Critério questionável da Vale deixa sem água famílias atingidas pelo rompimentoProjeto Manuelzão

Critério questionável da Vale deixa sem água famílias atingidas pelo rompimento

29/09/2022

Mineradora nega água a pessoas atingidas que estão a mais de 100 metros do Rio Paraopeba, que pode ter sido contaminado com rejeitos

José* e Lúcia* vivem a menos de 500 metros do Rio Paraopeba, mas desde 2019, após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, precisam se articular e se deslocar para tentar conseguir água para sobreviver.

“Eu não quero indenização, nem nada. Se eu tiver água para beber, para cozinhar, para regar minhas plantas, eu estou satisfeito”, fala José, com a voz embargada pela tristeza acumulada desde que a lama atingiu sua pequena comunidade chamada Fazendinhas Baú, localizada em Pompéu. Envergonhado, conta que mais de uma vez já precisou implorar por água para os motoristas das empresas terceirizadas que a Vale contrata para distribuir água nas redondezas.

José, Lúcia, seus vizinhos e muitas outras pessoas que vivem na bacia do Rio Paraopeba e foram atingidas pelo rompimento da barragem da Vale, tiveram e têm tido seus pedidos de fornecimento de água mineral sistematicamente negados pela mineradora. A empresa afirma que só têm direito de receber água para beber e para dessedentação animal – água para mitigar a sede dos animais criados – aquelas pessoas abastecidas por poços comunitários localizados a menos de 100 metros da margem do rio.

O critério utilizado é baseado em nota técnica emergencial publicada pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) dias após o rompimento da barragem. Para o Instituto Guaicuy, uma das ONGs eleitas para prestar Assessoria Técnica Independente na região, a nota “carece de força normativa, tendo caráter meramente sugestivo e, principalmente, precário, pois foi publicada naquele instante, sem a consideração sobre as consequências da poluição do rio para além do estreito limite pensado”.

No período de seca, o poço comunitário que abastece a casa de José e Lúcia está a vinte passos – menos de vinte metros – do limite utilizado pela Vale. Durante o período chuvoso, nem isso: o Paraopeba chega a cerca de 16 metros do poço. Distância curta, mas que deixa famílias bem longe do acesso à água de qualidade e revitimiza todos os dias pessoas que já sofrem as consequências do rompimento da barragem.

A comunidade do Baú

Fazendinhas Baú é uma pequena comunidade rural localizada às margens do Rio Paraopeba. Ela fica a 50 quilômetros do centro da cidade de Pompéu, na região Central de Minas, e a 20 quilômetros de estrada de terra da faixa de asfalto mais próxima. Lá vivem ou veraneiam cerca de 600 pessoas, em um loteamento construído pela imobiliária belo-horizontina Bandeirantes há mais de uma década, encravado entre algumas fazendas e o rio.

Grande parte da população local é composta por aposentados e trabalhadores das regiões metropolitanas de Belo Horizonte e de Sete Lagoas que investiram tudo que tinham em busca de uma aposentadoria tranquila no meio do cerrado, com vista para o rio. Mesmo com uma série de promessas não cumpridas pela loteadora, como o fornecimento de energia elétrica que nunca existiu, a vida no Baú era boa, segundo relato de moradores.

Quando o fornecimento de água da loteadora rareava ou falhava, era possível recorrer ao Rio Paraopeba. Plantações, hortas e quintais eram regados com abundância, mesmo na época da seca. Vacas e cavalos podiam beber água à vontade no leito do rio. A pesca era uma diversão local. Foi ela o motivo de muitos terem comprado terrenos no Baú, localização privilegiada pelas várias curvas que o rio faz na região. Mesmo aqueles que não gostavam de pescar, como José, admiravam a paixão com que os vizinhos se dedicavam à atividade, por horas à beira do rio.

Até que, em 25 de janeiro de 2019, tudo mudou. Com o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, a lama de rejeitos da mineradora Vale tomou o Rio Paraopeba. E no Baú, a água, que era sinônimo de beleza, diversão e abundância, virou sinônimo de tristeza e de insegurança.

Atingidos pela Vale

Depois do dia 25 de janeiro de 2019, a vida nunca mais foi a mesma para os habitantes de Fazendinhas Baú. De acordo com relatos de moradores, diminuíram os turistas, que visitavam a comunidade pela pesca, pequenos comerciantes locais perderam clientes, as mercearias passaram a ficar vazias, os queijos e as galinhas já não são mais vendidos como antes. Moradores abandonaram seus terrenos ou passaram a visitar o local com menor frequência. Familiares que antes visitavam seus parentes no Baú deixaram de aparecer.

