Decisão do STJ aumenta faixa não edificável ao lado de cursos d'água em perímetro urbano - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Decisão do STJ aumenta faixa não edificável ao lado de cursos d’água em perímetro urbano

27/05/2021

Agora, prevalecerá o instituído pelo Código Florestal ao invés da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, alterando de 15 metros para 30 a 500 metros a faixa ao lado dos cursos d’água que não pode ser construída

[Imagem da capa: projeção de destamponamento do córrego do Leitão, afluente do rio Arrudas, na rua Marília de Dirceu, em Belo Horizonte – Crédito: 10 propostas para lidar com as enchentes em BH]

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no dia 28 de abril, que o Código Florestal deve ser usado para definir a extensão da área de margens de rios e córregos que não podem ter construções nas áreas urbanas, se sobrepondo à Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Com a decisão, que servirá como referência para casos futuros, prevalecerá a norma mais protetiva e a faixa não edificável em perímetro urbano passa de 15 metros para 30 a 500 metros, a depender da largura do corpo hídrico.

O debate sobre qual legislação deveria ser seguida há anos levantava dúvidas, ainda que o STJ já indicasse sua preferência pelo uso do Código Florestal. Enquanto a lei do parcelamento do solo (Lei 6.766/79) estabelece um limite de 15 metros, o Código Florestal (Lei 12.651/2012) determina que as faixas marginais no entorno de qualquer curso d’água natural são consideradas áreas de preservação permanente e por isso a área preservada, a depender do porte do curso d’água, deve atingir de 30 a 500 metros.

A decisão do STJ foi proferida no julgamento do Tema 1.010 dos recursos repetitivos. O recurso repetitivo é julgado quando constata-se vários processos a respeito de uma mesma matéria transitando, resultando em uma decisão que uniformiza a orientação a ser seguida. Isso significa que o teor dessa decisão vinculará a todos os juízes em território nacional, em processos já existentes e nos que forem ajuizados no futuro.

De agora em diante, não restam dúvidas sobre qual legislação prevalece. Mas alguns questionamentos permanecem a respeito do que acontecerá com construções já licenciadas sob a tutela da Lei do Parcelamento do Solo Urbano.

O relator do caso, o Ministro Benedito Gonçalves, justificou sua decisão com base na necessidade de ampliar a proteção ambiental e dos patrimônios e direitos coletivos. “Na vigência do novo Código Florestal (Lei 21.651/2012), a extensão não edificável das faixas marginais de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo art. 4º, caput, I, “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, a fim de garantir a mais ampla proteção ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade”, apontou o ministro.

A sentença pode ser lida na íntegra aqui.

Avanço tardio

Para a ambientalista Jeanine Oliveira, do Projeto Manuelzão, a decisão é importante enquanto nova diretriz para a proteção dos cursos d’água no perímetro urbano, mas representa também uma correção tardia de caminhos errados trilhados no passado. “Se os estados e municípios respeitassem a natureza, entendessem os biomas e a importância da mata ciliar, eles com certeza teriam adotado desde o primeiro momento a norma mais restritiva. Não fizeram isso porque existem interesses econômicos que sobrepõem, infelizmente, o que é mais protetivo do ponto de vista ambiental” analisa Jeanine.

“Trata-se de uma matéria que o STJ teve que intervir porque a prática comum era sempre a menos protetiva. E fica nítido que estava muito desequilibrada essa balança, então, não vejo a decisão necessariamente como um avanço, mas como uma correção. Claro, sem deixar de desconsiderar a importância de que tenhamos agora um ciclo de obras que obedeçam a nova legislação, para que sobre realmente algum recurso hídrico nas cidades”, completa.

E os licenciamentos passados?

A principal dúvida que paira sobre o impacto da decisão do STJ é se ela atingirá imóveis anteriormente licenciados sob a lei do uso do solo urbano e que, agora, serão retroativamente considerados irregulares. Teoricamente, a sentença é retroativa, ou ex tunc, o que significa que seus efeitos serão aplicados mesmo em casos anteriores à prolação da sentença.

Diz-se teoricamente porque o ministro relator deixou de modular os efeitos do julgamento, isto é, a eficácia temporal da decisão. Com isso, a tese passa, agora, a ser aplicada indistintamente a todas as situações, passadas ou futuras, mesmo que já consolidadas no tempo. A justificativa do ministro Gonçalves é de que o entendimento do STJ já era de que aplicava-se o Código Florestal, não havendo qualquer mudança de entendimento do tribunal e, por isso, não havendo necessidade de modular os efeitos da sentença para evitar insegurança jurídica.

Contudo, não há nenhuma orientação ou procedimento geral para desfazer decisões passadas, qualquer reavaliação da situação de um determinado imóvel ou loteamento dependerá do ajuizamento de ações civis públicas individuais.

“Creio que na maior parte das vezes os prejudicados [por possíveis aplicações retroativas] serão, infelizmente, pessoas que compraram apartamentos de grandes construtoras, ou aquelas em situação de vulnerabilidade social. Na cidade de Belo Horizonte, por exemplo, podemos prever problemas. Várias regiões que se adensaram recentemente são ocupações urbanas que se consolidaram e viraram bairros. Também há áreas verdes que foram violentadas e que já não poderiam comportar grandes construções, muito menos tão perto dos córregos que ainda sobravam”, reflete Jeanine Oliveira.

Desfazendo ambiguidades

Para Gustavo Simin, advogado do Instituto Guaicuy, as dúvidas sobre qual lei de proteção dos cursos d’água aplicar não surgiram necessariamente no STJ, que já vinha tomando decisões em favor do uso do Código Florestal, mas no trânsito dos processos em primeira e segunda instância.

“Penso que essa ambiguidade é fruto do seguinte processo: muitas decisões de trânsito em julgado [decisão judicial da qual não se pode mais recorrer] que foram baseadas na Lei de Parcelamento do Solo Urbano simplesmente não chegaram às últimas instâncias federais. Os recursos especial (que leva a matéria ao STJ) e extraordinário (STF) são muito difíceis de conseguir, só sendo concedidos em casos muito específicos para discutir meandros processuais”, argumenta Simin. Assim, muitas decisões se consolidaram sem serem contestadas.

Sobre o que acontecerá de agora em diante, Simin crê ser difícil que antigas decisões sejam revertidas e edifícios ou habitações sejam demolidas. “É uma decisão importante por jogar uma pá de cal no assunto e uniformizar a orientação para julgamentos futuros. O ajuizamento de ações civis públicas e a eventual demolição de edificações certamente caberá em algumas circunstâncias, mas pelas próprias características da questão, que envolve muitas vezes grandes investimentos prévios ou mesmo o direito à habitação, tornam difícil que a decisão abranja decisões já julgadas”, argumenta.

Ao que tudo indica, ainda demorará um pouco para que as consequências dessa possível retroatividade da decisão sejam compreendidas na prática.

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