03/09/2021
Fórum Mineiro de Comitês de Bacias Hidrográficas reuniu especialistas para discutir a proposta de privatização do saneamento no Brasil e em Minas e suas implicações
Propagandeado como a bala de prata para a universalização e a rápida melhoria dos serviços de saneamento no país até 2033, o “novo” marco legal do saneamento básico foi sancionado, em julho do ano passado, pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Instituída pela lei 14.026, a nova diretriz abre os processos licitatórios do setor à concorrência da iniciativa privada. Contudo, também esconde armadilhas que podem nos levar ao caminho contrário do prometido: o desmonte de décadas de avanços prévios na gestão pública, o aumento de tarifas a médio e longo prazo, a exclusão de parcelas carentes da sociedade e, em último nível, a negação do saneamento básico enquanto direito fundamental.
Essas são algumas das conclusões sobre o tema a que chegou o Fórum Mineiro de Comitês de Bacias Hidrográficas (FMCBH), que congrega os 36 comitês de bacias de Minas Gerais. Em maio, a instituição reuniu nove especialistas no assunto em um webinário, para apresentar a matéria à sociedade e debater os efeitos do marco no estado.
Fundamental para a qualidade de vida de qualquer população, o saneamento básico é o conjunto dos serviços de abastecimento de água; esgotamento sanitário; limpeza e drenagem urbana e de águas pluviais; e manejo de resíduos sólidos.
Para fazer do saneamento uma enorme banca de negócios, a lei institui a prestação do serviço de forma regionalizada; isto é, os estados devem organizar os municípios em unidades regionais, para a concessão dos blocos às prestadoras de serviço por meio de licitação. A promessa: evitar que as empresas se instalem apenas nas cidades mais lucrativas e deixem ao relento municípios menores e populações já desassistidas.
Na prática, especialistas apontam que a concessão em blocos favorece grandes grupos empresariais frente às empresas públicas, como já ocorreu nos estados do Rio de Janeiro e de Alagoas, mas não resolve a questão. No Rio, por exemplo, o bloco mais barato, que reunia seis municípios e a região mais pobre da capital fluminense, foi o único que não teve propostas.
Em Minas, o anteprojeto de lei apresentado pelo governo do estado, decorrente da lei federal, passa por cima das realidades de centenas de municípios, mostra o FMCBH. Mais que isso, desrespeita e desmonta inúmeros avanços rumo à prestação do serviço público de qualidade pela Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), empresa autossustentável, mas que sofre com a pressão do atual governo por sua privatização, e de forma autônoma pelos municípios.
Relator Especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário da ONU (Organização das Nações Unidas) durante seis anos, o engenheiro, pesquisador e professor, Léo Heller, pontuou, no evento, que o Brasil está indo na contramão de tendências mundiais, que sublinham a importância do saneamento como direito fundamental, além do papel do Estado na garantia do acesso a esse direito.
“Há um movimento forte, ressaltado pela pandemia, na Europa, na Ásia, nas américas, não na direção da regionalização e privatização, mas da remunicipalização do saneamento. Centenas de grandes cidades, como Berlim e Paris, retornaram à gestão pública e municipalizada”, pontuou Heller.
Em seu último relatório para a ONU, sobre os riscos aos direitos humanos deste modelo de saneamento, Heller apontou três elementos, que, combinados, ao invés da universalização, podem levar à exclusão de parcelas carentes e a significativos aumentos de tarifas a médio e longo prazo: a característica de monopólio natural do serviço – no qual altos custos de infraestrutura e outras barreiras em relação ao tamanho do mercado afastam concorrentes; a assimetria de poder entre as empresas prestadoras, as agências reguladoras e o consumidor; e o norte da maximização dos lucros das prestadoras – a iniciativa privada não se contenta em realizar lucro, leva-o ao limite.
Como aponta a literatura da área: grandes grupos empresariais jogam contra reguladores enfraquecidos pelo modelo regionalizado e a sociedade civil sem voz. Esses grupos, assistidos por bons corpos técnicos e de advogados e muito bem preparados para defender seus interesses, contarão ainda com empréstimos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e outros estímulos do governo federal.
