21/05/2024
Resíduo característico de mineração foi observado em córrego próximo a barragens da Vale e da CSN; MP e órgãos ambientais estaduais ainda não se manifestaram
O Instituto Cordilheira e o Grupo de Pesquisa Educação, Mineração e Território (EduMiTe), da UFMG, denunciaram, no último dia 7, uma intensa contaminação por rejeito minerário no Alto Rio das Velhas. Os trabalhos de campo iniciais indicaram que o material foi despejado no Córrego Luzia dos Santos, metros antes dele desaguar no Rio Itabirito, afluente do Velhas. As nascentes do córrego estão próximas aos complexos Vargem Grande, da Vale, e Fernandinho, da Minérios Nacional/CSN, ambos com barragens em descaracterização.
A denúncia foi encaminhada ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), à Agência Nacional de Mineração (ANM), à Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), à Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad), ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Velhas). Até o momento, à exceção do CBH Velhas, nenhum dos órgãos se manifestou.
Alterações na coloração do Velhas, a partir da altura em que este recebe o Rio Itabirito, foram percebidas de forma intermitente desde o dia 13 de abril. Elas se intensificaram no dia 29, quando moradores de Rio Acima observaram forte tom amarronzado das águas, e continuaram ocorrendo até a última semana, mais de um mês após os indícios iniciais.
No dia 29, ambientalistas e moradores foram até o encontro do Córrego Fazenda Velha com o Rio das Velhas, ponto que há um ano sofreu com o vazamento de sedimentos da barragem “Ecológica 1”, do Complexo Fernandinho, da Minérios Nacional, hoje pertencente à Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, e a um consórcio asiático. A barragem passava por ações de desassoreamento e a contaminação causou a mortandade de peixes no trecho abaixo, em Honório Bicalho, distrito de Nova Lima.
Desta vez, porém, o aspecto do Córrego Fazenda Velha estava normal. A comitiva seguiu a rodovia MG-030 sentido a Itabirito, alguns quilômetros após o Córrego Fazenda Velha. Avistaram então uma grande quantidade de material lamacento no Córrego Luzia dos Santos, ou Moleque, sob uma pequena ponte na estrada. O córrego é cercado por mata ciliar preservada, sem registro de possível foco erosivo no entorno.
Já no dia 5 deste mês, uma equipe do Grupo de Pesquisa EduMiTe, durante trabalho de campo do Projeto “Que Lama é essa”, visitou o local, constatando que esse córrego continuava contaminando os rios Itabirito e Velhas, que apresentavam a mesma coloração intensa e turva. Além de material barrento, verificaram nas margens muito resíduo cinza escuro, denso, gelatinoso e com brilho metálico, característico do rejeito de mineração.
Como no caso da Minérios Nacional/CSN, a nova contaminação é extremamente preocupante, não só pela saúde do Rio das Velhas e da vida que ele abriga, mas também por ser antes da Estação de Tratamento de Água (ETA) Bela Fama, da Copasa, localizada em Honório Bicalho. As águas de Bela Fama abastecem 2,4 milhões de pessoas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), 70% da população da capital.
Leia a íntegra da denúncia apresentada pelo EduMiTe e o Instituto Cordilheira.
_
As nascentes do Córrego Luzia dos Santos e de seu afluente maior, o Córrego Campestre, estão em áreas mineradas com títulos da Vale, da Minérios Nacional/CSN e da Anex Mineração. Os complexos são vizinhos e estão localizados na divisa entre Nova Lima, Rio Acima e Itabirito. No relatório, os pesquisadores apontam que a Anex tem permissão para explorar areia e filito, e recente aprovação para pesquisa de “nova substância”. A princípio, não explora um minério que produza nas águas o tipo de coloração observado.
No Complexo Vargem Grande, da Vale, está a barragem de rejeitos Vargem Grande, em processo de descaracterização, e a Barragem Fernandinho foi descaracterizada em 2021. A Vargem Grande é de estrutura a montante, a mesma das barragens que se romperam em Mariana e em Brumadinho. Ela armazena 7,4 milhões de m³ e está em nível 1 de emergência, de acordo com a ANM. Segundo a plataforma Desativando Bombas-relógio, do MPMG, 38% das obras de descaracterização, que devem ir até 2027, foram concluídas.
