02/08/2024
Brasil perdeu 30% das áreas alagadas em quatro décadas e as consequências são significativas
Nos primeiros seis meses do ano, eventos climáticos extremos assolaram diversas regiões do Brasil. No Cerrado e no Pantanal, as queimadas atingiram níveis recordes, enquanto a Amazônia enfrentou a pior seca desde 2005. No extremo sul do país, chuvas e enchentes devastaram o Rio Grande do Sul.
Em 2023, o Brasil registrou o ano mais quente desde 1961, início da série histórica de medições. Uma nota conjunta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) prevê um final de inverno mais seco na Amazônia.
Este ano, a seca começou mais cedo na região, com a situação mais crítica na parte ocidental, que abrange os estados do Acre, Rondônia, Roraima e Amazonas. Há um temor de que se repita o cenário de 2023, quando os rios atingiram níveis alarmantes de baixa e o período de cheia não foi capaz de restabelecer as condições normais. Naquele ano, o mundo estava sob efeito do El Niño, que elevou as temperaturas globais devido às águas mais quentes do que o normal. Desde abril, o fenômeno não influencia mais o planeta.
Um estudo do WWF-Brasil, baseado em dados de satélite, projeta que a seca no Pantanal este ano pode ser a mais severa da história. Desde 2019, a região enfrenta a pior estiagem dos últimos 40 anos. O Pantanal depende das chuvas provenientes dos rios voadores da Amazônia e das zonas de convergência do Atlântico Norte. No entanto, com a crescente aridez, o Pantanal está mais vulnerável, o que ameaça a biodiversidade, os recursos naturais e o modo de vida da população pantaneira.
Os cursos d’água têm sofrido com esse panorama. A transformação dos rios perenes (que mantêm vazão ao longo de todo o ano) em cursos intermitentes (que secam durante boa parte do ano), está cada vez mais comum. Essa alteração no comportamento dos rios e lagos reflete um grave desequilíbrio ambiental. De acordo com dados do MapBiomas, o país perdeu 30% das áreas alagadas nos últimos quarenta anos, uma redução que preocupa especialistas.
A redução da disponibilidade de água no Pantanal está relacionada a ações humanas que degradam o bioma, como a construção de barragens e estradas, desmatamento e queimadas.
A estiagem extrema no Sudeste tem provocado uma redução acentuada no volume das reservas hídricas de superfície e do subsolo, afetando o fluxo dos rios. Em Minas Gerais, o governo estendeu por 180 dias a situação de emergência em 95 municípios devido à seca. Belo Horizonte e região metropolitana estão há mais de 100 dias sem chuvas.
No Rio Piracicaba, no interior de São Paulo, aproximadamente 63 toneladas de peixes morreram em um trecho de 70 quilômetros na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tanquã. A Usina São José, localizada em Rio das Pedras, em São Paulo, foi responsabilizada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) pelo descarte irregular de resíduos poluentes que causou a mortandade, com uma multa de R$18 milhões. Entre as espécies afetadas estão dourado, mandi e curimbatá. A estimativa é que a recuperação das águas leve cerca de nove anos.
Outro caso de morte de peixes foi registrado a 8 quilômetros do Tanquã, na madrugada do último dia 23. O incidente foi atribuído a uma drástica queda nos níveis de oxigênio na água do rio. Indícios sugerem que a poluição pode ter sido causada pelo descarte irregular de resíduos pelo Serviço Municipal de Água e Esgoto (Semae) de Piracicaba.
A interferência humana na vida aquática é evidente em todo o país. Dados do MapBiomas Água mostram que, em 2023, a área de superfície alagada do país foi 1,5% menor que a média histórica. Em biomas como Cerrado e Caatinga, os reservatórios artificiais, hidrelétricas e lagos de mineração já superam os corpos hídricos naturais, como rios e lagoas.
O Pantanal, que representa 2% da superfície de água nacional, foi o bioma mais afetado pela redução de 30% nas áreas alagadas do Brasil. Em 2023, sua área alagada foi 80% menor em comparação com 1985, início da série histórica de monitoramento do MapBiomas. Este declínio drástico reflete a gravidade da situação e a necessidade urgente de medidas para a preservação dos recursos hídricos.
Desde 1985, a superfície média mensal de água na Amazônia Legal manteve-se acima de 10 milhões de hectares. No entanto, no ano passado, essa média caiu para 9 milhões de hectares, a menor marca já registrada. Atualmente, sete dos 11 municípios mais afetados pela seca de 2023 apresentam níveis dos rios abaixo de qualquer outro registro histórico.
Especialistas atribuem essa perda a uma combinação de fatores, que incluem desmatamento, mudanças climáticas e expansão da agricultura e pecuária. A diminuição das áreas alagadas compromete a biodiversidade, a segurança hídrica e a economia local, que dependem desses recursos. Além disso, eventos extremos, como secas e inundações, tornaram-se mais frequentes.
A qualidade da água dos rios brasileiros exige atenção especial em meio à emergência climática. Embora o Brasil possua grandes bacias hidrográficas e a maior reserva de água doce do mundo, a distribuição é desigual: enquanto a Amazônia detém 68% da água, o Centro-Oeste tem 16%, e as regiões Sul, Sudeste e Nordeste, que concentram mais de 80% da população, têm apenas 16%, com grande parte de sua malha hidrográfica comprometida.
A pressão das atividades econômicas e humanas pelo uso da água é agravada pela precária condição de saneamento básico nas áreas urbanas e pelo desmatamento e uso inadequado do solo nas áreas rurais, intensificando os impactos de eventos climáticos extremos.
Essas dinâmicas exigem maior eficiência nas políticas públicas, considerando soluções baseadas na natureza, tanto em ambientes urbanos quanto rurais.
A crise hídrica no bioma Mata Atlântica, especialmente na região Sudeste, é agravada pela baixa qualidade ambiental dos rios e mananciais. Rios contaminados refletem a implementação parcial de políticas públicas e a falta de instrumentos eficazes de planejamento, gestão e governança.
Também impactam a situação problemas como a destruição de espaços naturais, a perda de espécies e diversidade de vida e o consumo insustentável de recursos naturais. A crise climática é fruto desses fatores e impacta a todos, cada vez mais frequentemente e com maior intensidade.
Não é novidade que a redução das áreas alagadas reflete anos de desrespeito ao meio ambiente e negligência política. O quadro é uma amostra do que pode ser o planeta se nada for feito.
Para especialistas, ainda há tempo de reverter a situação, mas isso requer a adoção urgente de soluções sustentáveis. Nesse cenário, marcado pela falta de saneamento ambiental e desrespeito aos direitos humanos de acesso à água de qualidade, os resultados são prejuízos ambientais, sociais e econômicos, exigindo ações urgentes para reverter essa situação.
Marcus Vinicius Polignano, professor da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador do Projeto Manuelzão, alerta que, sem metas para recuperar e revitalizar os rios, o destino é consolidar esse panorama. “Isto está acontecendo em diversos locais do país. Os rios estão falando. Do jeito que nós estamos indo, vamos ser cuidadores de rios mortos. E rios mortos não alimentam vida, não alimentam populações, enfim, não servem a ninguém”, conclui o professor.