02/05/2022
Mineradora tenta calar livre manifestação acionando judicialmente seis lideranças comunitárias do distrito de Ouro Preto
[Reportagem do jornalista Paulo Barcala.]
A mineradora Vale impetrou ação judicial contra os atingidos de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, nominando algumas de suas principais ativistas, para tentar impedir que sejam realizadas manifestações em determinados locais públicos da comunidade e de seu entorno, como no acesso à Mina Timbopeba e proximidades, na Rodovia MG-129 e no trevo do subdistrito marianense de Bento Rodrigues.
A juíza da 1ª Vara Cível da Comarca de Ouro Preto, Kellen Cristini de Sales e Souza, havia rejeitado o pedido da empresa para que fosse expedida decisão liminar, em caráter de urgência, mas a Vale recorreu ao Tribunal de Justiça, segunda instância, em Belo Horizonte, e obteve o que pretendia. Como se trata de despacho liminar, portanto, provisório, o mérito da ação ainda será analisado na primeira instância, em processo no qual todas as partes serão chamadas a se manifestar.
Entre as citadas expressamente pela ação da mineradora está Carla Dayane Dias, umas das destacadas “Guerreiras do Pereira”, nome que a comunidade carinhosamente dá ao grupo de mulheres que lidera a luta dos atingidos.
Ela recebeu citação judicial em plena manhã do feriado de 21 de abril, com prazo de 15 dias para contestar as alegações da mineradora. Em tratamento com nutricionista, em razão de anemia, provavelmente de fundo emocional, o que a levou também a acompanhamento psicológico, Carla constata: “é uma perseguição escancarada, querem nos exterminar, enlouquecer. Já tentamos diálogos e mais diálogos, à espera indefinidamente, e nada. A Vale não obedece a lei, que dá direito aos atingidos a uma Assessoria Técnica Independente, nem reconhece que todos somos atingidos, nem mesmo de gente que foi removida. A empresa não obedece ordens judiciais e ainda quer que a gente fique quieta”.
Sobre a luta que travam, Carla ensina: “Não é fácil sair da cama quentinha às 4h30 da manhã, debaixo de chuva, sem banheiro no caminho e no lugar da manifestação, passando fome e sede, mas a gente tava lá. A Vale tá tirando nossa vida aos poucos. Já tirou nosso lazer, o direito de ir e vir e agora quer tirar nosso grito de socorro, mas vamos continuar chamando atenção para defender nossas vidas”.
Outra das citadas é Alessandra dos Santos Lopes, proprietária de uma padaria na Rua Padre Ângelo, inaugurada em 2018 e em pleno sucesso quando o nível de emergência da barragem foi elevado. O comércio, próximo à Zona de Autossalvamento (ZAS, veja abaixo), acabou fechando porque a maioria dos clientes foi removida.
Sempre na luta, Alessandra processou a Vale por perdas e danos relativos à padaria e cuida de espalhar a causa, divulgando as manifestações para a imprensa e nas redes sociais. Segundo ela, “a Assessoria Técnica Independente é o único apoio que a gente tem para o levantamento da matriz de danos, para uma compensação justa”.
Das seis pessoas citadas na ação original da Vale, restaram quatro após a empresa solicitar a exclusão dos nomes de Ivone Pereira e Wanderley Santos, ambos também ativistas de destaque no distrito. Além de Carla e Alessandra, Camila Queiroz e Sandra Helena seguem na mira da Vale. Não é coincidência que sejam todas mulheres, vítimas preferenciais da opressão.
Marcus Vinícius Polignano, coordenador do Projeto Manuelzão, que acompanha e apoia a jornada do Pereira, é fulminante na avaliação: “A população está sendo vitimada pela Vale pela segunda vez. As pessoas não pediram para serem atingidas, para terem seus direitos violados, para verem modificadas as suas vidas em função da mineração. Foi exatamente a falta de segurança do empreendimento que gerou todo esse tumulto na vida das pessoas de Antônio Pereira. Até hoje não foi concedido o que a lei garante, que é a Assessoria Técnica Independente para defender os atingidos. De forma democrática eles fizeram manifestação pelos seus direitos e por isso viraram réus. Reivindicar direitos agora virou caminho para a criminalização, enquanto os verdadeiros réus continuam impunes fazendo o que querem e como querem, sem uma presença mais efetiva da Justiça. É absolutamente inadmissível que as vítimas desse processo desgovernado da mineração se tornem rés. Não há palavras para descrever esse absurdo, é um surrealismo total, uma intolerável inversão de valores”.
