dos Ministros de Minas e Energia e de Infraestrutura editar o ato normativo que definirá a relevância espeleológica, situação que evidencia claro conflito de interesse. Além disso, o empreendedor poderá exigir revisão de classificação de relevância já definida, fato que coloca em risco as cavidades subterrâneas de máxima relevância. A SBE considera que o Decreto 10.935/2022  “[…] apresenta inúmeras inconsistências e armadilhas que favorecem a destruição de cavernas em todo o território nacional”.

Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Januária, Minas Gerais

Patrimônio imensurável

As cavernas são os principais locais onde estão preservadas evidências da ancestralidade da espécie humana, há milhões de anos, até a história recente, como explicou o escavador André Strauss ao G1. A grande preocupação dos especialistas em espeleologia, a ciência que estuda as cavernas, é que em algumas regiões do país estas formações naturais possuem vários tipos de minérios de valor comercial. A exploração dessas riquezas pode, em tese, levar à extinção das cavernas. A construção de rodovias também impacta negativamente as cavernas, podendo até mesmo causar contaminação do lençol freático.

A maior parte do patrimônio espeleológico do Brasil fica em Minas Gerais, que possui 10.579 cavernas, com destaque para o Quadrilátero Ferrífero e a bacia do Rio das Velhas. Entre Lagoa Santa e Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, fica o complexo de Lapa Vermelha, onde ficam 52 cavernas calcárias e cerca de 170 sítios arqueológicos, dentro do Parque Estadual do Sumidouro. Foi lá que Luzia, o fóssil mais antigo da América Latina, foi encontrada. Recentemente, a região foi alvo da Heineken, que desistiu do “megaprojeto” acordado com o governador Romeu Zema.

A importância das grutas não reside somente no fato de possibilitar à humanidade conhecer suas origens, envolve uma série de relações ecossistêmicas. Destruir as cavernas significa também degradar as águas subterrâneas que elas abrigam, importantes fontes de abastecimento das populações. A medida pode levar à destruição do habitat de milhares de espécies que vivem nesses ambientes, inclusive endêmicas e ameaçadas de extinção, impactando também na polinização da flora.

Em entrevista ao CBH Rio das Velhas, o coordenador do Centro de Estudos em Biologia Subterrânea da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Rodrigo Lopes Ferreira, explicou que “Esse progresso [referindo-se aos empreendimentos de suposta utilidade pública] não se sustenta porque os malefícios e as perdas podem ser incalculáveis. As cavernas da região do Carste, por exemplo, são habitadas por morcegos que prestam serviços ecossistêmicos excepcionais”. Ele prossegue apontando que estudos consolidados mostram que o desaparecimento da população de morcegos deixa os insetos sem predadores, principalmente os de praga agrícola, o que leva a gigantescos prejuízos para as lavouras e o agronegócio, entre outros impactos negativos.

Com o desabrigo de populações que vivem em ambientes cavernosos isolados, há o risco do surgimento de novas epidemias e pandemias, causadas por vírus esses animais hospedam.

A legislação brasileira já permitia atividades econômicas nas cavernas de relevância baixa e média, sendo “intocáveis” apenas as de relevância máxima. Se o decreto entrar em vigor, terá efeito retroativo, o que significa que todas as licenças negadas até hoje com a intenção de proteger essas cavernas poderão ser revistas. Outro risco da mudança na lei tem a ver com os estudos para licenciamento: métodos menos precisos poderão ser usados, por exemplo, para relativizar a importância de uma caverna.

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