Barragem da Vale em risco iminente de ruptura apresenta anomaliaProjeto Manuelzão

Barragem da Vale em nível máximo de emergência entre Ouro Preto e Itabirito apresenta anomalia

09/04/2024

Engenheiro aponta que informações disponíveis são lacunares sobre o risco à estrutura; pesquisador suspeita de estratégia da mineradora para expropriar terrenos vizinhos

No complexo Fábrica, da Vale, na Bacia do Velhas, sete das nove barragens estão instáveis. Foto: Reprodução Google Earth.

A mineradora Vale é responsável por mais um episódio que agrava o cenário de insegurança e falta de transparência sobre barragens em Minas Gerais. A barragem de rejeitos Forquilha III, da mina Fábrica, em risco iminente de rompimento desde 2019, apresentou uma nova anomalia em meados do último mês. A informação, contudo, veio a público somente na última quinta-feira, 4.

A barragem, que tem 77 metros de altura e represa 19,3 milhões de m³ de rejeito, fica na divisa entre Ouro Preto e Itabirito. Em caso de rompimento, o material verteria para o Ribeirão Mata-porcos, sentido a Itabirito. Apesar disso, o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Velhas) não foi comunicado pela Vale do evento, que consiste no mau funcionamento de um dos 131 drenos da barragem.

Antes de os rejeitos encontrarem o Rio Itabirito, passando pela cidade e chegando ao Rio das Velhas, há uma Estrutura de Contenção a Jusante (ECJ), um enorme muro de 95 metros de altura e 330 metros de comprimento construído pela Vale para o caso de um rompimento das barragens do complexo Fábrica. Até então, esse tipo de estrutura nunca foi testado em um cenário real de rompimento.

Caso o muro não seja capaz de barrar toda a lama, ela cairia no Velhas e seguiria até a Estação de Tratamento de Água (ETA) Bela Fama, da Copasa, localizada em Honório Bicalho, distrito de Nova Lima, que abastece 2,4 milhões de pessoas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e 70% da população da capital. A captação de Bela Fama é feita a fio d’água, sem reservatórios, e a contaminação do rio poderia inviabilizar totalmente sua operação.

A barragem Forquilha III é de estrutura a montante, do mesmo tipo das que colapsaram em Mariana e Brumadinho, respectivamente em 2015 e 2019. Ela está em um complexo de barragens e diques, quase todos sem atestado de estabilidade: de oito barragens e um dique, seis estão em nível de emergência, um está em nível de alerta e apenas duas barragens têm estruturas confiáveis, segundo a base de dados da Agência Nacional de Mineração (ANM).

Desse total, cinco estruturas estão em processo de descaracterização, duas estão inativas e duas estão ativas, recebendo rejeitos e sedimentos. Segundo o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a Vale completou 16% das obras de descaracterização de Forquilhas III, e a previsão de término das obras é 2035. O complexo está localizado próximo aos distritos de São Gonçalo do Bação (Itabirito) e Engenheiro Correia (Ouro Preto), a cerca de 50 quilômetros da capital e a 45 da ETA Bela Fama.

O Projeto Manuelzão conversou com especialistas de áreas diversas para tentar compreender o que guarda essa “caixa preta” controlada pela Vale. Eles apontam o estado precário do complexo de barramentos de Fábrica, mas ressaltam que os dados apresentados sobre a última anomalia são lacunares e não permitem uma avaliação precisa do tamanho do problema. Uma outra fonte suspeita firmemente do chamado “terrorismo de barragem”, utilizado pela Vale como pretexto para se apropriar de terrenos vizinhos na região.

O problema em questão

Em 15 de março, técnicos da Vale detectaram uma anomalia em um dos 131 drenos de Forquilha III. Na saída desse dreno, acumulou-se material sedimentado, de coloração acinzentada e brilhante, típica do minério de ferro. Em síntese, o problema denota que o dreno, de onde deveria sair água apenas, está comprometido em sua função de filtragem, deixando passar também rejeito. Isso significa que o volume de água habitualmente drenado diminuiu, fazendo com que o volume d’água na barragem aumentasse, o que pode sobrecarregar a estrutura.