Ronald Guerra, o Roninho, vice-presidente do Instituto Guaicuy e coordenador do processo de implantação da Assessoria Técnica Independente (ATI) em Antônio Pereira, se diz “surpreendido com a ação judicial para impedir manifestações” e relembra: “Houve várias delas no processo de luta dos atingidos para que seus direitos sejam respeitados. Os resultados têm sido efetivos, pois a paralisação da rodovia confere visibilidade à causa. Essa manifestação específica, de dezembro de 2021, tinha como reivindicação central a entrada imediata da ATI no território, direito reconhecido pela justiça de primeira instância e pela lei”.
Roninho frisa que “o direito de manifestação é constitucional e é a forma que eles têm de lutar para que a Vale atenda as demandas da comunidade. O impacto é enorme, o descomissionamento da barragem Doutor e toda a relação com a comunidade são permeados de danos e conflitos em grande escala. É essencial que a Justiça, que reconheceu o direito dos atingidos em primeira instância, inclusive à ATI, aja mais uma vez positivamente”.
Convém realçar trecho da decisão da juíza Kellen Cristini: “Importa dizer que, assim como a VALE S/A assume os riscos decorrentes da sua atividade empresarial, de igual modo deverá, às suas expensas, suportar os ônus oriundos de sua conduta em razão da insatisfação dos populares por sua atividade desenvolvida, que, a meu ver, estão dentro da legalidade. Convém destacar, ainda, que, mais do que buscar reprimir/obstaculizar as manifestações, deve a autora buscar o diálogo com a população atingida, ouvir seus anseios e reclamações, de modo a tentar, ao menos minimamente, reduzir os impactos de suas atividades sobre a vida da população do Distrito de Antônio Pereira”.
Os cerca de cinco mil moradores do distrito têm sido vitimados há anos pelos efeitos da mineração. Desde 2015, com o rompimento da barragem da Samarco em Bento Rodrigues, localidade vizinha e de fortes relações com Antônio Pereira, o temor já povoava os pensamentos da comunidade. Quatro anos depois, quando estourou a B1 da Vale em Brumadinho, caiu por terra o último grão de confiança na alegada estabilidade da Barragem Doutor, ameaçadoramente instalada acima do Pereira, como os naturais de lá chamam sua terra.
Em abril de 2020, a empresa contratada para atestar a segurança da estrutura não garantiu sua estabilidade. Ato contínuo, a mineradora teve que elevar de 1 para 2 o nível de emergência, numa escala que termina em três. Nesse patamar, o Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração (PAEBM) determina a remoção de todos os moradores da chamada Zona de Autossalvamento (ZAS), trecho do vale a jusante em que não há tempo suficiente para intervenção da autoridade competente em situações de emergência.
O horror sentou praça: famílias inteiras removidas, casas abandonadas, comércios fechados, equipamentos sociais desativados, vínculos familiares e de amizade desfeitos. A esse enorme custo, vieram se somar, coisa de um ano mais tarde, os transtornos provocados pelo início das obras de descomissionamento da barragem, cuja conclusão está prevista somente para 2029, transformando o lugar em reino de poeira, trepidação por máquinas e caminhões pesados, trânsito intenso, problemas no vertedouro construído para, em tese, trazer mais segurança e fechamento do acesso a áreas tradicionais de lazer. Foram-se embora a paz, a saúde, os modos de vida, a convivência, a história, os negócios, propriedades, moradias e os sonhos da comunidade.
Para adquirir condições minimamente equilibradas de negociar a efetiva reparação dos danos causados, tendo como antagonista empresa do porte e do poder da Vale, a luta popular conquistou, primeiro no judiciário e depois, na própria legislação estadual, o direito de ter a seu serviço uma Assessoria Técnica Independente, constituída por técnicos de várias formações, do Direito à Saúde, entre outras especialidades, para apoiar e informar as ações dos atingidos. O Instituto Guaicuy foi escolhido, ainda em dezembro de 2020, por dois terços dos votos da população de Antônio Pereira, em processo homologado pela Justiça, para cumprir essa missão, mas ainda hoje não conseguiu entrar em campo por força das protelações que a Vale têm operado judicialmente.