Estação Ecológica de Arêdes, lugar produtor de águaProjeto Manuelzão

Estação Ecológica de Arêdes, lugar produtor de água

31/03/2025

Unidade de conservação em Itabirito fica sobre trecho relevante do Aquífero Cauê, o que se mostra nas mais de 60 nascentes que brotam em seu interior e no entorno

Principal curso d’água da Estação Ecológica, o Ribeirão Arêdes faz parte da bacia do Rio Itabirito, que deságua no Velhas. Foto: Henrique Piló.

Em meio à escalada de desequilíbrios ambientais, extensas perdas de superfície hídrica e estiagens mais prolongadas, preservar os ameaçados sítios que abastecem os rios e seus ecossistemas e sustentam o bom funcionamento do ciclo hidrológico é uma necessidade de última hora. A 40 quilômetros de Belo Horizonte, desempenha esse papel uma unidade de conservação (UC) de 1.157 hectares, criada em 2010 e delimitada em torno de valioso patrimônio natural e arqueológico do século XVIII.

A Estação Ecológica Estadual de Arêdes, em Itabirito, bem próxima à BR-040, preserva um trecho relevante do sistema hidrogeológico mais significativo do estado, formado entre 2,5 bilhões e 20 milhões de anos atrás, que molda a paisagem de prodigiosa biodiversidade. Aliando alta capacidade de absorção da água das chuvas e uma forma rara de armazenamento dela, esse sistema origina o Aquífero Cauê, característico do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero, núcleo populacional e minerador de Minas.

Arêdes foi um importante núcleo minerador, produtor de alimentos e entreposto de localidades como Sabará e Ouro Preto durante o Ciclo do Ouro. Está na borda oeste do Quadrilátero, na Serra de Itabirito, ao lado da Serra da Moeda, e suas águas estão integralmente inseridas na Bacia Hidrográfica do Rio Itabirito, que deságua no Velhas. No contexto local, corresponde quase totalmente à Sub-bacia do Ribeirão do Silva e parcialmente à Sub-bacia do Córrego do Bação. As nascentes do Córrego do Bação abastecem 80% do município de Itabirito.

O Ribeirão Arêdes é o principal curso d’água na Estação Ecológica, com os córregos Benevides, Lagoa Seca, do Bugre e da Cascalheira como principais tributários. São 40 nascentes registradas no interior da Estação e pelo menos outras 21 em seu entorno, segundo levantamento do plano de manejo da UC.

Para Luís Fernando Clímaco, engenheiro florestal e mestre em Ecologia de Campos Ferruginosos, o número expressivo de cursos d’água “é um demonstrativo do que é a natureza na região sem essas alterações bruscas e profundas que o ser humano é capaz de realizar”. Arêdes é uma amostra do que um dia foi a região, do ambiente dessas serras, uma porção ainda preservada graças à proteção instituída pela UC, ilhada pela mineração que retalhou todo o entorno.

Um dos objetivos do plano de manejo da Estação é garantir a qualidade da água e o equilíbrio do ciclo hidrológico, ameaçados pela exploração de ferro, nas bacias hidrográficas da UC e entorno. Foto: Carlos Castilho.

A abundância está relacionada ao tipo de formação rochosa, que possibilita a recarga e o armazenamento de água subterrânea na região. Flávio Fonseca do Carmo, biólogo, pesquisador do Instituto Prístino e membro da Comissão de Meio Ambiente e Biodiversidade do Conselho Regional de Biologia (CRBio) avalia essa condição. “Por que a gente tem esse fenômeno, uma quantidade tão grande de nascentes numa área relativamente pequena? Muito provavelmente está associado aos ambientes ferruginosos, às áreas de recarga hídrica. Lá tem o Aquífero Cauê, tem vegetações ainda preservadas, todos os elementos contribuem para esse número muito expressivo de nascentes na região”.

Conheça a diversidade de fauna e flora endêmica e rara protegida pela Estação Ecológica de Arêdes.

A produção de água do geossistema hidroferruginoso

A maior parte das serras do Quadrilátero, na Mesorregião Metropolitana de Belo Horizonte, tem em seu interior uma camada de rochas ferríferas bandadas, os itabiritos, da qual se extrai o minério de ferro. Situada na faixa média-alta das serras, essa camada rochosa formada há 2,5 bilhões de anos é denominada Cauê e é a mesma capaz de armazenar grandes volumes de água, correspondendo ao Aquífero Cauê. Ferro e água estão intrinsecamente conectados.

