02/12/2024
Para saber mais sobre os avanços e retrocessos dos dois pactos, o Instituto Guaicuy entrevistou três especialistas
Pouco antes de completar nove anos do rompimento, em outubro, foi celebrada a repactuação do acordo pelo desastre-crime da barragem de Fundão, causado pela Samarco e suas duas acionistas (Vale e BHP) no Rio Doce, em 5 de novembro de 2015. O novo pacto prevê medidas reparatórias e compensatórias estimadas em R$170 milhões (sendo R$ 132 bilhões de valores novos e R$ 38 bilhões já gastos em medidas de recuperação), e se trata de uma ampla renegociação do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado em 2016, entre o Poder Público e as mineradoras. Este é o segundo acordo de reparação recente relacionado a danos socioambientais causados pela Vale em Minas Gerais, em menos de cinco anos. Em fevereiro de 2021, a mineradora também esteve envolvida na pactuação referente ao rompimento da barragem da Vale na Bacia do Paraopeba, que destinou R$ 37,69 bilhões para recuperar os prejuízos provocados pela empresa, de Brumadinho até a Região da Represa de Três Marias.
Quase dez anos depois do primeiro caso, nenhuma pessoa ainda foi responsabilizada penalmente pelos desastres-crimes que deixaram centenas de pessoas mortas e duas das maiores bacias hidrográficas do país comprometidas pelo rejeito tóxico de minério. Recentemente, vinte dias após o fechamento do acordo do Rio Doce, as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton foram absolvidas de ação criminal pela Justiça Federal.
O Instituto Guaicuy entrevistou três especialistas que acompanham os processos de reparação de perto, para uma análise sobre as semelhanças e diferenças entre os Acordos. Joceli Andrioli, coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Marta de Freitas, da direção do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e Paula Oliveira, assessora de relacionamento institucional do Guaicuy, pontuaram algumas características destes dois casos que merecem a atenção da sociedade civil.
Joceli começa sua análise reafirmando que o acordo do Rio Doce burla a própria Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), sancionada em 2023. “Avaliamos, olhando para os dois acordos, que eles são um meio, e não um fim, quando estamos falando da luta pelos danos causados por estes crimes. Conseguimos evoluir alguns pontos importantes, do acordo do Paraopeba para o acordo de Mariana, mas nunca podemos esquecer que ambos foram fechados sem a participação das populações atingidas. Eles não atingem o objetivo de uma reparação justa”, analisa.
O acordo referente ao desastre-crime na Bacia do Paraopeba abrange 26 municípios mineiros. Já o acordo que diz respeito ao desastre-crime da Bacia do Rio Doce considera 49 cidades, de Minas Gerais e do Espírito Santo, caracterizando o pacto com ações a nível nacional. Nesse sentido, Marta de Freitas chama a atenção para o fato de terem deixado o estado da Bahia de fora das ações de reparação. “O rejeito tóxico chegou a quatro regiões da Bahia, afetando a vida de muita gente de lá, mas isso foi ignorado no acordo do Rio Doce. A repactuação cita 300 mil pessoas atingidas pelo crime, enquanto sabemos que esse número é cerca de três milhões, de Minas Gerais à Bahia”, enfatiza.
Paula Oliveira, assessora do Guaicuy, marca a diferença entre as gestões dos dois pactos. Ela relembra que, no acordo do Paraopeba, essa função é dos compromitentes, ou seja, das Instituições de Justiça (IJs) e do Governo de Minas. A maior parte da responsabilidade é do Estado, responsável pela implementação das obras e dos projetos em todo o território de Minas Gerais, sem focar nos territórios atingidos. “A parte dos recursos que a gente chama do Anexo 1, com ações direcionadas aos municípios e populações atingidas, referente aos Projetos de Demandas das Comunidades Atingidas e as Linhas de Crédito e Microcrédito, bem como o Programa de Transferência de Renda, são de gestão das Instituições de Justiça. Já os Anexos 1.3, 1.4 e o Anexo 2.2, que envolvem projetos e obras de políticas públicas, mas também direcionadas aos municípios atingidos, ficam a cargo das Instituições de Justiça e do Estado. E nessa gestão vemos que sobretudo as IJs precisaram recorrer a outras entidades para a execução do que foi previsto no acordo. Para isso, contrataram instituições como a Cáritas e a Fundação Getúlio Vargas por meio de editais. E pela complexidade, e talvez até pela multiplicidade de entidades envolvidas, o que vemos acontecendo na execução dos anexos do acordo é uma demora, um atraso, que têm custos altos, de várias ordens”, afirma.
