03/06/2024
Em um cenário de aumento das temperaturas e chuvas extremas, moradores e especialistas questionam eficácia de soluções baseadas em concreto
As intensas chuvas que assolaram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas reacenderam um debate de longa data entre cientistas e evidenciaram a urgência de ações governamentais diante das consequências devastadoras das mudanças climáticas já em curso.
O crescimento acelerado das áreas urbanas nos últimos anos, desacompanhado de propostas e alternativas do poder público para esses novos cenários, tem gerado uma série de impactos negativos, destacando-se as inundações frequentes, que acarretam prejuízos econômicos, financeiros e, sobretudo, sociais.
As inundações ocorridas no Rio Grande do Sul são em grande parte fruto das atividades humanas. Altos índices de desmatamento, urbanização desordenada e desequilíbrio nos ecossistemas são fatores interconectados que contribuem para catástrofes como essa que consternou o país e que demandará anos ou mesmo décadas de ações de reconstrução e adaptação.
A emergência climática decorrente do aumento da temperatura da Terra, ressalta a geógrafa Viviane Batista, que atuou em prol do Parque Ecológico do Brejinho, em Belo Horizonte, “tem impactos em diferentes prazos e locais, pois a natureza é dinâmica e interligada. O que ocorre na Amazônia pode influenciar eventos no Sudeste e Sul do Brasil”.
A inundação das áreas próximas aos cursos d’água obedece a dinâmicas ambientais, geográficas e geológicas próprias, que incluem características como a posição no vale, o tipo do solo, a extensão da vegetação ciliar etc. Seus impactos negativos, sobretudo em contexto urbano, podem ser amplificados por diversas causas, incluindo mudanças na dinâmica de habitação e no uso do solo, modificações nos cursos d’água e eventos climáticos extremos.
A doutora em Recursos Hídricos pela UFMG e professora do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Minas Gerais, Lilia Oliveira, explica: “a redução da capacidade de infiltração do solo, o assoreamento dos rios e intervenções hidráulicas, somados aos efeitos das mudanças climáticas, ampliam as inundações, tornando-as mais frequentes e destrutivas”.Assim como a maioria das grandes cidades brasileiras, Belo Horizonte tem enfrentado nos últimos anos os desafios decorrentes da rápida expansão urbana, que incluem inundações frequentes com graves consequências para a população às margens dos cursos d’água, especialmente os estratos mais vulneráveis.
Para enfrentar essa questão, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) criou planos de recuperação e regeneração de áreas degradadas. Nesse sentido, foi elaborado o Plano Diretor de Drenagem de Belo Horizonte (PDD), que prevê a realização de obras estruturais para recuperar e preservar os 200 quilômetros de cursos de água distribuídos em 47 sub-bacias hidrográficas da cidade.
Entre as intervenções planejadas, destaca-se a construção de bacias de detenção. Até o momento, 17 dessas estruturas já foram concluídas, outras quatro estão em fase de construção, e mais 14 estão programadas para serem erguidas nos próximos anos.
As bacias de detenção funcionam como grandes reservatórios temporários nas bacias hidrográficas urbanas, com o propósito de mitigar os impactos das grandes inundações. Quando estão vazias durante períodos de estiagem, são chamadas de reservatórios ou bacias de detenção. Já quando mantêm um volume constante de água, são denominadas reservatórios ou bacias de retenção.
A proposta da PBH de construir bacias de detenção tem sido objeto de intenso debate, com muitos expressando preocupações sobre os potenciais impactos negativos dessas estruturas, com destaque para as discussões entre o poder público e os moradores da sub-bacia do Córrego Cercadinho. Em maio deste ano, movimentos em prol do Cercadinho apresentaram uma carta aos candidatos à prefeitura de BH, cobrando, entre outras ações, a suspensão da construção das bacias de contenção e a recomposição e manutenção das áreas verdes e matas desde a nascente até a foz do Cercadinho.
A professora Lilia Oliveira, especialista em Recursos Hídricos, defende que as bacias de detenção são eficazes para conter enchentes dentro dos limites previstos pelo projeto. Mesmo diante de chuvas mais intensas do que as previstas, ela acredita que essas estruturas podem atenuar impactos das cheias. No entanto, ela alerta que nenhum projeto é completamente à prova de falhas, citando uma máxima entre os hidrólogos de que a pior enchente e a maior seca ainda estão por vir.
Por outro lado, o membro do Grupo de Pesquisa Morar de Outras Maneiras (Mom), da UFMG, Roberto Eustáquio dos Santos, levanta preocupações sobre a falta de dados técnicos de engenharia para embasar a construção das bacias de detenção como solução para as enchentes. Ele questiona se o volume que essas bacias podem reter é realmente suficiente para lidar com o volume de água produzido durante as chuvas. Ele pede acesso à base de cálculo utilizada para chegar a esses valores antes de qualquer decisão ser tomada.
A Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH), em estudos realizados sobre as bacias de detenção em Belo Horizonte, constatou que os custos de retirada do material acumulado nelas, em manutenção, são praticamente equivalentes ao valor total gasto na construção dessas estruturas.
Especificamente, a possível construção de três bacias de detenção na área de preservação permanente (APP) do Córrego Cercadinho, nos bairros Estoril, Estrela Dalva e Havaí, na região Oeste da capital, tem gerado preocupações adicionais. Moradores e especialistas temem que tais obras possam aumentar os problemas provenientes das inundações e da estabilidade de encostas na região.
Um estudo sobre os impactos ambientais, solicitado pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), da construção das bacias de detenção na Sub-bacia do Córrego Cercadinho e no Centro Municipal de Agroecologia e Educação Ambiental para Resíduos Orgânicos (Cemar), foi conduzido pela equipe técnica do Projeto Manuelzão, com participação dos movimentos comunitários SOS Mata do Havaí e Salve a Mata do Estoril. O estudo levou em consideração aspectos ecológicos, hídricos, paisagísticos, culturais e comunitários do Cemar.
Entre as conclusões do estudo, destacam-se os impactos negativos previstos sobre a mata existente na área, devido à maior absorção e reflexão dos raios solares causada pela presença de concretos, vidros e asfaltos. O estudo também alerta para o fato de Belo Horizonte ter sido apontada em uma pesquisa recente como a capital com maior aquecimento no país. A construção das bacias de detenção pode levar à extinção de uma das poucas áreas remanescentes de recarga e infiltração natural na região Oeste, devido à inserção de asfalto e impermeabilização do solo no local.
A geógrafa Márcia Rodrigues Marques, coordenadora do Sub-Comitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Arrudas e Coordenadora de Integração do Projeto Manuelzão/Instituto Guaicuy, argumenta que as enchentes frequentes na área não são causadas pelo córrego em si, mas sim por obras de drenagem mal planejadas.
Ela destaca que já foram construídas duas bacias de detenção nos córregos Engenho Nogueira e São Francisco para conter as inundações na Pampulha, mas nenhuma delas se mostrou eficaz. Márcia questiona a falta de estudos sobre a eficácia dessas bacias, assim como as condições diferenciadas de cada sub-bacia, antes de sua construção e critica a prática de implantá-las em áreas que já desempenham a função de bacias de detenção, como a mata ciliar em áreas de preservação ambiental, como as APP e parques.
Neide Pacheco, a Neidinha, do Núcleo Manuelzão Cercadinho, corrobora essa visão, apontando para experiências anteriores que demonstraram a ineficácia das bacias de detenção, causando extravasamento de águas e inundações na área, além de trazer insegurança para os moradores locais. Ela critica a falta de manutenção adequada dessas estruturas, que acabam acumulando lixo, água suja e lama, resultando em custos econômicos, ambientais e sociais significativos.
Ex-moradora do Bairro Indaiá, próximo ao Parque Ecológico do Brejinho, onde uma barragem de contenção foi construída, a geógrafa Viviane Batista destaca a supressão da vegetação e a impermeabilização do solo, que descaracterizaram a área e afetaram o ambiente natural.
Diante dos problemas em torno das bacias de detenção na Sub-bacia do Córrego Cercadinho, Neidinha enfatiza a necessidade de respeitar a realidade local e buscar alternativas mais sustentáveis. Ela argumenta que as áreas onde a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) planeja instalar as bacias já são naturalmente propícias à infiltração das águas, o que torna desnecessárias construções de grande porte que impactariam significativamente o ambiente.
Neidinha propõe soluções como o aumento das matas ciliares, a construção de jardins de chuva e outras medidas harmoniosas à natureza e que não prejudiquem as áreas verdes nativas. Ela ressalta a importância do diálogo entre prefeitura e os grupos locais para encontrar alternativas mais adequadas para lidar com as inundações, especialmente nas áreas urbanas impermeabilizadas dos bairros Estoril e Buritis.
Em complemento a essa visão, Lilia Oliveira destaca a importância de entender as causas das inundações nas bacias hidrográficas, dadas as suas complexidades. Ela cita a proposta de técnicas compensatórias em drenagem urbana, que buscam mitigar os efeitos da impermeabilização e da rede de drenagem nas áreas urbanas. Essas técnicas incluem medidas como incentivar a criação de jardins e pomares nas residências, coleta e aproveitamento da água da chuva, pequenas bacias de detenção ou retenção, renaturalização dos rios e aumento da rugosidade dos canais.
A professora também destaca a Lei das Piscininhas, aprovada em São Paulo em 2002 (Lei Municipal nº 13.276/2002), que prevê o controle do escoamento por lote. Ela considera essa medida uma alternativa frutífera a ser adotada por outros municípios brasileiros.