Na camada superficial dessas montanhas são encontradas as cangas, uma espécie de couraça de ferro que recobre o topo dos morros, tem grande capacidade de absorção de água (até 30% do volume das chuvas) e possibilita a recarga do aquífero. Surgidas há cerca de 50 milhões de anos, as cangas são uma das superfícies expostas mais antigas do planeta. No caso das serras da Moeda e de Itabirito, onde está Arêdes, as cangas têm entre 20 e 25 milhões de anos.

Cobertura de canga em Arêdes; a couraça de ferro e seu campo rupestre associado são encontrados no alto dos morros da região. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.

Juntos, o Cauê e as cangas compõem o chamado geossistema hidroferruginoso — o prefixo hidro diz respeito à capacidade desses estratos de infiltrar-se e armazenar água. As camadas subterrânea e superficial são entremeadas por outras formações geológicas subterrâneas chamadas Moeda, Gandarela e Cercadinho, também capazes de armazenar água, embora em volumes bem menores. Em nenhum outro lugar do mundo são conhecidos aquíferos nessas altitudes. Via de regra eles são encontrados nos fundos de vale, nas partes baixas do território.

O nome canga é uma corruptela da palavra indígena itapanhoacanga, usada antigamente para denominar os ambientes associados a essas “ilhas de ferro” no alto dos morros. Os ecossistemas ligados às cangas, os campos rupestres ferruginosos, apresentam elevada biodiversidade e são morada de grande número de espécies endêmicas, que só existem na região. Representando apenas 0,3% do território de Minas, os campos rupestres ferruginosos concentram cerca de 28% das espécies vegetais do estado.

Boa parte da água captada e distribuída pelos sistemas públicos para a população da Região Metropolitana de BH vem das montanhas ferríferas do Quadrilátero. O geossistema hidroferruginoso armazena cerca de 80% da água subterrânea de todo o Quadrilátero, mantendo a vitalidade das bacias dos rios das Velhas, Paraopeba, Pará, Piranga e Piracicaba, além de abastecer diretamente dezenas de municípios.

Vista da ruína de uma das edificações remanescentes da Fazenda Arêdes com montanhas da Serra de Itabirito ao fundo. Foto: Henrique Piló.

As nascentes que brotam nas serras, em última análise, são o extravasamento superficial da água subterrânea contida nos aquíferos quando estes estão cheios. “Quando chove na nossa região, a água atinge o geossistema ferruginoso. Boa parte dessa água, ao encontrar a canga, que é extremamente porosa, vai penetrar no interior da montanha. Esse é o fenômeno de recarga hídrica do aquífero, que vai se refletir na disponibilidade de água superficial”, explica Flávio do Carmo.

“Além da quantidade de água, outra coisa importantíssima é a qualidade”, sublinha o pesquisador do Instituto Prístino. “A qualidade da água das nascentes do Aquífero Cauê é excepcional. É praticamente água mineral para engarrafar”.

Confluência infausta

Arêdes é uma das áreas que protege os ameaçados trechos remanescentes de canga em Minas Gerais. Não bastasse a ocorrência bastante limitada, essas áreas sofrem intensa diminuição e degradação devido às atividades de mineração. Além das cangas, Arêdes está sobre trecho importante do Aquífero Cauê, como mostra o georreferenciamento da UC sobreposto às bases de dados de aquíferos. O mapa foi elaborado, a pedido do Projeto Manuelzão, pelo geólogo Paulo Rodrigues, pesquisador e professor do programa de pós-graduação do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN).

Estação Ecológica sobreposta às águas subterrâneas da região; sua área mais preservada guarda trechos relevantes de cobertura de canga e do Aquífero Cauê. Mapa: Paulo Rodrigues.

“Por um lado, as cangas e o Cauê são absurdamente importantes do ponto de vista da biodiversidade, de fornecimento e armazenamento de água, mas é o mesmo geossistema que concentra as grandes jazidas de minério de ferro. Então a gente tem o que vou chamar de ‘dicotomia de uso’”, define Flávio do Carmo. “Se houver superexploração de minério, o resultado é a destruição do geossistema hidroferruginoso, a supressão da vegetação de canga, do aquífero, das nascentes e por aí vai, porque elas ocorrem no mesmo lugar”.

