10/01/2025
Relatório destaca emissão indiscriminada e dispensa de licenciamento ambiental para os requerimentos de pesquisa
Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou irregularidades graves nos processos da Agência Nacional de Mineração (ANM) para a concessão de guias de utilização (GU). Em vez de servir como uma autorização excepcional, como prevê a legislação, as guias têm sido emitidas de forma indiscriminada, permitindo que mineradoras operem sem as licenças adequadas. Ou seja, estão sendo tratadas como se fossem uma autorização permanente para a extração e comercialização de minerais.
O uso das guias de utilização está previsto no Código de Mineração e deveria ser restrito a situações específicas, como ensaios industriais e testes para viabilizar a exploração mineral de forma controlada, antes da concessão definitiva da lavra. No entanto, os auditores constataram que a ANM tem emitido essas guias em volumes elevados, sem devida fiscalização e controle, permitindo que as mineradoras realizem operações comerciais sem que os processos necessários sejam feitos.
O relatório de fiscalização da auditoria, realizada em outubro de 2024, revela que, no período de 2017 a 2021, a ANM emitiu 4.777 guias de utilização, enquanto apenas 2.326 portarias de concessão de lavra foram publicadas. Isso significa que, em muitos casos, as guias estão sendo usadas como um substituto temporário da concessão de lavra, permitindo a exploração e comercialização de minerais em grande volume.
O ministro do TCU, Jorge Oliveira, relator do processo, defende que “a excessiva utilização das guias como forma de antecipar indevidamente os efeitos da concessão de lavra subverte a lógica dos regimes de autorização de pesquisa e de concessão, ofuscando a relevante função da pesquisa mineral de proporcionar o conhecimento sobre a jazida e de possibilitar que a posterior lavra ocorra de forma racional, minimizando os danos ao meio ambiente”.
O TCU destacou que a ANM tem priorizado a análise e emissão das guias em detrimento da avaliação dos relatórios finais de pesquisa e dos pedidos de concessão de lavra. Essa prática viola o princípio constitucional da eficiência, estabelecido no artigo 37 da Constituição Federal, que exige da administração pública rapidez e correta gestão dos processos administrativos.
O relatório revela casos alarmantes, como 15 processos de requerimento de pesquisa protocolados há mais de 35 anos, e um deles que tramita há mais de 51 anos. Além disso, há requerimentos de concessão de lavra que aguardam decisão há mais de 20 anos. Enquanto esses processos permanecem sem análise, a emissão de guias de utilização avança sem o rigor necessário.
O relatório também destaca que 23% dos processos auditados estão na fase de requerimento de concessão de lavra – ou seja, já passaram pela etapa de pesquisa e estão prontos para avaliação final. No entanto, a ANM tem priorizado a emissão de guias temporárias, o que prolonga a indefinição sobre a concessão definitiva.
Um dos problemas mais graves identificados pela auditoria foi a dispensa ilegal do licenciamento ambiental para a emissão das guias. Essa exigência é fundamental para garantir que os riscos ambientais sejam calculados e que a exploração mineral ocorra de maneira menos destrutiva. A ANM, contudo, ignorou essa obrigatoriedade, o que contraria a legislação ambiental brasileira.
A falta de comprometimento com a legislação ambiental expõe o meio ambiente a danos potenciais, especialmente em áreas ecologicamente sensíveis. A prática ilegal de dispensar o licenciamento cria um precedente perigoso para uma exploração desenfreada, sem uma avaliação adequada dos impactos que ela pode causar.
Júlio César Matheus, geógrafo e pesquisador da Universidade Federal de Viçosa, pesquisou o uso da guia de utilização na região da Zona da Mata para sua dissertação de mestrado. Ele acredita que “as guias estão sendo usadas como mecanismo de burla da legislação vigente” e que essa prática segue a tendência de flexibilização das normas ambientais no estado de Minas Gerais.
O pesquisador chama atenção para uma possível “nova divisão do trabalho na área da mineração de ferro”, onde pequenas mineradoras assumem a extração inicial com o uso das guias, enquanto grandes mineradoras atuam como atravessadoras, comprando e comercializando o minério extraído.
A Lei 9.314/1996, que reformulou parte do Código de Mineração, revogou a possibilidade de comercialização de minerais extraídos na fase de pesquisa, o que significa que a ANM não deveria autorizar a venda de minerais a partir das guias de utilização.
Para o geógrafo, o excesso de concessão de guias sem critério é um grande problema. “Estamos alienando os nossos recursos, tornando eles uma moeda, pois a partir do momento que você utiliza o minério retirado para pesquisa, comercializa e financia o próprio projeto, é o estado que está pagando a conta”, conclui.
Ao permitir que a extração ocorra sem a devida regulamentação, o Estado acaba financiando atividades que podem comprometer o equilíbrio ambiental e social, afetando tanto os ecossistemas quanto as comunidades que dependem desses recursos.