Autonomia e Participação na Gestão de Recursos Hídricos

05/08/2015

O comitê tem de ser um espaço de questionamento e também de transgressão, onde se constrói política pública a partir das águas e pelas águas

Autonomia pode ser entendida como um conceito aplicável à instituições ou pessoas que possuem a capacidade de se autogerir, de estabelecer as suas próprias regras, sem imposições de outrem. A autonomia é o andar sozinho, com as próprias energias, ciente e responsável de suas ações e do contexto em que se insere.
    O oposto da autonomia é a heteronomia que representa a incapacidade de reconhecer a origem das regras, de obedecer cegamente sem compreender e sem questionar as formas como as coisas se constroem. Por isso, como é oposto à heteronomia, a autonomia deve pressupor a transgressão e o questionamento às regras externas; não significa negar as estruturas externas, mas sim reconhecer essas estruturas e de forma crítica poder discordar e mudá-las se assim for necessário.
    A autonomia não deve se formar pelo isolamento, mas deve se consolidar pelo diálogo e pela construção coletiva, ela é uma travessia, uma construção contínua desenvolvida pelas práticas e diálogos cotidianos. O professor Paulo Freire, nesse sentido, nos ensina que a autonomia é “amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiência respeitosas da liberdade”. (FREIRE, p. 67, 1997)
    Acreditamos que é possível entendermos autonomia como uma sucessão de conquistas que permitam a transgressão e a construção diferenciada a partir da perspectiva dos sujeitos. A autonomia é um conceito que pode ser utilizado para se pensar pessoas e instituições, mas como discutir a aplicação do conceito de autonomia a uma instituição complexa, plural e conflituosa como os comitês de bacia e os subcomitês?
    Segundo a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9433/97), “a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades” (BRASIL, 1997). Os comitês são compostos por diferentes (e conflituosos) atores e deve buscar o diálogo, procurando aprimorar o entendimento entre esses entes, compartilhando experiências e promovendo novas formas de atuar no território. Os rios são apropriados de múltiplas formas pelas sociedades modernas – além de importante recurso –, são vistos também como potenciais instrumentos políticos por meio da dinâmica social que os envolve.
    A autonomia é um pré-requisito para a valorização do outro e de sí próprio. Acreditamos que pessoas autônomas reconhecem seus limites e suas incertezas, assim como valorizam os diversos saberes individuais e coletivos, saberes que nem sempre são técnicos. Para se ter uma reflexão sobre a autonomia dos comitês de bacias, é preciso pensar em como se constroem espaços de encontro do complexo, como se possibilita a participação de vários tipos de sujeitos na gestão das águas de forma justa, e da mesma maneira, como se promove a descentralização dos poderes em condições distintas de existência.
    Aqui é preciso destacar a importância de um processo dialógico de debate, que priorize e reconheça a existência de realidades desiguais e conflituosas no seio dos comitês de bacias. Além da gestão do substrato espacial (o rio e sua bacia) é preciso gerir também as relações sociais que ali se encontram. Na prática muitas contradições podem existir e a gestão compartilhada das águas deve permitir que uma pluralidade de interesses, muitas vezes conflitantes e supostamente incompatíveis, se encontrem. Mas como é possível diálogo se temos instâncias e estruturas tão diferentes e tão desiguais. Como pode haver diálogo entre o Estado, as grandes empresas usuárias de água, as comunidades ribeirinhas e as organizações da sociedade civil? Como dialogar se os atores possuem capacidades técnicas e articulações políticas tão discrepantes e desiguais? É justamente devido à existência de discursos distintos, dessa estrutura desigual, que se precisa visar à autonomia de seus participantes, apenas assim podemos construir relações menos desiguais e consequentemente mais justas, efetivando condições de negociar interesses tão discrepantes. Nessa perspectiva a autonomia é entendida como um processo de conquista social, conquista de grupos que hoje conseguem construir uma sociedade que se auto-questiona, que se desconstrói e reconstrói a partir das necessidades e interesses coletivos.