O Complexo Fernandinho (não confundir com a barragem desmontada da Vale), da Minérios Nacional/CSN, não realiza mais atividades de lavra. Nele estão as barragens a montante B2 e B2 Auxiliar, em processo de descaracterização, e a barragem de sedimentos Ecológica 1. Segundo o MPMG, a B2 Auxiliar armazena 4,5 milhões de m³ e 51% das obras de desmonte foram completadas, com previsão de conclusão até abril de 2026. Já a B2 acumula 2,6 milhões de m³, 34% das obras foram completadas e ela estará desativada até junho de 2028. Segundo a ANM, B2 e B2 Auxiliar estão em nível de alerta, e a Ecológica 1, embora esteja “segura”, foi a fonte da contaminação do Rio das Velhas no ano passado.
Embora a Barragem Vargem Grande, da Vale, verta para a face oeste da cumeeira, ela está bem próxima às nascentes do Córrego Luzia dos Santos, do lado leste. As barragens da Minérios Nacional/CSN, por sua vez, vertem para o Córrego Fazenda Velha, que deságua diretamente no Velhas, o que não coincidiria com a rota observada na nova contaminação.
O EduMiTe e o Instituto Cordilheira levantam a hipótese de que os rejeitos despejados no Córrego Luzia dos Santos, e dele nos rios Itabirito e Velhas, podem prover de uma transposição de rejeitos ligada a descaracterização de barragens nos complexos Vargem Grande ou Fernandinho. Nesse caso, um processo planejado e deliberado pelas empresas.
Na denúncia, o grupo de pesquisa e a entidade cobram que seja feita a verificação de eventuais outorgas concedidas pelo Igam ou outra instância do Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Sisema) para transposição de rejeitos.
No caso do Complexo Fernandinho, apesar de uma de suas estruturas ter sido a fonte do vazamento de sedimentos no Velhas em março do ano passado, as informações referentes às suas barragens no Sistema de Gestão de Segurança de Barragens de Mineração (SIGBM) da ANM não estão corretas. A Minérios Nacional/CSN lista as barragens B2 e B2 Auxiliar como “inativas”, em vez de “em descaracterização”.
A barragem de sedimentos Ecológica 1 é referida como “ativa”, isto é, recebendo material, de acordo com o SIGBM e o Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM) da estrutura, datado de setembro do ano passado.
A Lei Mar de Lama Nunca Mais, que em fevereiro de 2019 instituiu a política estadual de segurança de barragens, proibiu o licenciamento de novas barragens a montante e determinou a descaracterização das 54 barragens deste tipo em Minas até fevereiro de 2022. Nesse prazo, apenas cinco foram desmontadas. As mineradoras conseguiram acordos próprios para novos prazos, com 2035 como limite para eliminação dessas estruturas.
Atualmente, do total de 340 barragens de mineração em Minas Gerais, ainda existem 34 de alteamento a montante. Mas seu processo de desmonte, bastante delicado e novo, “cria um cenário alarmante, único no mundo inteiro”, explica uma das coordenadoras do EduMiTe, Daniela Campolina. “A empresa mexe na estrutura da barragem, então a tendência, pela própria dinâmica da descaracterização, é que vazamentos de rejeitos fiquem mais comuns. E temos um monte de barragens sendo desfeitas ao mesmo tempo”.
A professora e ambientalista ressalta a inexistência de literatura e histórico técnico de descaracterizações, o que suscita uma nuvem de dúvidas. “Existem normas técnicas do Igam e da Feam [Fundação Estadual do Meio Ambiente] a respeito, mas as mineradoras são as próprias responsáveis técnicas. E têm barragens muito antigas, de antes da Política Nacional do Meio Ambiente, 1981, e da Política Nacional de Segurança de Barragens, de 2010. Há barragens das quais não se sabe o método construtivo, há barragens construídas por método misto [jusante e montante]”.