Segundo a assessora, o acordo do Paraopeba tentou fugir do modelo da Fundação Renova, que atuava no Rio Doce, mas acabou terceirizando a reparação de forma pouco eficiente. “De alguma maneira, vemos que isso foi alterado no acordo do Rio Doce. Nele, houve uma escolha de se transferir a gestão para essa estrutura do Executivo Federal e que isso talvez sinalize uma busca de melhorar a gestão, considerando ainda que há mais de um estado da Federação envolvido”, diz.
Segundo Joceli Andrioli, no caso da Bacia do Paraopeba, a governança é considerada frágil. “A empresa fica com algumas responsabilidades, com a obrigação de, por exemplo, tirar o rejeito do Rio Paraopeba. E tem uma outra parte do acordo que define a obrigação de pagar (parte dos anexos 1.3 e 1.4, 2.3, 3 e 4, por exemplo). Mas essa parte não conta com uma boa estrutura do Estado para ser executada, prejudicando, assim, as pessoas atingidas. A execução dos anexos está atrasada, deixando as pessoas desamparadas. No caso do Rio Doce, essa governança já foi mais bem desenhada, principalmente se considerarmos que antes essa parte estava sendo privatizada por meio da Fundação Renova, que será extinta após esse redesenho, depois de violar tantos direitos nesses anos todos“, explica.
Joceli avalia alguns pequenos avanços na governança do acordo do Rio Doce. A criação de um comitê composto por membros dos governos de Minas e do Espírito Santo, do Governo Federal e das comunidades e famílias atingidas pelo desastre, segundo o coordenador do MAB, abre espaço para a possibilidade de uma administração um pouco mais participativa dos recursos. “No caso de Brumadinho, vimos a criação de um Comitê de Crise, que se tornou o Comitê Gestor Pró-Brumadinho, composto somente pelo Governo do Estado de Minas Gerais, sem nenhuma participação da sociedade. E é ele quem tem o papel de definir e supervisionar as medidas fixadas no acordo da Bacia do Paraopeba”, diz. “Nós, enquanto movimento social, vamos lutar para assegurar o direito da população diretamente prejudicada em participar do Conselho Federal de Participação Social, previsto neste acordo [de Mariana], para acompanhar as decisões relacionadas às medidas de reparação”, afirma.
Marta também cita a possibilidade de uma governança minimamente mais justa. “Se esse conselho funcionar, teremos uma oportunidade de participação social. Outro ponto que vemos no caso do acordo do Paraopeba é o uso do recurso sendo destinado para uma esfera estadual, em vez desse investimento ser direcionado, em sua maioria, para os territórios atingidos. No acordo do Rio Doce ficou definido que somente 20% do recurso pode ir para áreas que não tenham sido atingidas. Essa limitação também é relevante. Afinal, a prioridade é de quem foi diretamente afetado”, diz.
Ambos os acordos estabelecem o pagamento de um Programa de Transferência de Renda (PTR) para que as pessoas prejudicadas possam suprir suas necessidades básicas enquanto aguardam as indenizações individuais e o restante da reparação. Porém, no acordo da Bacia do Paraopeba, quem tem direito ao PTR são: pessoas que vivem em comunidades reconhecidas como atingidas localizadas até um quilômetro da margem do Rio Paraopeba e da Represa de Três Marias, pessoas que morem em comunidades onde o abastecimento de água foi afetado em função do rompimento e pessoas que vivem em comunidades nas quais houve alguma obra emergencial após o desastre-crime da mineradora Vale.
Neste acordo, o PTR tem duração prevista até 2026 e seguirá ativo até o fim dos recursos destinados ao programa (R$4,4 bilhões, no total). Há uma variação do valor a ser recebido, considerando se a pessoa é familiar de vítima fatal, residente da Zona Quente (Brumadinho) ou de demais regiões, bem como valores diferenciados para crianças e adolescentes. O maior valor recebido é de um salário mínimo, e o menor, um quarto do salário mínimo. Alguns beneficiários sofrerão redução de 50% no valor do PTR a partir de março de 2025.
Já na Bacia do Rio Doce, o PTR será pago em um cartão único, como acontece com o Bolsa Família. “Essa diferença é relevante, pois novamente evita a terceirização da gestão deste recurso, como acontece no acordo do Paraopeba, que conta com a gestão da Fundação Getúlio Vargas. Essa mudança é interessante, pois traz uma centralidade que reduz um pouco o crescimento de uma indústria da reparação, que tem que ser olhada com cuidado”, afirma Paula.
