07/02/2020
Investigações sobre a atuação da empresa em Conceição do Mato Dentro (MG) foram feitas pelo então Ministério do Trabalho e Emprego, em força-tarefa com a Polícia Federal, Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho
A Anglo American iniciou, no fim de 2014, as operações do projeto Minas-Rio, para levar minério da mina do Sapo em Conceição do Mato Dentro (MG), até o Porto do Açu, em São João da Barra (RJ). A construção da estrutura, que inclui o maior mineroduto do mundo, com 529 quilômetros de extensão, é marcada por dois grandes episódios de trabalho análogo à escravidão, envolvendo, respectivamente, 172 e 185 trabalhadores.
No primeiro caso, em novembro de 2013, foram libertados 172 trabalhadores, entre eles 100 haitianos, que viviam em condições degradantes. De acordo com reportagem do Repórter Brasil, as vítimas contratadas pela Anglo e pela construtora terceirizada Diedro, foram encontradas em diversos alojamentos, incluindo a casa que, segundo o auditor fiscal Marcelo Campos, que acompanhou ação de fiscalização pelo então Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), lembrava uma senzala.
Segundo a fiscalização, os haitianos foram recrutados na cidade de Brasiléia, no Acre. A viagem, de aproximadamente quatro mil quilômetros, foi feita em ônibus mal conservados durante dias.
Em entrevista ao Brasil Econômico, a procuradora Elaine Nassif, responsável pelo caso, relatou que “os banheiros estavam imundos, os trabalhadores sequer tinham armários, os quartos estavam superlotados, em alguns locais não havia fornecimento de água potável, em outros havia somente um filtro de cerâmica”. Nassif também detalhou que alguns dormitórios não tinham camas e eletrodomésticos.
Entre os brasileiros, foram libertados migrantes nordestinos que acabaram endividados após serem obrigados a pagar entre R$ 200 e R$ 400 como custo de transporte para chegar até o local de trabalho, o que caracterizou servidão por dívida. A legislação trabalhista veda esse tipo de prática, delegando ao empregador a responsabilidade de oferecer transporte aos funcionários.
Também foi relatado que a comida fornecida era de baixa qualidade e alguns dos trabalhadores chegaram a ter hemorragia no estômago. Durante as operações, alguns funcionários prestaram depoimento dizendo ainda que recebiam salários com valores inferiores aos que foram prometidos por intermediadores da mineradora.
88 dias de trabalho sem descanso
Pouco mais de seis meses após a primeira operação, em maio de 2014, a Anglo foi flagrada novamente, desta vez por submeter 185 trabalhadores a jornadas exaustivas. Um mecânico montador relatou ter trabalhado durante 88 dias seguidos, sem um dia sequer de descanso. Já um motorista, no dia 1 de agosto, começou sua jornada às 6h e só encerrou o expediente 20 horas depois, às 2h do dia seguinte. Quatro horas depois, novamente às 6h, já estava trabalhando de novo.
Nesse episódio, foram autuadas, além da Anglo American, a Milplan, Enesa e Construtora Modelo, que prestavam serviço terceirizado à mineradora. Algumas das vítimas foram submetidas a jornadas de até 200 horas extras por mês durante até cinco meses. Além das horas extras, o horário de almoço também não era respeitado: em vez de uma hora, as vítimas tinham direito a somente 20 minutos de pausa para comer.
A maioria destes empregados é formada por motoristas, principalmente de van, que fazem o transporte de outros funcionários. Tendo isto em vista, as jornadas exaustivas que colocam em risco a saúde e a segurança do trabalhador são ainda mais condenáveis.
Foram enquadrados em condições análogas às da escravidão os empregados que fizeram, no mínimo, 60 horas extras por mês durante pelo menos três meses. A legislação brasileira prevê que, além das 44 horas semanais de trabalho, divididas em 8 horas diárias, são permitidas somente duas horas extras excedentes.
Prêmios por jornada desumana
Das 185 vítimas, 46 trabalhavam para a Milplan e 53 para a Enesa, que faziam construção pesada nas minas. Segundo o fiscal Marcelo Campos as duas empresas desenvolveram um sistema de sorteio de prêmios que incentivava a adesão de quem aderisse às jornadas exaustivas. “As premiações iam desde caixas de bombom até carros”, disse.
Ele explica que, em muitos casos, o trabalhador não se sente enquadrado em trabalho escravo porque, ao contrário do que acontecia até o século XIX, eles recebem pelo trabalho. “Todas as horas extras são pagas, o que fazia com que aderissem ao trabalho desumano”, afirma.
As investigações do MTE foram realizadas a pedido da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que vinha recebendo denúncias que envolviam também grilagem de terras e muitos problemas com água e abastecimento. Participaram da força-tarefa de inspeção que resultou no flagrante a Polícia Federal, Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).
O MPT chegou a propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) a Anglo American para melhorar o ambiente de trabalho dos empregados e dos terceirizados. Entretanto, a companhia britânica não demonstrou interesse em assinar o termo. Em julho de 2018, a mineradora foi condenada a pagar uma indenização de R$ 2 milhões por dano moral coletivo pela 30ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte.
Esta é a segunda parte de uma série de reportagens do Gabinete de Crise Sociedade Civil. Para ler as demais, clique aqui.