24/05/2024
Agência Nacional das Águas prevê impactos da mudança climática nos recursos hídricos do país; tendência para o Sul é de aumento em até 5%, associado a eventos extremos
A interferência humana nos ecossistemas terrestres tem aprofundado desequilíbrios cujos impactos afetam todos ambientes e formas de vida. Oscilações climáticas são comuns e a natureza sempre conviveu com esses processos, mas o registro de eventos extremos é cada vez mais frequente em toda parte do mundo, na época em que se disputa nomear de “Antropoceno”, a época humana.
No contexto dos recursos hídricos, a mudança do clima altera todo o ciclo hidrológico. Longos períodos de escassez, enchentes e ondas de calor são provocadas pelo modo como se dão as relações entre os seres humanos e o meio ambiente, consequências de modos de produção e de consumo, e não de fenômenos naturais. Em 30 anos, de 1992 a 2022, o Brasil perdeu 1,5 milhão de hectares de superfície de água, de acordo com análises do projeto MapBiomas.
Por causa do caráter antrópico de grande parte das mudanças climáticas globais, o desenvolvimento de políticas públicas de planejamento e adaptação às condições que já impactam e devem impactar ainda mais os modos de vida no planeta é cada vez mais urgente. A Agência Nacional das Águas e do Saneamento (ANA) lançou em janeiro deste ano a primeira edição do estudo Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil, que busca avaliar esse quadro a partir de futuros hidroclimatológicos no país.
De acordo com a superintendente de estudos hídricos e socioeconômicos da ANA, Ana Paula Fioreze, e o diretor interino Nazareno Araújo, o documento procura, principalmente, auxiliar os tomadores de decisão na adoção de políticas públicas mais perenes, a partir da ampliação de alternativas que minimizem os efeitos negativos das mudanças climáticas.
Feito por sub-bacia, o levantamento vislumbra três horizontes temporais: de 2015 a 2040, de 2041 a 2070 e de 2071 a 2100. A estimativa considera desde cenários mais otimistas, como um aquecimento de aproximadamente 2 ou 3º C, a um futuro de altas emissões de carbono e mais de 4,5°C de aquecimento no planeta até 2100.
As projeções indicam que são possíveis diminuições de até 40% na disponibilidade hídrica, até 2040, nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e parte do Sudeste, além de um aumento no número de trechos de rios intermitentes nessas regiões futuramente. O documento ainda destaca que esses processos podem intensificar na medida que os níveis de emissão dos gases de efeito estufa aumentarem. Também é preciso considerar preocupações com a segurança energética, já que mais de 70% da eletricidade utilizada no país vêm de hidrelétricas.
Em contrapartida, na região Sul, a tendência é de aumento da disponibilidade hídrica em até 5% até 2040, mas com maior inconstância e um consequente aumento da frequência de eventos climáticos extremos, como cheias e inundações. Essa alteração está associada à manutenção do ciclo da água, o qual, diante das variações, redistribui a precipitação de maneira irregular.
As chuvas torrenciais que atingem o Rio Grande do Sul desde o fim de abril causaram cheias históricas no estado. Até o momento, foram contabilizadas 161 mortes e pelo menos 2,3 milhões de pessoas foram afetadas. O quadro extremo não é inesperado. Ainda em 2015, o estudo “Brasil 2040” já previa chuvas acentuadas na região Sul em decorrência das mudanças climáticas. Produzidos pela Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura, os relatórios que compõem o projeto traçaram cenários futuros e propuseram medidas de adaptação para o país. No entanto, não foram disponibilizados publicamente na época.
Em análise do estudo, o ambientalista e professor do Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental (DGPA) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) de Rio Claro, Rodrigo Lemos, considera preocupante a alteração nas vazões dos rios, em especial no Sudeste.