O PTR do Rio Doce será destinado somente aos pescadores e agricultores, que terão direito a receber 1,5 salário mínimo por mês nos três primeiros anos, e um salário mínimo nos últimos doze meses. “Vemos, nesse sentido, que o conceito de ‘atingido’ ficou mais restrito no acordo do Rio Doce. Sabemos que pescadores e agricultores foram indiscutivelmente afetados, mas outros grupos estão sendo ignorados”, analisa Marta. Para Joceli, neste sentido dos ressarcimentos financeiros, o acordo mais recente deixou a desejar. “Está definida uma indenização individual de R$ 35 mil para as pessoas atingidas da Bacia do Rio Doce. Se são pescadores ou agricultores, esse valor sobe para R$ 95 mil. Nesse ponto, o acordo da Bacia do Paraopeba se difere, porque no caso dele os direitos individuais não foram tratados. Isso permitiu que a gente se amparasse nos marcos legais que garantem os direitos das pessoas atingidas para lutar por uma reparação individual mais qualificada, por meio do julgamento coletivo dos danos individuais. Já no caso do Rio Doce, as indenizações individuais já estão definidas nestes valores insignificantes para quem perdeu seus modos de vida depois de um crime”, diz.
O desastre-crime causado pela Vale com o rompimento de Brumadinho derramou 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos na Bacia do Paraopeba, fazendo chegar a lama tóxica pelo menos até a Represa de Retiro Baixo. Já no caso da Barragem de Fundão, em Mariana, cerca de 43,8 milhões de metros cúbicos correram pela Bacia do Rio Doce, alcançando a foz, no mar de Regência, no litoral capixaba. Com isso, muitas comunidades que dependiam da água para suas atividades diárias, como pesca, agricultura, cuidados domésticos e criaçãocultivo de animais, passaram a conviver com mais esta violação de direitos pela dificuldade do acesso à água.
Na Bacia do Paraopeba, o acordo previu, em uma de suas partes, a recuperação do rio, por meio de um Plano de Recuperação Socioambiental. Nele, a Vale é responsável por reparar os danos socioambientais causados pelos rejeitos de minério derramados na Bacia do Paraopeba, buscando o retorno a uma situação próxima às condições anteriores ao desastre-crime. Para isso, ele define ações como a remoção do rejeito do rio e a recuperação da área da Bacia do Ferro Carvão (onde aconteceu o rompimento) e do Rio Paraopeba, buscando melhorar a qualidade da água, do ar e dos solos. Também busca recuperar a vida dos peixes, de outros organismos aquáticos, das plantas, além da saúde das pessoas. “É importante lembrar que, depois de quase seis anos, quase nada foi feito em relação à recuperação ambiental. E, apesar do atraso documentado e relatado pela auditoria responsável, nenhuma sanção é imposta à empresa inadimplente”, relembra Paula, citando que a Vale ainda não terminou de retirar os rejeitos nem dos primeiros dois quilômetros do Paraopeba.
Apesar de ações emergenciais serem previstas no início do processo judicial, não foram efetivadas de maneira satisfatória, como questiona Marta. “Não existe nenhuma ação imediata voltada para quem tem urgência no acesso à água, e isso é um grande erro. Como fazem os que ficaram sem esse acesso depois do rompimento? No acordo da Bacia do Rio Doce, entre as obrigações que permanecem com as empresas, estão a retirada de 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos depositados no reservatório UHE Risoleta Neves, usina hidrelétrica situada na bacia hidrográfica. Ela ocupa uma área de mais de 83 mil km² nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Na repactuação, também está prevista uma verba de R$ 13 mil para 20 mil pessoas pelos danos à água, por terem tido suas atividades financeiras, produtivas ou renda comprometidas pelo rompimento da Barragem de Fundão. Sabemos que esse valor é ínfimo perto de todo o dinheiro que essas pessoas tiveram que gastar, ao longo dos últimos nove anos, para terem água”, afirma Marta.
A Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB) prevê o direito à Assessoria Técnica Independente (ATI) às comunidades que sofrem com os impactos da existência e/ou do rompimento de uma barragem. Segundo a legislação, as pessoas atingidas devem escolher a ATI que irá apoiar as suas comunidades, e a empresa causadora dos danos deve pagar os custos referentes à atuação da ATI. Com as ATIs em ação nos territórios, as populações têm acesso a informações seguras sobre seus direitos, entendem os movimentos dos processos judiciais, e também entram em contato com estudos técnicos independentes sobre os danos sofridos para que, enfim, consigam entender, mensurar e construir propostas para uma reparação digna e justa.