Em Minas, o governo divulgou, em suas apresentações do projeto ao setor privado, que a tarifa a ser perseguida é de 5% da renda familiar. De acordo com relatórios da ONU, o comprometimento da renda familiar com serviços de saneamento, não deveria ultrapassar 3%. Grande parte dos municípios no estado têm tarifas de 1,5% ou menos desse valor.
À primeira vista, não há porque pensar, porém, que a regionalização deva, necessariamente, levar à privatização do serviço, observou Marcos Montenegro, do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas). Depende de como o estado irá se comportar.
No Ceará e em São Paulo, por exemplo, o principal critério para a criação dos blocos regionais foi a manutenção dos contratos das empresas estaduais. Também serão mantidos os SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) – tipo de autarquia com independência administrativa e financeira da prefeitura, à qual o município outorga os serviços de saneamento básico. Em Minas Gerais, contudo, o governo de Romeu Zema (Novo) advoga abertamente pela privatização do saneamento e a regionalização pode ser usada nesse sentido.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 74 regiões metropolitanas no país, que reúnem 1290 dos 5568 municípios. Nelas, o saneamento já é regionalizado. Apesar de demandar extensa análise e ampla participação, os estados tinham apenas até 15 de julho para regionalizar o restante das cidades, instituindo o saneamento como serviço de interesse comum.
Criada em 1984, a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), vinculada aos SAAEs, conta com mais de 2 mil associados, respondendo por 25% do saneamento brasileiro. A Assemae surgiu para facilitar a cooperação intermunicipal, como resposta à centralização adotada, então, no regime militar, com a criação das companhias estaduais de saneamento, dando suporte aos prefeitos que resistiram e mantiveram seu serviço autônomo.
“Não mudaram nem mesmo a receita: só tinha recursos à época quem aceitasse o modelo das companhias estaduais. Estamos voltando à década de 1970? Por vários motivos parece que sim, mas não! Estamos mais altivos, vigilantes e não há desânimo dos serviços municipais, os associados estão certos de que vão continuar”, avalia Lopes Francisco Lopes, secretário-executivo da associação.
A inexistência de qualquer mecanismo que incentive a gestão pública no marco aprovado, para a Assemae, é uma das várias inconstitucionalidades da lei, o que motivou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). “Há, pelo contrário, uma clara coerção institucional, na qual a União usa a pressão por recursos para implementar o modelo proposto”, aponta o secretário.
Outro ponto levantado na ADI é que o mais importante instrumento para a decisão dos prefeitos e munícipes sobre a regionalização deveria ser um estudo de viabilidade claro. As análises do governo de Minas, contudo, são prévias, foram disponibilizadas em cima da hora e não conseguem demonstrar se as unidades regionais criadas irão universalizar seus serviços até 2033.
Poços de Caldas, no Sudoeste de Minas, atende 100% do município com água e esgoto e não irá aderir à unidade regional proposta. “Temos uma empresa de 55 anos, eficiente e enxuta e uma das menores tarifas do estado. Sem informações claras sobre custos e benefícios esperados, para que vamos aderir?”, questiona Rodopiano Evangelista, natural de Poços e vice-presidente da Assemae.
O que esperar então? “Judicialização da lei por parte de entes públicos, tendo em vista a grande insegurança jurídica gerada para o setor”, conjectura Evangelista.
Presidente da Regional de Minas Gerais da Assemae e diretor do SAAE de Passos, município de 120 mil habitantes, localizado no Sul de Minas, Esmeraldo Santos fez coro ao prognóstico de Evangelista.
“Temos um serviço de qualidade, com a tarifa quatro vezes mais barata que a da Copasa, imagina que a de uma empresa privada… O governo de Minas quer passar o trator sem dialogar, não há motivos para aceitarmos esse arranjo”, afirma Santos.
Passos é o maior município da unidade regional 10, que reúne 17 municípios. Para o diretor do SAAE local, além da judicialização da lei, um instrumento de resistência dos municípios será o esvaziamento dos blocos.
“Quando os municípios que encabeçam e que praticamente bancarão seus respectivos blocos decidirem não aderir ao plano de regionalização, a iniciativa privada vai perder seu interesse e o governo terá que dialogar. Será o caso de Passos, Poços de Caldas, Juiz de Fora, Uberlândia, entre muitos outros”, prevê Santos.