A região apresenta uma tendência de redução sobretudo na faixa litorânea, mas também pronunciadamente nas regiões interioranas. Com isso, deve haver diminuição da disponibilidade de água nas bacias hidrográficas e um aumento do conflito hídrico. “O Plano Diretor do Rio das Velhas, feito lá em 2013, já mostrava isso como tendência para 2025 e 2030 — e olha que na modelagem dele ainda não entrava alterações de disponibilidade hídrica considerando as mudanças climáticas”, comenta o professor.
Ainda de acordo com as análises do MapBiomas, o Rio das Velhas vem perdendo 40% da superfície da água desde o começo dos anos 1990. Houve redução em todas as nove regiões hidrográficas brasileiras e em 54 das 76 sub-bacias. Para Lemos, a dimensão desses impactos não pode ser entendida apenas em termos de quantidade de água disponível, também é preciso avaliar a disponibilidade hídrica a partir da qualidade do recurso.
“Se você tem um lançamento exponencial de esgoto na calha do Ribeirão Arrudas e do Ribeirão do Onça em Belo Horizonte, por exemplo, isso impacta a qualidade de água do Rio das Velhas e impacta também o acesso e a oferta de água em um trecho expressivo do rio. Ou seja, a água existe ali enquanto água, mas não tem qualidade suficiente para uso. Então essa já é uma complexidade do tema e do momento em que a gente vive”, defende.
No contexto de Minas Gerais, Lemos avalia que o quadro ganha ainda outros contornos, considerando o histórico do estado envolvendo o rompimento das barragens de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019. “Veja só que nós tivemos dois dos maiores desastres-crime associados aos recursos hídricos, em nível mundial, desde 2000. O rompimento de uma barragem acaba com toda uma dinâmica de uso, de acesso e de disponibilidade hídrica dentro de uma bacia hidrográfica. E associado a isso, a gente tem uma projeção da diminuição da disponibilidade. Ou seja, nós estamos caminhando para um cenário bastante crítico”, analisa o professor.
A Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Agência RMBH), em parceria com o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), concluiu recentemente o Plano de Segurança Hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PSH-RMBH), que visa constituir uma ferramenta de planejamento metropolitano que promova a segurança hídrica metropolitana. Resultado de 18 meses de trabalho, numa série de estudos e pesquisas, o documento contém análises de impacto ambiental, possíveis benefícios naturais e econômicos da implementação, infraestrutura necessária e possíveis fontes de financiamento.
Lemos ressalta que “o plano é uma tentativa de construir uma qualificação de um norte comum, é apenas uma ideia. E colocar essas ideias nas pautas, na proporção que é necessária, principalmente em situações de desmonte e de desconstrução de muito do que a gente tem trazido e vivenciado dentro de política ambiental e política pública, é um processo que deixa nosso desafio com certeza muito mais complexo”.
Entre as medidas de adaptação sugeridas no estudo da ANA estão, por exemplo, a adoção de sistemas de irrigação mais eficientes e de cultivos que sejam menos dependentes de grandes quantidades de água. Lemos pondera que, em situações de conflito, grandes empresas, entidades e corporações são asseguradas quanto ao acesso à água, enquanto as parcelas mais vulneráveis da população enfrentam maiores desafios. Essa dinâmica dificulta a garantia do direito de maneira igualitária.
“A agricultura é um dos setores econômicos que mais utiliza água, mas de uma forma muito irregular entre as diferentes tipologias de produção agrícola. Quando a gente faz esse debate num cenário de crise, nós temos a complexidade, por exemplo, de quem é que consegue fazer uma alteração de processos de cultivo ou de irrigações? Não são todas as pessoas e não são todas as dinâmicas de produção”, pontua o professor.
Para ele, medidas afirmativas são imprescindíveis para que os incentivos de programas e políticas públicas não sejam acessados apenas por grandes produtores de commodities. “É preciso que esses investimentos e essas dinâmicas cheguem também de forma bem estruturante para o que representa 70% da mão de obra do setor agrícola no Brasil, que é principalmente agricultura familiar”, finaliza.