06/06/2021
Relatório inédito feito por pesquisadores do Brasil, Portugal e Dinamarca afirma que modelo de produção agrícola deixou o Brasil mais exposto aos efeitos da pandemia
Com mais de 450 mil mortes, o Brasil ocupa a vice-liderança no número de óbitos por Covid-19 no mundo. Além da alta taxa de exposição ao vírus SarsCov-2, um grupo de pesquisadores acredita que o modelo de produção agrícola brasileira pode ter deixado o país mais vulnerável à doença. E o fator principal seria o uso intensivo de agrotóxico que afetam o sistema imunológico dos seres humanos os tornando mais suscetíveis a doenças infecciosas.
A constatação está no relatório “Agronegócio e pandemia no Brasil — uma sindemia está agravando a pandemia de COVID-19?”produzido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) junto a rede de pesquisas internacional Ipen, obtido com exclusividade pela Agência Pública e pela Repórter Brasil. No trabalho, assinado por nove pesquisadores de universidades do Brasil, Portugal e Dinamarca, o grupo trata a pandemia de Covid-19 como uma sindemia, um neologismo que combina as palavras “sinergia” e “pandemia”.
“É um termo criado nos anos 90, usado quando uma doença interage com outra produzindo o agravamento do quadro clínico”, explica uma das autoras do trabalho, a médica Lia Giraldo, pesquisadora da Fiocruz e da Abrasco. Em uma sindemia, a interação entre as doenças é facilitada por condições sociais e ambientais que podem tornar uma população mais vulnerável ao seu impacto. O que ajuda a explicar, por exemplo, porque determinados países ou grupos sociais registram uma maior taxa de casos e óbitos por Covid-19.
O relatório aponta o agronegócio como parte desse contexto. “O uso intensivo de agrotóxicos afeta o sistema imunológico, a agroindústria aumenta o risco de novas zoonoses e a produção de alimentos industrializados promove a obesidade, aumentando a vulnerabilidade à Covid-19”, diz trecho do estudo.
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. E nem mesmo durante a pandemia, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ganhou o dever de avaliar os pedidos de uso de vacinas para Covid-19, o fluxo de aprovação de agroquímicos diminuiu.
Desde 20 de março de 2020, quando foi decretado estado de calamidade pública, até o momento, 613 novos registros foram aprovados pelo Ministério da Agricultura, o Ibama e a Anvisa. Foram mais de 10 novos produtos liberados a cada semana durante a pandemia.
Para o relatório da Abrasco, a médica e pesquisadora da Fiocruz e Abrasco Karen Friedrich fez um levantamento e analisou todas as substâncias aprovadas no governo do presidente Jair Bolsonaro. “Entre as substâncias, encontramos produtos que interferem no sistema imunológico, causam problemas hormonais, interferem em várias funções de metabolismo, diabetes, obesidade e até mesmo na defesa do organismo contra patógenos”, diz a médica.
Agrotóxicos como a atrazina, carbamato e os organofosforados diclorvós e clorpirifós estão entre os que podem influenciar o sistema imunológico. Um trabalho de 2020 do pesquisador sulcoreano Gun-Hwi Lee encontrou diversos efeitos em várias células que tiveram contato com essas substâncias, como inibição da proliferação de células T e na produção de citocinas, que são importantes para garantir a recuperação de pacientes com Covid-19.
A atrazina é o quinto ingrediente ativo mais vendido no Brasil, com mais de 23 mil toneladas comercializadas apenas em 2019, segundo o Ibama. A substância é um herbicida, usado para controlar ervas daninhas em diversas plantações, como milho e cana-de-açúcar.
Mas os estudos que medem a toxicidade de venenos como a atrazina ignoram uma informação importante: a mistura de agrotóxicos. Os testes feitos em animais e células por agências regulatórias, como a Anvisa, expõem as cobaias a apenas um tipo de agrotóxico por vez. Enquanto na realidade, a população é exposta a coquetel de venenos.
A última edição do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), feito pela Anvisa, detectou alimentos vendidos nos supermercados brasileiros contendo resíduos de até 21 agrotóxicos diferentes em um único produto.
