28/08/2021
Oficina no Conselho Comunitário Ribeiro de Abreu (Comupra) foi primeira atividade em Belo Horizonte de projeto do Manuelzão para a captação de água da chuva em cisternas
Quem chega ao Conselho Comunitário Unidos Pelo Ribeiro de Abreu (Comupra), a 30 minutos do centro de Belo Horizonte, se sente bem mais longe. Uma mesa de café da manhã espera os visitantes do lado de fora de uma ponta do casarão centenário da fazenda Capitão Eduardo, que abriga o conselho comunitário. Na outra ponta, da cozinha, Dona Helena vem trazendo broa, doce de laranja e xícaras de café. Lá embaixo, passando pelo portão dos fundos da casa, está o Seu Zé Ribeiro, que convida para conhecer a horta.
É no Comupra que será construída, no próximo mês, uma cisterna do projeto Cultivando Águas, desenvolvido pelo Manuelzão, para a captação de água da chuva. O projeto também será desenvolvido em Lassance, no Norte de Minas e na Ocupação Vitória, em Santa Luzia. Na oficina Ciclo da água, ciclo da vida, realizada no último sábado, 21, o Comupra recebeu a equipe do projeto, moradores e ativistas da região para dar início às atividades no Baixo Onça, afluente do rio das Velhas, que corre por Belo Horizonte e sua região metropolitana.
Numa roda de conversa sobre educação ambiental foi abordado o ciclo da água, a situação de escassez hídrica na capital e a importância de formas de captação de água que se somem ao sistema da Copasa para assegurar segurança e autonomia no acesso à água de qualidade. “Estamos numa crise de hídrica que não se via há 111 anos. Porém, ao contrário da crise hídrica climática, a nossa é de má distribuição. É uma tragédia, estamos do lado de um rio passando por escassez”, alertou Márcia Marques, uma das coordenadoras do Cultivando Águas, em sua fala de abertura.
Na oficina, os participantes fizeram um experimento e discutiram o ciclo da água, o acesso ao saneamento, a impermeabilização das cidades, as mudanças climáticas e todas as questões que permeiam a crise hídrica. Além disso, o debate focou-se no contexto do Comupra e da região do Ribeiro de Abreu e do Baixo Onça, além da crise de vazão do rio das Velhas. A conversa trouxe para perto da comunidade preceitos sobre o uso da água, explorando as potencialidades e o conhecimento dos próprios moradores, vizinhos de um ribeirão.
Roneide Aparecida Dutra, professora aposentada da rede municipal e colaboradora do Comupra, ressalta que “a água é vida, é essencial. Não imagino o mundo sem água, sem verde. As maiores riquezas que temos são águas. É o ribeirão Onça, são as nascentes, que infelizmente estão poluídas. E essa região ainda é muito arborizada. As pessoas são responsáveis por isso aqui”.
Para ela, é necessário cobrar do poder público responsabilidade pelo espaço, que atualmente é mantido pela dedicação da comunidade, que se uniu para estabelecer essa relação com o Estado em prol do Onça e da região. “Não foi fácil. O povo não sabe o poder que tem. O poder público existe em função das pessoas, elas têm que cobrar aquilo que precisam, suas necessidades e seus direitos. É muito cômodo para o poder público, para os gestores, negligenciar as pessoas. Essa região tem muito potencial, se tivesse uma parceria e um investimento maior do poder público, estaríamos bem melhor”, aponta Roneide.
Flávia Lopes, bióloga e integrante do Cultivando Águas, lembra que a cisterna será importante para a comunidade porque, com a crise hídrica, os sistemas de abastecimento que temos hoje não bastam. “Estamos às margens do Onça, numa cidade com clima favorável, chove bastante. Mas como está o nosso meio?”, questiona. Por isso, o projeto propõe inovação na tecnologia de captação aliada à educação ambiental: o ambiente em que se inserem as bacias hidrográficas e ecossistemas pode ser preservado com o conhecimento e o cuidado de suas comunidades vizinhas.
Dona Helena Gonçalves, cozinheira e colaboradora do Comupra, lembra que, no passado, as cisternas eram uma tecnologia difundida, até que a Copasa chegou. Os moradores da região acharam que os problemas de saneamento estavam resolvidos e abandonaram suas cisternas, mas a Copasa não foi suficiente. Ainda há falta de abastecimento, com a seca, mesmo estando na beira de um rio.