Foi o que aconteceu com José e Lúcia, que haviam terminado de construir uma varanda na casa para receber o neto que acabara de nascer. Não só os filhos e netos deixaram de visitá-los, como perderam sua fonte de sustento. Mas nenhum dos danos e prejuízos causados pelo rompimento da barragem da Vale gerou mais sofrimento para os moradores de Fazendinhas Baú que a insegurança em relação ao consumo de água.

Agricultor de mão cheia, José exibe, com um misto de orgulho e dor, seu quintal. Há quase uma centena de árvores frutíferas por lá. Mesmo em meio à poeira e à terra seca, características do cerrado que habita, por lá prevalece a cor verde. Sem água mineral fornecida pela Vale para beber, e desconfiado da qualidade da água do poço que margeia o Rio Paraopeba, José deixou de vender suas frutas, verduras e hortaliças.

“Como é que vou vender uma fruta que foi regada com essa água? E se estiver contaminada? Não quero ser como a Vale. Não quero matar ninguém”, lamenta o agricultor, que teve que começar a fazer vasos de cerâmica para complementar a renda e para “ocupar a cabeça”.

Água própria para consumo?

Os moradores de Fazendinhas Baú são abastecidos de água por meio de um sistema baseado na captação de poços artesianos e no bombeamento para uma caixa d’água. De lá, a água chega até os terrenos de cada um. Tudo é administrado pela empresa Bandeirantes, por meio de seu funcionário que mora no local e faz de tudo um pouco.

No loteamento Fazendinhas Baú 2, onde há mais casas, existem dois poços artesianos: um maior, bem perto do rio, que está sempre ligado, e outro, menor, ao lado da sede da Bandeirantes, que é ligado em situações de aumento da demanda, como em feriados. As águas dos poços se juntam ainda no encanamento, antes de chegar à caixa d’água.

Desde o rompimento da barragem da Vale, os moradores do Baú desconfiam da qualidade da água que recebem. Já em 2020, nas primeiras reuniões de núcleo comunitário com o Instituto Guaicuy, que presta Assessoria Técnica Independente para a comunidade, acompanhando o processo de reparação dos danos, o tema foi levantado pelos presentes. A preocupação dos residentes é com o cheiro estranho e a cor terrosa da água, especialmente na época das chuvas (que vai de outubro a abril), já que o principal poço da comunidade está localizado muito perto do rio.

Análises ambientais independentes realizadas pelo Guaicuy mostram que há alterações significativas na qualidade da água, tanto em ponto de coleta no Rio Paraopeba próximo à comunidade, quanto no próprio poço.

Segundo informações da coordenação de Análises Ambientais do Guaicuy, foram realizadas três análises de qualidade de água no principal poço da comunidade, seguindo as normativas da legislação ambiental referente à água subterrânea (Conama n° 396/2008). Em todas as análises foram observadas concentrações de ferro acima do limite permitido, chegando a estar até dez vezes acima do valor permitido pelas autoridades. O segundo poço da comunidade que se encontra em uma área próxima, porém mais alta e mais distante do rio, não apresentou nenhum parâmetro alterado.

As análises de água do Rio Paraopeba realizadas periodicamente pelo Guaicuy na comunidade, mostraram metais como alumínio, ferro e manganês em concentrações acima do limite permitido (Conama n° 357/2005 e Copam n° 001/1986) na maioria das coletas, sobretudo nos períodos chuvosos. Para os sedimentos coletados no mesmo ponto, também foram observados metais como Cromo e Níquel em quantidades superiores aos valores máximos estabelecidos pela lei (Conama nº 454/2012).

Coleta de água realizada pelo Instituto Guaicuy no poço de Fazendinhas Baú. A turbidez é visível a olho nu

Vale nega água às pessoas atingidas

A insegurança de consumir a água do poço, somada à impossibilidade de usar a água do rio como antes, gerou uma situação de desespero na comunidade. Para os moradores, desde 2019, não há mais água própria e segura para beber, cozinhar, regar plantas e dar aos animais.

Seguindo o exemplo de outras comunidades atingidas na Bacia do Paraopeba, os residentes de Fazendinhas Baú buscaram a Vale para solicitar o fornecimento emergencial de água. A mineradora ré foi condenada pela Justiça, logo após o rompimento, a fornecer água mineral, água potável, água para dessedentação animal e ração animal para pessoas atingidas.

A Vale também era responsável pela administração do pagamento emergencial às pessoas atingidas, mas, desde o Acordo firmado entre a empresa, o governo do estado e o Poder Público no início de 2021, a responsabilidade foi repassada à Fundação Getúlio Vargas (FGV), escolhida pelas Instituições de Justiça para gerir o atualmente chamado Programa de Transferência de Renda (PTR). As demais medidas emergenciais seguem a cargo da mineradora-poluidora.

