A miragem do tombamentoProjeto Manuelzão

A miragem do tombamento

02/08/2023

A busca por um caminho definitivo para a proteção integral da Serra do Curral

[Reportagem de Ferdinando Silva publicada nas páginas 4, 5, 6 e 7 da Revista Manuelzão 93, na editoria Em que pé que tá? Republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site; a série de ilustrações em processo é do artista Marcelo AB. Acesse a edição 93 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

Os altos prédios erguidos na divisa entre Belo Horizonte e Nova Lima, nos bairros Belvedere, Vila da Serra e Vale do Sereno, há alguns anos são conhecidos por obstruir uma entrada de ar natural para a capital, tornando a cidade 1ºC mais quente e seu ar até 10% menos úmido. Por também estarem sobre trechos da Serra do Curral e prejudicarem a visibilidade dela, esses edifícios tiveram o mérito reverso de despertar a Promotoria de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), em 2009, para a necessidade de uma proteção mais abrangente da paisagem da Serra, até então tombada apenas dentro dos limites da capital.

Cercado pelas torres dos bairros mais ricos da região em sua ponta oeste, o alinhamento montanhoso sofria os impactos da mineração a leste, na vertente situada em Nova Lima, fora da vista dos belo-horizontinos. Ali fica a área de 2.200 hectares da Mina Águas Claras, operação inativa da antiga Minerações Brasileiras Reunidas, a MBR, incorporada pela Vale. Em 2011, o Morro do Patrimônio desmoronou sobre a cava da mina, uma enorme cratera coberta com a água saída do subsolo e que sofre com deslizamentos de terra crônicos. Logo ao lado, está o Pico Belo Horizonte, ponto mais alto da Serra e símbolo no brasão da cidade.

A Promotoria do Patrimônio Cultural alertou o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha) sobre esses eventos por meio de duas notas técnicas. Ainda em 2011, o Iepha considerou a Serra do Curral como área de interesse de preservação e emitiu parecer favorável à elaboração de um estudo para o tombamento.

A Serra do Curral já está no Livro do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1960, quando as transformações na paisagem tornavam-se evidentes. À época, um entendimento bem mais estreito do conceito de patrimônio fez com que a proteção recobrisse apenas o trecho que se estendia por 1,8 quilômetro tendo como eixo central a Avenida Afonso Pena, ou seja, a vista a partir do Centro de BH, além do Pico Belo Horizonte, pouco mais a leste. Atrás do panorama portentoso está justamente a área devastada pela Mina Águas Claras, uma face da montanha retalhada e levada embora.

A proteção do Iphan não impediu que, mesmo do lado da capital, a ocupação das partes mais baixas dos morros e a exploração dos minérios avançasse a fio. Até que em 1990, por meio da Lei Orgânica Municipal, Belo Horizonte declarou todo o alinhamento montanhoso da Serra do Curral como monumento natural, paisagístico, artístico e histórico. O perímetro, a área de entorno e as diretrizes do tombamento foram revisados em 2002 e vigoram até hoje.

Para estender essa salvaguarda às porções da Serra em Nova Lima e Sabará, entra em cena a mobilização pelo tombamento estadual. A ambientalista Jeanine Oliveira, atuante em diversos movimentos em defesa da Serra, resume a conveniência da ferramenta à tarefa: “as montanhas se estendem por três municípios e, para além da conservação do meio ambiente, há valor histórico-cultural inestimável para a região, então um parque ambiental não dá conta. O Iphan [na esfera federal], por sua vez, está muito distante. Tudo isso faz do tombamento estadual o principal instrumento disponível para garantir a defesa da Serra em sua integralidade territorial e em seus múltiplos valores”.

A gestação do dossiê

Após o sinal verde dado pelo Iepha, um tortuoso caminho se seguiu. Em 2013, o MPMG assinou um acordo judicial com o Município de Nova Lima e a Inpar, sociedade controlada pelo Grupo Viver, responsável pelas três torres do residencial Alto Belvedere. Como medida compensatória pelos danos irreversíveis causados à paisagem, o empreendimento foi obrigado a custear a análise técnica que embasaria o tombamento estadual.

Um grupo de trabalho foi formado no ano seguinte pelo Iepha, o Iphan e a Diretoria de Patrimônio Cultural (DIPC) de Belo Horizonte para avaliar a proteção paisagística regional. Reuniões entre esse grupo e diversas promotorias do MPMG foram realizadas para discutir a situação do muro de pedras e de outros vestígios arqueológicos do início da ocupação humana na região. Após o Grupo Viver entrar em recuperação judicial em 2017, o MPMG e o Iepha ajustam o acordo para a contratação dos estudos.