Nos acordos de reparação firmados nos últimos tempos em Minas Gerais, esse direito está previsto. “Em ambos os casos, o tempo garantido para que as pessoas atingidas tenham esse acompanhamento técnico essencial é muito pequeno. Se pensarmos no caso do Rio Doce, por exemplo, que o acordo está programado para ser executado em vinte anos, o que são quatro anos e seis meses de garantia de assessoramento técnico perto disso? Essa garantia deveria, nos dois casos, ser mais prolongada, porque esse amparo e acolhimento fazem toda a diferença quando pensamos em vidas tão duramente afetadas pela mineração”, afirma Marta.
O acordo da Bacia do Rio Doce também chamou a atenção de Marta e Joceli por dedicar uma verba às mulheres atingidas, reconhecendo, de certa forma, se tratar de um grupo particularmente prejudicado pelos desastres-crimes das mineradoras. “Onde tem mineração, tem mulher na luta, e isso é um fato. São, sem dúvida, as mais atingidas, seja enquanto trabalhadoras da área rural, agricultoras, donas de casa que tiveram seu trabalho aumentado… Elas foram atingidas de várias formas e é de extrema importância que sejam olhadas de maneira diferenciada”, ressalta Marta. “Temos, neste acordo mais recente, R$ 1 bilhão para as mulheres. É uma experiência importante”, destacou Joceli. No caso do Paraopeba, não existe essa distinção de valor dedicado às mulheres.
O acordo do Rio Doce também prevê R$ 8 bilhões para a realização de um modelo de autogestão de povos indígenas e demais Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), acompanhados pela União. Segundo o Governo Federal, esses recursos devem, entre outros, assegurar o direito ao recebimento de auxílio financeiro e verbas reparatórias, além da implementação de políticas públicas a outros povos e comunidades não reconhecidas. Este ponto também é considerado pelos especialistas um avanço em relação ao acordo do Paraopeba, que não trouxe disposições específicas, de forma que as IJs foram precisando criar novos recortes dentro dos anexos para contemplar os PCTs.
A verba destinada à saúde das pessoas atingidas foi outro ponto de atenção citado pelos entrevistados. Ao longo dos últimos anos, essa discussão ganhou força. Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), por exemplo, a Comissão de Saúde já vem ampliando o diálogo sobre a construção de uma Política Estadual de Atenção Integral à Saúde das Populações Atingidas por Barragens. Em audiências realizadas ao longo do último ano, algumas deputadas, deputados e representantes da sociedade civil vêem sinalizando a importância desta discussão e de proposições direcionadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda não conta com um protocolo voltado às pessoas atingidas pelas atividades minerárias em Minas Gerais. “Esta construção agora está com o Conselho Estadual de Saúde, e estamos buscando garantir a participação das pessoas atingidas no processo, apesar de não estar diretamente relacionado ao acordo”, pontua Paula.
“A visibilidade para esse tema também é uma conquista do povo, que cobrou estudos e políticas públicas voltadas aos que tiveram a saúde violada depois dos rompimentos. O acordo do Rio Doce prevê R$ 3,6 bilhões para ações de saúde. Considerando também o caso do Rio Paraopeba, são dois crimes que causaram grandes efeitos colaterais à saúde. Nesse caso, o acordo do Rio Doce avançou mais. Agora o Ministério da Saúde vai ter um bom recurso para equipamentos, além de um fundo perpétuo para continuar essas atividades. Isso é imprescindível, pois se trata de cuidar de pessoas que seguem morrendo por causa da mineração”, afirma Joceli.
Para finalizar, Paula chama a atenção para um ponto inexistente nos dois acordos: ações visando a não repetição dos crimes. “É estarrecedor que nenhum dos dois acordos aponte nada no sentido da não repetição dos crimes, sendo que em termos de sociedade, esse é o ponto de profundo interesse de todos. É necessário para tirar a sociedade dessa ameaça constante causada pelas mineradoras. A não repetição é crucial, ela é paradigmática, mas além de vermos as empresas e seus dirigentes sendo inocentados em processos criminais, também não existe nenhum tipo de sanção, não há imposição de multa, não há nada neste sentido, de colocar limites na atuação das empresas, que continuam não cumprindo as obrigações estabelecidas nos acordos”, conclui a assessora do Instituto Guaicuy.