13/08/2020
Artigo da Revista Manuelzão 87
A covid-19 demonstrou uma capacidade de transmissibilidade pelo mundo nunca antes vista, pois em 3 meses saiu originariamente da China e atingiu 188 países do mundo. Importante dizer que nem todos os países e localidades foram atingidos da mesma forma e na mesma intensidade. Isso se deu principalmente pela forma de reação com com os governos responderam à disseminação, principalmente pela implantação das medidas de contingenciamento.
Aqueles países que subestimaram a disseminação tiveram uma contaminação mais intensa e um grande número de
infectados e de mortes. Isso também se aplica às diferentes regiões do território brasileiro, as capitais do litoral do sudeste e nordeste, além das cidades da região norte, foram altamente impactadas, enquanto o Sul e o interior do país foram menos impactados, num primeiro momento.
Essa é famosa curva de disseminação da epidemia, ou seja se deixarmos a doença ter a evolução natural ocorre um descontrole total. Com um imenso número de pessoas infectadas ao mesmo tempo, sobrecarregamos o sistema de saúde, levando ao número exagerado de mortes. Se, por exemplo, medidas de distanciamento social não tivessem
sido adotadas, ainda que aquém do necessário, e 20 milhões de brasileiros (aproximadamente 10% da população) tivessem sido infestados, em curto espaço de tempo teríamos cerca de 500 mil mortos.
O gráfico ao lado demonstra o que conseguimos até 30 de julho deste ano.
As pandemias sempre existiram e continuarão a existir. Somos inquilinos do planeta Terra, não somos donos, nem dominamos a cadeia complexa da natureza no planeta. Somos uma espécie animal como outras tantas existentes neste planeta, sendo a única dotada de inteligência com capacidade de promover o bem estar coletivo e da natureza, embora não o faça. Como uma espécie animal somos frágeis bastou um vírus do tamanho de um milionésimo de fio de cabelo para provocar pânico, crise humanitária e econômica pelo mundo demonstrando a insustentável leveza do ser.
Podemos dizer que essa crise tinha todas as condições para ter proporções semelhantes a da gripe espanhola, que matou mais de 50 milhões pelo mundo no início do séc. XX, não existe vacina ou medicação eficaz, além da alta capacidade de transmissibilidade do vírus. O que nos possibilitou não termos uma mortalidade tão alta quanto da gripe espanhola foi o acúmulo do conhecimento científico.
Diferentemente do obscurantismo, que sem conhecimento e sem ciência lutou de forma insana e ineficaz contra a peste na Europa ou a gripe Espanhola, a ciência nos possibilitou um caminho. Verdadeiramente um caminho relativamente simples do ponto de vista tecnológico que foi o isolamento social e a higiene básica, ferramentas básicas para enfrentar a pandemia. Os efeitos da pandemia na questão social e econômica foram devastadores gerando desemprego e crises humanitárias.
Por outro lado expôs aquilo que a economia não diz, os governos não assumem e que a sociedade não quer ver temos mais de 60 milhões de trabalhadores “autônomos” e “anônimos”, que na verdade são subempregados, sem garantias trabalhistas, sem previdência social, em condições precárias de moradia. Mais de 20% da população dos centros urbanos cidades vivem em vilas e favelas, à margem de políticas públicas, sem álcool, sem gel, sem água – por vezes – e sem saneamento ambiental. Populações que tradicionalmente já convivem com as epidemias de dengue, chikungunya, febre amarela, a violência, e que, por vezes, veem seus entes queridos morrerem no dia a dia por falta respiradores e vagas nas UTIs e de políticas públicas inclusivas.
O que foi diferente desta vez foi que todos procuraram aumentar as vagas nas UTIs. O coronavírus é democrático pode atingir a qualquer um, e a princípio pegou inicialmente as classes A e B, que tinham mais contato com o exterior. Assim, ninguém sabia previamente para onde a roda vai girar.
Nunca na história uma epidemia foi tão amplamente divulgada, debatida e politizada. A pandemia demonstrou a fragilidade humana, a crise dos sistemas de saúde nacionais, a deficiência do estado nas garantias básicas do cidadão. Requalificou serviços e trabalhadores da saúde e de serviços essenciais, por vezes invisíveis e mal remunerados, mas que se tornam heróis por tarefas que executam rotineiramente.
Por outro lado, demonstrou a importância do papel e da importância de fortalecimento de um sistema público de saúde como o SUS. Que sociedade surgirá após esta crise? Num primeiro momento, o sistema tem uma grande capacidade de manter o modelo e absorver crises. Mas, no campo filosófico, social, político, da saúde, de bens e serviços ficaram indagações que se refletiram nos modelos políticos e suas representações e nas ações que a sociedade, com certeza, irá produzir no caminho da transformação social que ocorrerá ao longo dos anos.
Não se passa por uma epidemia impunemente.
Vale a pena aqui, retomar um texto escrito pelo prof. Apolo Heringer quando do início do Projeto Manuelzão (1997), que se mostra atual como nunca:
“o paradigma antrópico de domínio da natureza ignorou duas questões: que a natureza associa o ser humano ao restante da fauna e flora; e que as atuais relações sociais excluem a maioria dos seres humanos das conquistas sociais e técnico científicas, cassando suas cidadanias e o direito à saúde. Nestas relações, o dinheiro é que confere cidadania. Este paradigma entrou em confronto antagônico agudo com o ambiente e a sociedade, ameaçando a vida da atual e das futuras gerações. As doenças também são sinais e sintomas de uma crise paradigmática. O estoque de saúde nesta sociedade está muito abaixo do aceitável”.
Marcus Vinicius Polignano
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