A consultoria Aecom, contratada pela Vale, emitiu um laudo a respeito no último dia 21, no qual recomendava à Vale a paralisação das atividades de descaracterização da barragem, até a conclusão do diagnóstico da situação atual. No dia seguinte, a mineradora produziu um relatório no qual afirma que a situação foi reportada à ANM em 18 de março e, no dia 20, à Federação Estadual de Meio Ambiente (Feam).

Técnicos da ANM, da Feam e da Aecom vistoriaram a estrutura nos dias 19, 20 e 22. Na última, a porção líquida apresentou turbidez normal, o que, de acordo com a ANM, “afasta a hipótese de agravamento imediato da situação da barragem”. Uma nova fiscalização da Agência foi realizada na última sexta-feira, 5, e nesta semana a ANM e outros órgãos públicos realizarão diligências para averiguar os resultados dos trabalhos do plano de ações.

O tabuleiro da Vale

Professor de Física do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) em Ouro Preto e doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Daniel Neri recentemente defendeu sua tese “Terrorismo de barragens: estratégias de despossessão produzidas pela mineração de ferro em Minas Gerais”, na qual analisa casos de expropriação de territórios em meio a conflitos minerários. Ele é taxativo ao afirmar que o evento recente tem todas as características desse modo de operação.

Leia a matéria publicada no Jornal da Unicamp sobre a pesquisa de Daniel Neri.

A experessão “terrorismo de barragem”, cunhada pelo Projeto Manuelzão, faz referência ao uso do medo como ferramenta para retirar moradores de áreas de interesse das mineradoras. No caso de barragens instáveis, em que órgãos públicos detém menos informações que as empresas sobre o real estado das estruturas, o cenário é ligado a treinamentos para casos de rompimento, sirenes de alerta disparadas de forma equivocada, entre outras situações perversas que levam pânico e adoecimento às pessoas, além da própria remoção de moradores da mancha de inundação — a Zona de Autossalvamento (ZAS).

“Uma barragem apresenta uma anomalia excepcional, mas o nível de emergência não sobe. Por quê? Porque a barragem já está ‘em rompimento’ há cinco anos”, ironiza Neri, em referência ao fato de que o nível 3 de emergência, o máximo, configura um cenário de rompimento inevitável da estrutura, de acordo com a ANM.

O portal O Fator noticiou na última semana que após a consultoria Aecom analisar a anomalia, a Vale entrou com um pedido liminar na Justiça para pedir a remoção compulsória de uma casa que, de acordo com laudo de setembro de 2023 da Defesa Civil de Itabirito, está segura e fora da zona de autossalvamento da barragem. Na ação, a Vale pede a aplicação de multa diária em caso de descumprimento. A família se nega a sair.

Os moradores já haviam sido realocados de outra propriedade dentro da mancha de inundação, em 2019, após Forquilha III ser classificada em nível máximo de emergência, o que obrigou a Vale a acionar o Plano de Ação de Emergência e evacuar a área. À época, cerca de 25 pessoas foram retiradas de oito propriedades. Em 2020, a mineradora e o MPMG anunciaram o aumento da mancha de inundação e a remoção de mais pessoas. A reportagem aguarda da Defesa Civil de Itabirito o número atualizado de pessoas

A propriedade agora em disputa, a Fazenda Fundão, está localizada no distrito de São Gonçalo do Bação. A Vale afirma ser a proprietária do imóvel, após comprá-lo do antigo dono em 2022, mas a família atual proprietária afirma ter em mãos o documento de posse.

Para Daniel Neri, a desapropriação da família pode ser de interesse da Vale no contexto de disputa territorial e facilitação do licenciamento do Terminal Ferroviário Bação (TFB), projeto da Bação Logística que visa aumentar o escoamento da produção das mineradoras da região. A mina Fábrica está a 7 quilômetros do centro do distrito fundado no século XVIII.