Em junho de 2018, o Iepha lavra termo de contratação e, em 2019, assina contrato com a consultoria Práxis, vencedora da licitação. Nos meses seguintes, Iepha e Práxis reuniram-se com representantes das prefeituras para apresentar o projeto e, depois, com a Promotoria do Patrimônio Cultural, para tratar da definição do perímetro da proteção.

O dossiê que embasa o tombamento estadual da Serra do Curral ficou pronto em dezembro de 2020. Nele, a equipe multidisciplinar da Práxis e do Iepha, em mais de 1.600 páginas, discorre sobre o tombamento de serras em Minas Gerais, delimita a área de estudo, contextualiza historicamente e interpreta a paisagem da Serra, aborda os conflitos de ocupação e uso do solo, discute o ambiente vivido e as motivações para a salvaguarda e indica as áreas protegidas e as diretrizes a serem seguidas nas áreas de tombamento e entorno.

No dossiê é ressaltada a importância da Serra do Curral para o povoamento de Minas, servindo de entreposto para o gado vindo da Bahia com destino às minas de ouro durante o período colonial — o que lhe rendeu a alcunha —, bem como sua influência determinante para a escolha da sede da nova capital do estado, em 1891, por seus atributos ambientais e cênicos. Importantes córregos que alimentam os rios das Velhas e Paraopeba vertem das montanhas, que são a borda norte do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero. Além de um registro representativo da história geológica da Terra, abriga abundante biodiversidade de Mata Atlântica e Cerrado e formações campestres ferruginosas, verdadeiro tesouro para a resiliência hídrica da região.

“A Serra do Curral detém importância simbólica como arquétipo da relação entre ser humano e natureza, o que reflete também a atribuição de um valor intrínseco à natureza”, lê-se em trecho do dossiê. “É símbolo de resistência contra a força e o potencial destruidor da atividade minerária e representa, em tempos de afirmação da consciência ambiental, um marco da luta da população por mais sustentabilidade das atividades humanas nas suas relações com o meio ambiente”.

Depois da conclusão do dossiê, faltava o último passo: sua aprovação pelo Conselho Estadual de Patrimônio Cultural (Conep), instância colegiada e deliberativa composta pelo secretário de Estado de Cultura, a presidente do Iepha e 19 conselheiros, que representam o governo do estado, o Legislativo estadual, órgãos de patrimônio, universidades, sociedade civil, entre outros setores.

O páreo

O desfecho aparentemente próximo não foi alcançado porque, em 2020, após o início dos estudos para o tombamento, a Tamisa deu início ao processo de licenciamento ambiental do Complexo Minerário Serra do Taquaril (CMST), que prevê a lavra a céu aberto de 30 milhões de toneladas de minério de ferro durante 13 anos. O projeto é uma adequação da versão apresentada em 2014, na qual era pleiteada a retirada de 1 bilhão de toneladas em 30 anos. A área visada pelo CMST fica no sopé do Pico Belo Horizonte, formando um corredor de devastação com as minas Águas Claras e Corumi, operação inativa do lado da capital. O minério seria retirado em três cavas, tratado em duas plantas de beneficiamento, e seu rejeito amontoado em duas pilhas de estéril.

Com tudo pronto para a votação do tombamento em 2021, o Conep, que em teoria reúne-se duas vezes ao ano, se encontrou apenas em dezembro, sem a proteção da Serra na pauta. Veio 2022 e, em março, dez conselheiros denunciaram publicamente que, apesar dos esforços realizados para efetivar o tombamento, encontravam “fortes resistências do governo estadual em suas diversas instâncias”. Dos dez, quatro conselheiros permanecem no biênio 2022-24, três como titulares e um como suplente.

“Sempre foi muito atravancado no Executivo estadual, em função dos interesses econômicos imediatos”, corrobora Jeanine Oliveira. “Não fosse o MPMG para conseguir o estudo, não haveria nada, basta olhar para as dificuldades em concretizá-lo e, depois, os esforços para sufocá-lo. O que é muito triste”.

Mesmo após intensa mobilização contra uma nova exploração da Serra do Curral, o Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), aprovou por 8 votos a 4, na madrugada de 30 de abril de 2022, as licenças prévia e de instalação do CMST. Quatro votos para a anuência foram de órgãos do governo estadual. A mineradora, contudo, nunca chegou a se instalar.

Desde que o dossiê ficou pronto, dois presidentes do Iepha foram destituídos do cargo pelo governador Romeu Zema (Novo). Felipe Pires saiu após oficiar o MPMG afirmando que o CMST não tinha anuência do órgão para se instalar. A atual presidente, Marília Machado, a despeito de ser reconhecida pelos pares na área do patrimônio, é prima do diretor executivo da Tamisa.