Porém, os pedidos de fornecimento emergencial de água foram sucessivamente negados pela Vale. A empresa ré argumenta que os moradores de Fazendinhas Baú não se enquadram nos critérios necessários. Para comunidades atendidas por poços coletivos, é necessário, segundo a mineradora, que os poços estejam a menos de 100 metros do rio para que haja o fornecimento de água.

“Nós, do Instituto Guaicuy, acompanhamos o caso de Fazendinhas Baú com muita preocupação e indignação. Já foram realizadas denúncias, notas técnicas e solicitações de atendimento às situações emergenciais para a comunidade e para as famílias que tiveram suas produção e seu acesso à água interrompidos pelo rompimento. Nas enchentes de 2022, o poço da comunidade ficou a 16 metros da inundação. Mesmo estando dentro do critério de 100 metros (buffer de 100m), a Vale S.A continua tratando a comunidade como ilegítima de recebimento das medidas emergenciais de forma arbitrária e autoritária”, afirma Filipe Martins, responsável pelo Grupo de Trabalho de Medidas Emergenciais do Instituto Guaicuy.

O critério dos 100 metros

O critério utilizado pela Vale é baseado em nota técnica emergencial publicada pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) dias após o rompimento da barragem. Para o Instituto Guaicuy, a nota “carece de força normativa, tendo caráter meramente sugestivo e, principalmente, precário, pois que publicada naquele instante sem a consideração sobre as consequências da poluição do rio para além do estreito limite pensado”.

De acordo com a coordenação de Análises Ambientais do Instituto Guaicuy, o critério desconsidera a complexidade de uma bacia hidrográfica, negligenciando aspectos básicos como a influência do relevo no comportamento da água do rio e dimensão das inundações sazonais, uma vez que se trata de uma região marcada por extensas planícies fluviais altamente suscetíveis a grandes inundações durante os períodos de cheia. Aparentemente, o modelo adotado para definição das margens do Paraopeba é impreciso e não possui (ou não foi apresentado) junto a qualquer sustentação metodológica que explique ou justifique sua construção como um critério capaz de atender aos impactos ambientais e sociais causados pelo rompimento da barragem. 

A Aecom, empresa contratada pelo Ministério Público como auditora no processo de reparação, também questiona o critério dos 100 metros. Em 14 de junho de 2021, a auditoria emitiu uma nota técnica, baseada em evidências científicas direcionada aos órgãos jurídicos estaduais, expondo tecnicamente a necessidade de revisão do critério de 100 metros e propondo sua ampliação.

Poço de Fazendinhas Baú está a menos de 100 metros do rio

Independente da validade ou não do critério de 100 metros, a situação no Baú faz saltar aos olhos outro problema: o poço da comunidade está a menos de 100 metros do Rio Paraopeba. Ou seja, está dentro dos critérios. A medição utilizada pela Vale para negar o fornecimento emergencial de água às pessoas atingidas leva em conta apenas a calha principal do rio, desconsiderando as margens de inundação.

As análises do Instituto Guaicuy indicam que a distância do rio até o poço, medida a partir do limite da área de inundação fluvial, é igual a 74 metros. Durante o último período chuvoso, no início de 2022, moradores afirmaram que o rio chegou até o local do poço. Medições posteriores, realizadas em março pela Aecom e pelo Grupo EPA (contratado pela Vale para realizar o Estudo de Risco à Saúde Humana e Risco Ecológico) com a presença do Instituto Guaicuy, constataram que a margem média de inundação do rio chega a 40 metros do poço, e que havia sinais de que o rio chegou a pelo menos 16 metros do poço durante as chuvas.

O Instituto Guaicuy levou a situação para a Vale e para Instituições de Justiça, por meio de diversos ofícios, solicitando a revisão dos critérios e o fornecimento imediato de água para as pessoas atingidas em Fazendinhas Baú. Ao todo, foram enviados 29 ofícios pela Assessoria Técnica Independente à mineradora denunciando a necessidade de fornecimento emergencial de água mineral, água potável, construção de poço, caixa d’água, e/ou, água para animais.

Não houve, até agora, quaisquer respostas conclusivas. A situação não é exclusiva da comunidade de Fazendinhas Baú. Pelo contrário: se repete em outros territórios atingidos, como é o caso de Encontro das Águas, em Curvelo.

Água doada também foi cortada

A pouca água mineral que José, Lúcia, e alguns de seus vizinhos recebiam como doação da comunidade, foi cortada pela Vale nas últimas semanas. Coincidentemente, isso aconteceu logo após uma das vizinhas ter dado entrevistas para o jornal O Tempo sobre as dificuldades de acesso à água para sobrevivência.

* José e Lúcia são nomes fictícios, usados para preservar a identidade das pessoas atingidas, que temem ainda mais retaliações.

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