O desmonte dessas estruturas é de alta complexidade técnica. Em caso de erro, o risco é de rompimento. “As barragens a montante são de mais fácil liquefação [quando o material sólido “derrete” como líquido], até um tremor pode ajudar na liquefação. Quando você está mexendo na estrutura da barragem, é bastante possível que isso aconteça”, assinala Daniela.
Nesse bojo, as estruturas precisam ser reforçadas e disso decorre, por exemplo, a construção das chamadas estruturas de contenção a jusante (ECJs), grandes muralhas construídas para reter os rejeitos de um eventual rompimento das barragens em risco iminente de rompimento.
Mesmo quando as obras de descaracterização de uma barragem são terminadas, no entanto, restam questionamentos e lacunas importantes. A pesquisadora do EduMiTe lista algumas. “Quais são as experiências que temos de barragem descaracterizada? Quem garante que não vai dar mais nenhum problema? Quando termina o processo de desmonte, a estrutura sai da base de dados da ANM, então podemos perder a informação de que aquilo foi uma barragem. Isso dificulta demais o controle social para pesquisadores, ambientalistas e a sociedade”.
No caso da Barragem Fernandinho, da Vale, descaracterizada em 2021, não aparecem informações referentes a ela no SIGBM.
Além disso, alerta Daniela, “essas barragens antigas ainda têm minério, por terem sido exploradas por meio de métodos mais antigos, então há a possibilidade de estarem minerando novamente os rejeitos. Sem transparência e controle social, resta a palavra da mineradora”.
A nova contaminação do Velhas, possivelmente relacionada a obras de descaracterização, ocorre simultaneamente às declarações do promotor Carlos Eduardo Ferreira, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente (Caoma), de que “hoje nós temos o estado mais seguro do Brasil no que se refere à estrutura de barragem […]”.
Paradoxalmente, os comentários do promotor se deram a respeito de um acordo, firmado entre o Governo de Minas e o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), de licenciamento e fiscalização de ECJs por parte do estado. Atualmente três barragens estão em nível 3 de emergência em Minas, todas elas construídas a montante, e demandam EJCs.
São elas: Forquilha III, na divisa entre Ouro Preto e Itabirito, e que apresentou nova anomalia no fim de março; Barragem Sul Superior, em Barão de Cocais, e a Barragem de Rejeitos, em Itatiaiuçu, que não tem ECJ construída. As duas primeiras são da Vale e a última é da ArcelorMittal. Em comum, todas forçaram a retirada de centenas de pessoas de suas manchas de inundação e criaram lugarejos fantasmas, por outro lado, aprofundando o domínio das próprias mineradoras dos territórios.
Os pesquisadores e ambientalistas do EduMiTe e do Instituto Cordilheira seguem monitorando a situação no Rio das Velhas e nos córregos nos arredores das áreas da Vale e da Minérios Nacional/CSN.
Na denúncia, eles requerem que o MPMG apure os fatos narrados e tome as medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis, buscando a responsabilização em todas as esferas — administrativa, cível e penal. Também cobram que os órgãos ambientais estaduais competentes — a Semad, a Feam e o Igam — apurem e forneçam informações sobre a real situação da qualidade da água do Córrego Luzia dos Santos e dos rios Itabirito e Velhas, como também da segurança das estruturas de mineração das empresas potencialmente envolvidas na crônica contaminação destes cursos d’água.
Pedem ainda que se verifique a necessidade de ampliação da rede de monitoramento e da eficiência, pertinência e capacidade de fornecimento de informações em tempo real dos locais de monitoramento existentes dos principais complexos geradores de sedimentos e de rejeitos lançados em corpos de água no Alto Rio das Velhas, utilizando parâmetros que possam identificar e mensurar possíveis contaminações por resíduos de mineração.
Por fim, cobram que “seja viabilizado com urgência acesso aos relatórios de monitoramento quali-quantitativo de águas superficiais e subterrâneas […], bem como o mapeamento e o fornecimento dos dados brutos, em planilha, do monitoramento realizado”.