Evolução no biomonitoramento de peixes no Rio das VelhasProjeto Manuelzão

Evolução no biomonitoramento de peixes no Rio das Velhas

15/04/2024

O atual cenário da diversidade de espécies na bacia 20 anos após a Expedição “Manuelzão Desce o Rio das Velhas”

[Artigo de Carlos Bernardo Mascarenhas Alves, biólogo do Projeto Manuelzão e Paulo dos Santos Pompeu, professor da Universidade Federal de Lavras (UFLA), publicado nas páginas 14 e 15 da Revista Manuelzão 94, na editoria Trilha do Velhas. Acesse a edição 94 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

No Rio das Velhas, um dos rios brasileiros que foi intensamente estudado por naturalistas nos séculos passados, a fauna de peixes tem sido monitorada há 25 anos pelo Projeto Manuelzão. Desde as primeiras análises em 1999, os resultados se mostraram relevantes para ações de recuperação, saneamento, conservação, mobilização social e cidadania nesse importante tributário da Bacia do Rio São Francisco. Desde então, foram realizados levantamentos na calha principal, diversos afluentes, lagoas marginais, na lagoa central de Lagoa Santa e riachos, percorrendo todos os trechos (Alto, Médio e Baixo Rio das Velhas). 

O biomonitoramento, isto é, monitoramento utilizando um grupo de seres vivos, revelou a influência negativa da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) sobre a distribuição das espécies de peixes. Apontou também a presença de ambientes preservados, como o Rio Cipó, e lagoas marginais no baixo curso, que possibilitavam a manutenção de rica fauna de peixes. A presença destes ambientes apontava, desde o início dos estudos, para a viabilidade de rápida recuperação da fauna de peixes com a eventual melhora das condições da bacia. Tal fato também seria possível pela ausência de barramentos, garantindo os pulsos anuais de cheias e a dispersão das espécies dos trechos preservados para aqueles em recuperação. 

Curvas do número de espécies ao longo do Rio das Velhas desde 1999 (linha vermelha), com evidência da recuperação após 2006, porém aquém do nível desejado, até 2023. O total de espécies é obtido somando-se o número registrado em cada um dos sete pontos de amostragem. Créditos: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves e Paulo dos Santos Pompeu.

Ao longo do tempo, com as diversas intervenções realizadas (principalmente pelo tratamento de esgotos nas estações Arrudas e Onça, disposição adequada de lixo em aterros controlados, fiscalização de desmatamentos e queimadas, reflorestamento ciliar, entre outras) a ictiofauna respondeu positivamente, com diversa espécies se aproximando e até ultrapassando os pontos críticos de qualidade de água da RMBH. Porém, a estabilização da riqueza de espécies de peixes em patamares superiores aos de 1999, ainda não alcançou os níveis desejados (gráfico acima). Isso demonstra que a luta continua e devemos manter as boas práticas, ampliar o tratamento para maior número de cidades, aumentar o volume tratado, melhorar a eficiência e implantar o tratamento terciário de esgotos.

Capa do livro Peixes do Rio das Velhas: Uma Contribuição para a Ictiologia do Brasil, 2010 – 2ª Edição.

Através do Projeto Manuelzão, o conhecimento sobre os peixes do Velhas e seu status de conservação veio em etapas, progressivamente com base nos resultados obtidos. Até a primeira Expedição Manuelzão em setembro de 2003, já havíamos estudado a calha principal do Rio das Velhas, cinco afluentes (Cipó, Onça, Pardo Grande, Curimataí e Bicudo) e a lagoa central de Lagoa Santa. 

Nesse período, já haviam sido registradas mais de uma centena de espécies de peixes. Constatamos que a RMBH exercia forte pressão negativa sobre o rio principal, que 75% da fauna estava bem preservada em afluentes com melhor qualidade, e que 70% das espécies de peixes da lagoa central de Lagoa Santa foi localmente extinta em 150 anos. São resultados expressivos, que reforçaram a necessidade de forte pressão política para reverter a situação e justificaram a continuidade dos estudos. Em paralelo, conseguimos traduzir para o português a obra Velhas-Flodens Fiske: Et Bidrag til Brasiliens Ichthyologi (Peixes do Rio das Velhas: Uma Contribuição para a Ictiologia do Brasil, 1875), escrita em dinamarquês e latim arcaicos, e que trazia dados dos peixes da bacia coletados antes da fundação de Belo Horizonte. 

Praticamente todas as espécies registradas no passado ainda ocorrem em algum trecho da Bacia do Rio das Velhas. Talvez uma exceção seja o pirá (Conorhynchos conirostris, foto abaixo), que nunca foi registrado cientificamente desde 1999, apesar de pescadores esporadicamente relatarem capturas. No livro traduzido, Christian Frederik Lütken reporta que, em suas anotações de campo, Johannes Theodor Reinhardt observou três exemplares em fevereiro e março, afirmando que seu verdadeiro lar é Rio São Francisco, e que ele sobe anualmente o Velhas, o que pode ser interpretado como a piracema (migração reprodutiva). O último registro científico da espécie na bacia, coletado por George Chalmers no Rio Jaboticatubas (afluente do Velhas), foi tombado no Museu de História Natural de Londres em 1925.

O mote principal do Projeto Manuelzão — a volta do peixe ao rio — tornou-se uma necessidade premente, e foi lançada a Meta 2010: Navegar, Pescar e Nadar na Calha Metropolitana do Rio das Velhas. A Meta 2010 foi um programa estruturador do Governo de Minas Gerais e permitiu a conclusão e operação das Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) Arrudas e Onça. A própria Copasa, que financiou diretamente alguns dos nossos estudos, se apoiou nesses resultados para justificar a continuidade dos investimentos em saneamento da bacia, implantando o tratamento secundário na ETE Onça, novos interceptores através do Programa Caça-Esgotos, entre outras ações. 

Pirá (Conorhynchos conirostris), espécie endêmica da Bacia do Rio são Francisco e que foi registrado no Rio das Velhas no passado. Foto: Carlos Bernardo Mascarenhas Alves e Paulo dos Santos Pompeu.

Como salientado anteriormente, a melhor condição dos afluentes e sua conectividade com o Rio das Velhas e deste com o Rio São Francisco garantem fontes perenes de recolonização da calha principal através da simples melhora da qualidade da água. Nossos dados, a partir de nova fase de estudos a partir de 2006, começavam a revelar que o tratamento secundário na RMBH já produzia efeitos positivos na distribuição dos peixes, mas não no Médio e Baixo Velhas, dados que foram confirmados em etapas posteriores.

A partir de 2015 e no presente (2020-2025), foram adotadas novas abordagens aos estudos da biodiversidade de peixes. Através de demanda do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas com suporte financeiro da Agência Peixe Vivo, os estudos das fontes de matéria orgânica (carbono e nitrogênio) para os peixes revelam que boa parte dos nutrientes que sustentam a ictiofauna ainda são oriundos do esgoto, e não de fontes naturais. Existe até uma espécie exótica e altamente resistente que se utiliza diretamente do esgoto em sua alimentação, na RMBH. Isso ocorre mesmo com o aumento do volume de esgoto tratado na bacia e indica que ainda há um longo caminho a ser percorrido para a revitalização da Bacia do Rio das Velhas.

Página Inicial

Voltar