Paulo Rodrigues usa a expressão “paradoxo da sorte” para indicar a ligação entre uma reserva rara de água em quantidade e qualidade e sua invariável demolição se se quiser explorar o minério.

Os danos a esse geossistema formado ao longo de bilhões de anos, ressalta Fernando Silveira, professor do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG, são irreversíveis. “Todo processo de licenciamento de mineração deveria considerar a perda desse serviço ambiental, que é irreparável. Essas áreas de canga são de importância biológica, geológica e hidrológica insubstituível. Não tem como a gente recuperar ou recriar esse tipo de ambiente”.

Para além da análise ponderada e criteriosa dos processos de licenciamento ambiental de empreendimentos minerários, Flávio do Carmo chama atenção para o papel do estado na proteção desses territórios-chave. “Dadas a alteração climática e a degradação ambiental, temos um ambiente que fornece esse tipo de serviço ecossistêmico, água abundante e com qualidade excepcional. Sem dúvida nenhuma [a preservação dessas áreas] deveria estar no topo das nossas políticas públicas de gestão de recursos hídricos e de conservação de ambientes e ecossistemas”.

Ronda às unidades de conservação

A criação de áreas legalmente protegidas é reconhecida mundialmente como a principal estratégia para conservação de ecossistemas e garantia de serviços ambientais insubstituíveis. No Quadrilátero Ferrífero-Aquífero, estudos indicam que em torno de 50 a 55% das áreas de canga já foram perdidas, destruídas de maneira irreversível. Dos 50 a 45% restantes, 80% já sofreram algum tipo de impacto. A maior parte dos remanescentes ainda preservados está em unidades de conservação.

Campos rupestres ferruginosos, vegetação associada às cangas, no alto de Arêdes. Foto: Carlos Castilho.
Serra da Moeda retalhada pela mina do Lopes, da Gerdau, vista a partir de Arêdes. Foto: Ferdinando Silva/Projeto Manuelzão.
Córrego do Bação no interior da Estação Ecológica. Foto: Beatriz Cristina.
"Pleurothallis teres", orquídea rupícola endêmica dos campos rupestres ferruginosos. Foto: Carlos Castilho.
Cachoeira do Meio, cabeceira do Ribeirão Arêdes. Foto: Beatriz Cristina.
"Periandra mediterranea", popularmente conhecida como alcaçuz, encontrada em Arêdes. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.
Lagoa artificial formada pela exploração de ouro na antiga Fazenda Arêdes. Foto: Beatriz Cristina.
Mar de morros visto do alto de Arêdes, com a Serra de Ouro Preto no horizonte; área visada para desafetação fica logo abaixo à esquerda. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.
Alinhamento montanhoso da Serra da Moeda no sentido BH–Congonhas, visto de Arêdes. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.
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Campos rupestres ferruginosos, vegetação associada às cangas, no alto de Arêdes. Foto: Carlos Castilho.
Serra da Moeda retalhada pela mina do Lopes, da Gerdau, vista a partir de Arêdes. Foto: Ferdinando Silva/Projeto Manuelzão.
Córrego do Bação no interior da Estação Ecológica. Foto: Beatriz Cristina.
"Pleurothallis teres", orquídea rupícola endêmica dos campos rupestres ferruginosos. Foto: Carlos Castilho.
Cachoeira do Meio, cabeceira do Ribeirão Arêdes. Foto: Beatriz Cristina.
"Periandra mediterranea", popularmente conhecida como alcaçuz, encontrada em Arêdes. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.
Lagoa artificial formada pela exploração de ouro na antiga Fazenda Arêdes. Foto: Beatriz Cristina.
Mar de morros visto do alto de Arêdes, com a Serra de Ouro Preto no horizonte; área visada para desafetação fica logo abaixo à esquerda. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.
Alinhamento montanhoso da Serra da Moeda no sentido BH–Congonhas, visto de Arêdes. Foto: Ferdinando Oliveira/Projeto Manuelzão.
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Em função da pressão do poder econômico,  no entanto, mesmo as áreas protegidas consolidadas não estão lá tão a salvo. Em geral o cerco se dá em duas formas. Em sua versão mais tosca, empresas avançam sobre o território sem licença ambiental, contando com a posterior assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com instituições de Justiça e poder público, de modo a “compensar” os crimes ambientais e regularizar sua atividade, prática comum em Minas. Na variação mais refinada, empresas se articulam a políticos eleitos para apresentar alterações na lei que retirem a proteção das áreas e as direcionem para um uso não conservacionista. A isso dá-se o nome de desafetação da área protegida.