Em Belo Horizonte, a avaliação da prefeitura (PBH) é semelhante à das cidades do interior. Para Ricardo Aroeira, diretor de gestão de águas urbanas e secretário-executivo do Conselho Municipal de Saneamento da PBH, está claro, em Minas, que a lógica negocial se sobrepõe à busca pela universalização.
Ponto fora da curva no estado, Belo Horizonte tem 100% de seus lares abastecidos, 94,9% com esgoto coletado e 84,8% tratado. Mas não foi apenas o poder econômico da capital que possibilitou tais resultados.
Há décadas BH institucionalizou uma política pública que valoriza o poder local como instância máxima de gestão e decisão, com mecanismos de controle social e participação popular e uma ativa parceria com a Copasa. Isso possibilitou que, de 2004 pra cá, a população com esgoto tratado saltasse de apenas 28%,1 para o número atual.
Um fundamental mecanismo desse avanço, o fundo municipal de saneamento, está ameaçado pela proposta do governo estadual, na avaliação de Aroeira. Os recursos do fundo, provenientes de 4% da arrecadação líquida das tarifas da Copasa e das contas de água e esgoto da PBH, são destinados a inúmeros projetos de saneamento na capital. Em 15 anos, R$1,61 bilhão foi investido através dele.
No momento, a PBH está realizando um estudo de valoração da concessão da cidade, além de estudos técnico e jurídico para a identificação de riscos e deficiências da proposta do governo estadual e a definição de alternativas para prestação do serviço.
Responsável pelo saneamento de mais de 70% dos municípios do estado, a Copasa há muito firmou-se como uma empresa sustentável e com grande capacidade de investimento, e sempre foi considerada uma das melhores empresas de saneamento do Brasil. Anualmente, em média, a companhia tem lucro líquido de R$ 500 milhões, investe R$ 578 milhões na melhoria de seus serviços e distribui R$ 211 milhões em dividendos a seus acionistas.
Contudo, com a chegada do governo Zema, os rumos estão mudando.
O governo anterior, em quatro anos, previu investir R$ 2,545 bilhões e entregou R$ 2,226 bilhões do planejado. Nos primeiros dois anos do governo atual, a previsão foi de R$ 1,639 bilhão, mas apenas R$ 955 milhões tiveram esse destino, uma redução de quase 30% no valor executado. Em 2020, menos de 45% dos R$ 853 milhões previstos foram realizados.
“Comparando a previsão de investimento do governo anterior e do atual vê-se que a lógica da privatização é uma questão simplesmente ideológica, não um requisito para universalização”, comenta Eduardo Oliveira, Presidente do Sindágua-MG (Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos do Estado de Minas Gerais).
O prazo de 2033 para a universalização, inclusive, deve ser estendido até 2039, segundo o governo estadual. Ainda de acordo com o governo, são necessários R$ 19 bilhões para a universalização.
“Para universalizar o serviço precisamos de investimento e não apenas promessa de investimento. Nesse prazo, a Copasa já tem capacidade para chegar à universalização onde atua e ajudar no desenvolvimento de regiões como o Norte de Minas e os vales do Jequitinhonha e Mucuri, sem desrespeitar a autonomia dos municípios para escolher o melhor modelo de saneamento que cada localidade precisa”, completa.
A Copasa tem também seus problemas, mas como uma estatal mista, é mais permeável e sensível às questões sociais e ambientais. Há que se aprimorá-la, não estrangulá-la.
Para Marcus Vinícius Polignano, coordenador-geral do FMCBH e do Projeto Manuelzão, a perda de fundos municipais e outros importantes mecanismos das políticas públicas construídas, não se reverte do dia para a noite. Uma vez desmontada a Copasa, por exemplo, remontá-la é uma tarefa quase impossível. E aí, quem vai reconstruir essa história depois?”, questiona.
“Uma parceria público-privada seria um arranjo bem-vindo. O que não podemos aceitar é a postura de sufocar todo mundo em um mesmo processo. O não respeito ao que já foi construído é um chute na história. Não há como pensar que simplesmente desmontando o que construímos ao longo de tanto tempo será possível aperfeiçoar o modelo”, avalia Polignano.