“A chuva vem, mas como tudo está cimentado ela vai embora”, explica Dona Helena. “Com a cisterna, teremos água mesmo quando não houver chuva.” Ela também olha para o futuro: “vamos educar nossos meninos desde pequenos. Eles já vão crescer sabendo fazer captação. No futuro, mas um futuro próximo, as pessoas já vão ter essa noção”, conjectura.
Malu, lembra que é simbólico restaurar a cisterna no Comupra, que é uma antiga fazenda. “Resgatar as origens desse espaço, que tinha muita água, é fundamental para complementar as ações que já existem na comunidade, um exemplo de alternativa.” Ela também destaca a importância de cobrar o poder público, principalmente a Copasa e a Secretaria de Meio Ambiente, pela captação, tratamento e distribuição correta da água e a fiscalização ambiental.
Quilombo Mangueiras
O Quilombo Mangueiras, localizado no bairro Novo Aarão Reis, próximo ao Comupra, tem uma história que remonta ao século XIX e abriga hoje cerca de 30 famílias. A maior parte dos moradores trabalha com a horta urbana e vende os produtos na região. O território da comunidade, Patrimônio Cultural Municipal desde 2018, é uma área de preservação ambiental, com nascentes, vegetação nativa, fauna e flora. A nascente do quilombo foi revitalizada em 2017, num projeto do Comitê de Bacia Hidrográfica do rio das Velhas (CBH Velhas).
O quilombo, contudo, tem distribuição de água tratada mas não coleta e trata seu esgoto. Amanda Pinho, moradora do quilombo, conta que a nascente que desemboca no Onça está contaminada pela água da ocupação Novo Lajedo, onde há muitas fossas, que contaminam o solo. Segundo ela, há dias nos quais a água, na nascente, está cristalina, parecendo limpa mas, logo depois, volta a ficar visivelmente suja. Segundo ela, isso piorou recentemente, nos últimos três anos, com a expansão da ocupação e a falta do sistema completo de saneamento. Amanda questiona: “se a água que utilizamos volta para a gente, como é que nós estamos entregando essa água, e como ela é tratada depois?”.
Além de afetar negativamente o consumo doméstico na comunidade quilombola, a poluição é um grande problema para os rituais religiosos, principalmente para o terreiro de candomblé e umbanda. “A água é muito importante para os banhos e os rituais na casa de santo, o que nos traz muitos malefícios”, conta Tatiane Pereira. O tratamento da Copasa só chegou na comunidade há dez anos. “Muita gente pensou que nós ficamos felizes com a chegada da Copasa, mas a nossa intenção era continuar com a água da nascente, fomos criados com ela”. A moradora, que é neta de uma matriarca do quilombo, tem esperança de que água voltar a ser limpa e possam usá-la para consumo e nos rituais.
Os locais selecionados pelo Cultivando Águas são comunidades que sofrem violações do direito à água, possuem potencial de apoio a processos coletivos produtivos, econômicos e educativos e de replicação e difusão da tecnologia social ensinada durante o projeto. Muito mais do que construir uma cisterna, o objetivo da iniciativa é entender que precisamos cuidar das nossas águas.
“O Onça é o nosso professor. Viver com o rio vivendo, é esse o lema”, diz Roberto Blasia. “Temos um espaço tão grande, perto de um rio que (ainda) não pode ser utilizado, mas até lá podemos usar a água da chuva. Isso não é só pelo Comupra ou pelo parque ciliar, é para aprender que a natureza ainda pode nos ajudar”. Blasia participa do trabalho no Comupra com sua esposa, Cecília Soares, hoje secretária. Ela fala sobre o parque do Onça, que fica na beira do rio e foi construído com a luta da comunidade. “Tínhamos medo de construirem shopping, condomínio. Já que é pra invadir, nós invadimos pro bem”, avalia.
O sentimento de cuidado e respeito com o rio é unanimidade. Os movimentos da região lançaram uma meta para 2025: nadar, pescar e brincar no Onça. Evitando a pecha de sonhadora, Roneide relata: “tem muita gente que fala, ‘esse pessoal é doido, sonhador, isso é uma utopia.’ Por que não? Se ele era limpo, porque não pode voltar a ser?”.
Matéria de Mariana Lage