Com o período eleitoral se aproximando e a mineração na Serra repercutindo, o governo adotou uma posição ambígua. Em 19 de junho, determinou o tombamento provisório da Serra do Curral, a ser referendado pelo Conep. Um dia depois, defendeu como de “utilidade pública” a presença da mineradora Gute Sicht, que desde 2020 explorava uma área do alinhamento montanhoso entre Sabará e a capital, sem licenciamento ambiental, amparada por instrumentos precários de regularização pactuados com o próprio governo. Apanhada em diversos crimes ambientais, a Gute só teve sua permissão revogada em maio deste ano.

A votação do tombamento provisório estava marcada para 13 de julho, mas não foi realizada por força de uma liminar expedida pelo juiz Rogério Santos Abreu. A decisão é lembrada pelo fato de o juiz ter levado apenas 8 minutos para apreciar o pedido da Tamisa. O presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) suspendeu a liminar e remarcou a reunião para 27 de julho. Dias antes, porém, acatou parcialmente nova ação da Tamisa, impedindo novamente a votação e modificando subitamente o tabuleiro.

As ausências na mesa

Agora o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) de 2º Grau do TJMG conduz audiências de conciliação entre as partes, e o tombamento não pode ser votado até o fim das negociações. Reuniões foram realizadas com representantes da Tamisa, do Estado de Minas Gerais, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad), do Iepha, da Secretaria de Estado da Cultura e Turismo, do MPMG e dos municípios de Belo Horizonte, Nova Lima e Sabará. Não participam representantes da sociedade civil ou do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, que fica na área de impacto do projeto da Tamisa. Foi estabelecido inicialmente um cronograma de 11 meses e as tratativas correm sob sigilo. Sabe-se que tanto o perímetro do tombamento quanto a área do CMST estão sendo revisados.

A falta de consulta à comunidade quilombola durante o processo de licenciamento do CMST motivou o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) a suspender a anuência em dezembro do último ano. O governo de Minas e a mineradora recorreram da decisão, mas a suspensão está mantida até então. Perguntado sobre as ausências nas audiências de mediação, o Cejusc não respondeu até o fechamento desta reportagem.

A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), que apesar do interesse no processo, não foi consultada durante o licenciamento do CMST, foi ao Supremo contra o governo de Minas, a Tamisa e as licenças concedidas. Representada na conciliação pela Procuradoria-Geral do Município (PGM), a Prefeitura decidiu se retirar das negociações, por não concordar com o cronograma apresentado e com a presença da Gute Sicht na Serra do Curral, fato contra o qual também se manifestou no STF.

“Como o prazo definido era muito extenso, decidimos nos retirar da medição. Entendemos que não faz sentido postergar a definição de um tombamento que ainda é provisório. Ele deveria ser feito imediatamente”, justifica o procurador do Contencioso da PBH, Caio Perona. “Além do mais, a Prefeitura vê o acordo como contraditório. Sempre defendemos que a Serra do Curral fosse discutida de forma global. Qualquer diminuição da área ou tombamento parcial não nos atende”,

Mas a saída das negociações não significa deixar o caso de lado. “Está claro para nós que um empreendimento na divisa com Belo Horizonte nos impactará com poeira, poluição do ar e sonora, além de ameaçar a própria história da cidade”, avalia Perona. A previsão, caso a Tamisa consiga qualquer liberação, é de que mais ações sejam movidas.

Jeanine Oliveira também critica a mediação: “não chamam a sociedade civil, a comunidade tradicional, mas chamam a empresa para negociar. É difícil acreditar na boa fé. A licença foi concedida sob acusação de inúmeras irregularidades, o Judiciário deveria percebê-las caso estudasse com atenção o caso. Mas não, o Judiciário chama a empresa para negociar seu direito adquirido, negociar o interesse da mineração, revisando o processo junto das pessoas que querem tirar partes do tombamento”.

Mais suspeitas foram lançadas sobre o licenciamento da Tamisa em março deste ano, quando o novo presidente do Iphan, Leandro Grass, anulou a autorização concedida ao CMST pela gestão anterior do órgão, “em função da inobservância de ritos administrativos previstos em normativos do Iphan e, sobretudo, da ausência dos estudos necessários para a manifestação do órgão no processo”. Os atos viciados serão alvo de diligências internas.

Para a ambientalista Jeanine Oliveira, a mensagem que o Cejusc passa é que a natureza é negociável. “Sou crítica a isso, porque o que o Judiciário não vê é que podem retirar de nós uma coisa que não tem como colocar de volta. Vão retirar nossa água, nosso ar puro, nosso silêncio, nossa qualidade de vida, então o que vai ser retirado é nossa própria vida. Qual é o objetivo final? A terra é pra quem? Isso é inegociável. Se o objetivo é o melhor para a coletividade, o que deve prevalecer é a escolha pela Serra”.

Tombamento estadual e proteção integral da Serra do Curral ao longo do tempo

 

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