Pouco depois da sua criação, a Estação Ecológica de Arêdes já estava na mira. O primeiro projeto de lei que propunha a desafetação de pouco mais de 100 hectares da área foi apresentado em 2012 na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), sendo arquivado posteriormente. Em 2013, foi criado um projeto para mudar limites de outra UC, mas, no último momento da tramitação, foi incluída a desafetação de parte da Estação Ecológica. Em 2017, o deputado João Magalhães (MDB) inseriu furtivamente, em um projeto que versava sobre impostos estaduais, uma emenda sobre a desafetação. Ambas as manobras, após tornarem-se lei brevemente, foram consideradas inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

A ofensiva mais recente é uma parceria entre a mineradora Minar e o mesmo deputado João Magalhães, atual líder do governo de Romeu Zema (Novo) na Assembleia. Com base na proposta feita pela mineradora, o PL apresentado em 2023 trouxe uma inovação: a desafetação de uma área ambientalmente importante e economicamente valiosa de cerca de 28 hectares, acompanhada do acréscimo de uma área irrelevante de 61 hectares. Dessa forma o PL podia ser propagandeado como uma ampliação dos limites de Arêdes.

Como ferro e água estão juntos no interior das serras, a área ameaçada de desafetação em Arêdes se sobrepõe quase inteiramente ao trecho do Aquífero Cauê dentro da Estação Ecológica. Mapa: Google Earth/Projeto Manuelzão.
 

De fato, em troca de áreas impactadas pelo uso como pastagem, o PL propõe desafetar 16 hectares de uma área predominantemente de canga e sua vegetação nativa associada e 12 hectares de uma área em processo de recuperação ambiental há 16 anos. Os 28 hectares cobiçados são de propriedade pública que seria cedida à mineradora durante o período da exploração. Já os 61 hectares previstos para anexação são de propriedade particular, mas não da mineradora, o que implicaria no ônus ao Estado de Minas Gerais de regularizar a situação das terras.

Parte dessas áreas da Estação que estão ameaçadas ficam na chamada zona primitiva, a mais sensível em uma UC, onde houve mínima intervenção humana, com a presença de espécies endêmicas e ameaçadas da flora. Nessa área também se encontra patrimônio arqueológico do século XVIII, um conjunto de ruínas, aqueduto, canais e tanque de drenagem da antiga Fazenda Arêdes.

Mesmo com numerosas manifestações contrárias, o projeto do deputado João Magalhães foi aprovado na Assembleia no apagar das luzes do ano legislativo e sancionado pelo governador Romeu Zema, em 28  de dezembro de 2023, como Lei nº 24.631. À época, o Ministério Público de Minas Gerais condenou a desafetação, apontando que a mudança traria apenas perdas.

Organizações da sociedade civil e especialistas engajados na proteção de Arêdes avaliam a aprovação da lei como um caso notório de retrocesso ambiental, dado o impacto negativo em processos ambientais essenciais de produção de água e a perda da proteção a diversas espécies ameaçadas de extinção. Esses movimentos, como o Somos Arêdes, seguem mobilizados e cobram do poder público e do Judiciário  a preservação integral da área, sem nem um hectare a menos.

Como conhecer?

Arêdes recebe visitantes para atividades de educação ambiental, patrimonial e pesquisa científica. Para agendar uma visita, entre em contato pelo perfil no Instagram da Estação Ecológica ou passe no escritório administrativo localizado no terminal rodoviário de Itabirito, na Rodovia dos Inconfidentes, entre 7h30 e 17h30, de segunda a sexta-feira. A Estação é cenário ideal para trilhas interpretativas, estudos especializados e sensibilização ambiental. Acompanhe as iniciativas e descubra mais sobre esse território de grande relevância acessando o blog oficial.

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