“Essa interação das substâncias ainda é muito imprevisível. Se você tem um alimento com uma substância que tem efeito no sistema imunológico, somada a mais outra substância com o mesmo efeito, e mais outra e assim por diante, a probabilidade desse efeito se manifestar com mais força é maior”, conta Karen Friedrich.
Tratar a Covid-19 como uma sindemia ainda é novidade no Brasil. Internacionalmente, o termo é usado desde o ano passado, e cientistas acreditam que o combate à doença deve mirar também nas comorbidades.
Em setembro de 2020, uma das mais importantes revista científica do mundo, a The Lancet do Reino Unido, publicou um artigo onde o editor chefe, Richard Horton, disse que o vírus SarsCov-2 não atua sozinho, mas compactuando com outras doenças. Os “cúmplices” seriam as comorbidades, como a obesidade, diabetes e doenças cardíacas.
“Precisamos separar a Covid doença do vírus SarsCov-2. A Covid começa com a infecção, mas depois evolui a um ponto que pacientes não têm mais nem o vírus no corpo, mas a doença, de forma sistêmica, já afetou o organismo. Vimos claramente que pessoas obesas, com doenças crônicas ou distúrbios imunológicos estão mais vulneráveis e suscetíveis a ter esses agravamentos”, diz a médica e pesquisadora Lia Girardo.
“O agronegócio é parte desse contexto mórbido, por levar a um modo de produção e apropriação da natureza que torna a nossa sociedade mais vulnerável ao enfrentamento de um vírus com essas características”, diz Lia.
O relatório ressalta ainda o avanço das produções agropecuárias em áreas de floresta, o que acaba com barreiras florestais e pode causar o surgimento de novas zoonoses de modo geral. As zoonoses são vírus e bactérias que originalmente infectavam animais, e que por alguma razão passam a atingir a espécie humana.
O terceiro ponto citado no relatório está relacionado à produção de alimentos industrializados, que promovem a obesidade, fator de risco para a Covid-19. “Em um cenário de pandemia, é ainda mais importante que o governo estimule e disponibilize mais alimentos saudáveis. Mas, ao invés disso, tivemos a disponibilidade de alimentos comprometida. Observamos aumento de preço do arroz e da soja”, explica Karen Friedrich.
A má-nutrição tem um impacto no sistema imunológico e em muitas outras doenças crônicas. Nas últimas décadas, o padrão de subnutrição no Brasil passou por uma transformação, caindo de 11,9% para 2% entre 1997 a 2020. No entanto, no mesmo período, a obesidade aumentou de 11,9% para 22,3%.
O Brasil seguiu uma tendência global de aumento na taxa de obesidade, impulsionado pelo consumo crescente de alimentos e bebidas com adição de açúcares, e sal, carboidratos refinados, segundo o relatório.
Além da mudança da dieta, diversos estudos apontam a influência dos agrotóxicos no surgimento da obesidade. Os organofosforados e agrotóxicos desreguladores endócrinos (DE) podem afetar o metabolismo da glicose e dos lipídios e influenciar no desenvolvimento de obesidade e diabetes Tipo 2, segundo um estudo de 2020 de um grupo de pesquisadores da Université Toulouse, na França.
“São vários fatores que estão interagindo e resultando em um cenário muito maior de vulnerabilidade da sociedade brasileira aos efeitos do Covid-19”, diz Friedrich.
Com informações sobre registro internacional de países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Brics, a pesquisadora Karen Friedrich identificou que os agrotóxicos usados no Brasil já saíram há muito tempo da prateleira de outros países.
Entre os os 400 ingredientes ativos de agrotóxicos classificados como químicos e semioquímicos e autorizados para uso agrícola no Brasil, 85,7% não tem autorização de uso na Islândia, 84,7% na Noruega, 54,49% na Suíça, 52,6% na Índia, 45,6% na Turquia, 44,4% em Israel, 43,4% na Nova Zelândia, 42,4% no Japão, 39,6% no Canadá, 38,6% na China, 35,842% no Chile, 31,6% no México, 28,6% na Austrália e 25,6% nos Estados Unidos.
Karen pesquisou também a toxicidade dos produtos. De 399 ingredientes ativos comercializados no Brasil, 120 foram relacionados a danos à saúde e ao ambiente. Considerando as substâncias para as quais estão disponíveis dados de comercialização no país, 67,2% deste volume está associado a pelo menos um dano crônico grave.