    Não existe receita de bolo. Mas, ao olhar para trás e ver o caminho percorrido pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, é possível perceber a busca por autonomia em momentos de sua existência. O CBH Rio das Velhas buscou efetivar o que preconiza a Lei 9.433/97 ao publicar a Deliberação Normativa 02/2004, que instituiu seus Subcomitês: com “finalidades propositivas e consultivas, cada um a sua maneira, como formas efetivas de descentralização do planejamento e da gestão territorial” (SEPULVEDA, p. 5, 2012). Avançou no sentido de descentralizar a tomada das suas decisões, compartilhando poderes com representantes de toda a bacia. Além desses espaços de diálogo, que são os subcomitês, é importante lembrar também atuação na bacia do rio das Velhas, do Projeto Manuelzão, que criou um movimento social em prol de rios vivos. A existência dos Núcleos Manuelzão, que compartilham informações, discutem e definem ações locais para solucionar problemas ambientais e sociais.
    É possível aos comitês terem autonomia, uma vez que são amarrados de forma heterônoma às estruturas e às competências jurídicas e normativas? É possível que o CBH seja mais que uma instância de decisão de alguns instrumentos de uma política setorial e restrita? Queremos que o CBH faça mais do que analisar instrumentos da gestão de recursos hídricos! Acreditamos que é possível que os Comitês, seguindo com seu tempo e suas condições limitadas, possam desenvolver autonomia, partindo de um movimento social e de um forte imaginário na mente dos sujeitos. O Comitê tem de ir além de suas capacidades normativas e jurídicas para efetivar uma gestão territorial social e ambientalmente mais justa; o comitê tem de ser um espaço de questionamento e também de transgressão, onde se constrói política pública a partir das águas e pelas águas.
    Se queremos a autonomia isso significa o direito de discordar uns dos outros, mas este discordar deve ser propositivo, deve conseguir questionar as estruturas e propor adequações. É preciso permitir a mudança em um legítimo espaço de diálogo e construção. Sabemos que para que um espaço de diálogo legítimo seja construído, é preciso que os agentes da sociedade civil, acreditem em sua própria força, escavem e briguem pela construção de um tipo de participação igualitária. Isso se dá, entre diversas outras ações políticas, na formulação, desenvolvimento e avaliação dos projetos que são comuns a todos. Essa é uma forma de explicitar as diferenças, fazendo desvelar o sentimento de corresponsabilidade de todos nos processos de construção de um projeto público.
    Da mesma forma deve ser entendimento do Estado que a democracia parte também da construção de condições para a participação coletiva. Uma relação que possa permitir a liberdade de negociação entre vários atores sociais se estabelece quando gera a sensação de interdependência envolvendo o Estado e a sociedade.
    Discutir autonomia significa discutir as relações de poder que existem e as responsabilidades que geram. E justamente, por este motivo, grupos sociais precisam constantemente fazer valer a autoridade que lhe é legítima. A autonomia que se quer construir não está apenas em paridade quantitativa, mas na qualidade de sua participação, no respeito à liberdade de expressão e no poder de transformação. Para isso, é preciso exercitar uma democracia que se reinventa no cotidiano, entendendo isto como certo alargamento da política, trazida para os lugares de experimentação da vida. Os caminhos percorridos pelos conselheiros devem permitir o diálogo entre diversos saberes e práticas e, na direção de somar conhecimentos aos níveis de consciência dos sujeitos, se deixar deslocar, buscando perceber formas de ser e atuar no mundo.
    Não existe uma fórmula de como ter autonomia, mas existem formas de conduzir escolhas, de ter atitudes e comportamentos coerentes com o que se almeja em grupo. Para isso é preciso navegar, nadar, atravessar o rio, o que não se encerra em operacionalizar as ações. É preciso reavaliar constantemente nossas práticas, capacitando os conselheiros, convidando outros atores, ampliando o debate na direção do horizonte que se quer alcançar. Que sejamos também capazes de reconhecer a origem deste movimento, do seu imaginário transgressor que faz de sua autonomia uma travessia, uma construção contínua e também um estado a ser atingido em sucessão de pequenas conquistas.

 

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

Brasil.
LEI DAS ÁGUAS. Lei 9.433, de 08 de Janeiro de 1997. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9433.htm; acesso em 04 de
maio de 2011.

SEPULVEDA, Rogério. Descentralização participativa
por meio dos subcomitês na bacia hidrográfica do rio das Velhas/Brasil.
VI Fórum Mundial das Águas. Marselha/França, fev. 2012.

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