31/10/2024
Medida de Zema restringe escuta a comunidades e povos titulados, exclui residentes em áreas urbanas e permite que empresas conduzam protocolo de consulta
O governador Romeu Zema (Novo) assinou em setembro o Decreto nº 48.893/2024, que compromete direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais em Minas Gerais ao limitar a aplicação da consulta livre, prévia e informada (CLPI). É a segunda tentativa do governo mineiro de alterar ou simplificar os procedimentos de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos econômicos com prejuízos a essas populações, tendo como pretexto a “regulamentação” da CLPI.
A consulta prévia é um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), denominada “Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais”, promulgada em forma de legislação no Brasil em 2004. A convenção reconhece aos povos e comunidades tradicionais (PCTs) seus modos de vida e organização próprios e protege os direitos dessas populações à terra, educação, saúde e participação de maneira diferenciada.
O artigo 6° estabelece que eles devem ser consultados sobre qualquer empreendimento ou ação que impactem seus territórios, cultura e modos de vida, seja uma iniciativa pública ou privada. Esse mecanismo assegura o direito à autodeterminação e à participação ativa dessas populações na tomada de decisões que afetam diretamente seus territórios ancestrais.
A Convenção foi o primeiro tratado internacional vinculante que dispõe especificamente sobre os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Países que assinam e ratificam um tratado vinculante são obrigados a obedecer suas disposições e os povos e comunidades prejudicados por desrespeito ao regramento podem recorrer a tribunais internacionais para exigir reparações.
No Brasil, são reconhecidos 28 segmentos de povos e comunidades tradicionais. Em Minas, além dos povos indígenas, com duas dezenas de etnias, e ciganos, são reconhecidas comunidades quilombolas, de terreiro, apanhadores de sempre-vivas, geraizeiros, vazanteiros, veredeiros e vacarianos.
A Convenção se aplica aos povos e comunidades cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional e que são regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; bem como aos povos considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais.
As disposições, portanto, não competem apenas às comunidades com territórios formalmente reconhecidos. De acordo com o artigo 14°, “dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Ao limitar a consulta somente a territórios demarcados, o novo decreto estadual mina o alcance desse direito.
O Decreto nº 48.893 restringe a aplicação da CLPI a povos e comunidades tradicionais formalmente reconhecidos e demarcados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), pela Fundação Palmares e pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT). A exigência fere o direito à autodeterminação, ignorando que muitos territórios ainda não foram oficialmente reconhecidos. Além disso, dispensa a consulta aos povos e comunidades tradicionais que habitam áreas urbanas, como é o caso de povos de terreiro, comunidades carroceiras e acampamentos ciganos.
Outra alteração provocada pelo decreto é a possibilidade de transferência da responsabilidade de condução da CLPI para empresas privadas. Pela nova regulamentação, cabe ao empreendedor a condução das consultas quando os impactos forem provenientes de seus projetos. A Convenção 169 enfatiza a responsabilidade do Estado em assegurar a consulta prévia.
Com essa mudança, crescem os riscos de violência e assédio às comunidades interessadas, já que empresas podem conduzir o processo de maneira unilateral, favorecendo seus interesses econômicos em detrimento dos direitos das populações afetadas.
O novo decreto ainda condiciona a obrigatoriedade de realização da consulta às atividades passíveis de licenciamento ambiental em que os territórios estejam no máximo a 3 quilômetros de distância dos empreendimentos. Essa definição ignora os impactos mais amplos de grandes projetos sobre a biodiversidade, os recursos hídricos e os modos de vida das comunidades afetadas.
Esse não é o primeiro ataque do governo Zema aos direitos fundamentais de povos e comunidades tradicionais. Em 2022, houve uma tentativa de implementar uma resolução que também limitava os direitos de consulta, mas que foi revogada após mobilização popular. Também há um histórico de casos em que a Justiça Federal suspendeu processos de licenciamento em Minas Gerais por falta de consulta prévia.
Para além de uma violação jurídica, o Decreto nº 48.893 é uma expressão da lógica capitalista que reduz a natureza e os territórios tradicionais a recursos a serem explorados. O direito à consulta prévia é uma das barreiras asseguradas para frear o avanço de projetos que destroem os modos de vida de povos e comunidades que, muitas vezes, estão enraizados numa relação de reciprocidade com a terra, os elementos e os seres que nela habitam.
Segundo artigo 13º da Convenção 169, ao aplicarem as disposições do tratado, os governos deveriam “respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.”
Enquanto essas populações teimam em não se dobrar, em nome de visões de mundo que valorizam a vida em todas as suas formas, o atual governo mineiro avança sobre esses territórios, em um movimento que, mais uma vez, revela a soberania dos interesses econômicos em relação à justiça socioambiental.
Mais de 30 organizações sociais e movimentos populares, entre elas o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes) e a Comissão Pastoral da Terra, manifestaram repúdio ao Decreto n° 48.893/2024. Leia a nota completa.