Dados lacunares

O engenheiro Euler Cruz, do Fórum Permanente São Francisco, aponta que o relatório divulgado pela Vale não permite tirar conclusões sobre o tamanho do problema que a anomalia em um dos 131 drenos de Forquilha III representa.

O dreno é ligado a um tapete drenante e a um filtro vertical, estruturas arenosas na base do primeiro alteamento da barragem, que permitem a passagem de água e o controle do volume contido no barramento. Com o comprometimento da função de filtragem dessas estruturas, possibilitando também a passagem de rejeito, há a diminuição do volume de água habitualmente drenado, fazendo com que o volume de água no interior da barragem aumente, o que pode sobrecarregar a estrutura.

No caso da anomalia de 15 de março, ela foi responsável pelo aumento de 30 centímetros do volume de material contido em Forquilha III. Para Cruz, “a princípio não se trata de um número alarmante”. O que para ele é preocupante é o fato de que essa subida de volume bateu a última máxima histórica em 2 centímetros, registrada em janeiro de 2022, período de chuvas muito mais intensas na região.

Aí está a lacuna: os dados históricos dos volumes registrados não estão acompanhados pelos dados pluviométricos do mesmo período, não permitindo estabelecer relação entre os dois parâmetros. Outro fato preocupante é o que está por trás da contaminação dos filtros: caso seja uma trinca na estrutura da barragem, o que a Vale nega, a situação seria gravíssima.

Histórico caótico

Muralha para conter os rejeitos de um eventual rompimento das barragens do Complexo Fábrica; são 95 m de altura por 330 m de comprimento. Foto: Reprodução Vale.

Integrante do Grupo de Pesquisa Educação, Mineração e Território (EduMiTe), da UFMG, Daniela Campolina chama atenção para as décadas de precariedade das estruturas da mina Fábrica. Já em 2008 Forquilha III não teve sua estabilidade atestada, de acordo com as bases de dados sobre barragens da ANM e da Feam. O EduMiTe acompanha essas bases e publica periodicamente boletins sobre a situação das barragens de mineração em Minas.

Das nove estruturas do complexo de Fábrica, praticamente contíguas, oito barragens e um dique, seis estão em nível de emergência e uma está em nível de alerta. Além do risco iminente de Forquilha III, as barragens Forquilhas I e II e Grupo estão em nível 2 de emergência.

Por conta disso, o cenário de rompimento considerado é o de um colapso conjunto das estruturas, que contém mais de 55 milhões de m³ cúbicos de rejeitos, volume 4,5 vezes maior que o das barragens que romperam em Brumadinho. “O caso de Forquilha III em si é bastante grave, mas deve-se considerar a situação do complexo inteiro. Eu desconheço lugar no mundo que tem tantas barragens em nível tão grave”, avalia Daniela, que adianta que o EduMiTe está trabalhando em um boletim a respeito do contexto geral de Fábrica.

Mas a pesquisadora não afasta a possibilidade de terrorismo de barragem. “Sem dúvida a estratégia da Vale é apavorar muita gente. Se a empresa tem tanta preocupação com a segurança das pessoas do entorno que ela quer remover, por que ela continua despejando rejeito em duas barragens [Forquilha V e Prata] e não interrompe totalmente as atividades da mina Fábrica?”

Forquilha V, cabe notar, começou a operar em março de 2021, dois anos depois que Forquilha III entrou em risco iminente de rompimento.

Para o professor da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador do Projeto Manuelzão, Marcus Vinícius Polignano, o episódio é mais uma amostra do caos promovido pelas mineradoras em Minas Gerais. “As barragens são verdadeiras caixas-pretas que, de um lado, nos colocam reféns da palavra de empresas que não são confiáveis, como mostram os rompimentos em Mariana e Brumadinho, mas que também são praticamente inalcançáveis pela fiscalização dos órgãos de governo. De outro, vemos essa insegurança ser cruelmente mobilizada pelas empresas para avançar em seus interesses. É um cenário completamente absurdo e insustentável”.

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