Governo federal retira 19 UCs de programa de desestatizaçãoProjeto Manuelzão

Governo federal retira 19 unidades de conservação de programa de desestatização

16/04/2024

Derrubando decretos da administração passada, medida contempla duas florestas e 17 parques nacionais e revisa rumos da gestão ambiental no país

Após recomendação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), o governo federal removeu 19 unidades de conservação (UCs) do Plano Nacional de Desestatização (PND). Entre elas, estão os parques nacionais da Serra da Canastra e da Serra do Cipó, localizados em Minas Gerais, além do Parque Nacional de Caparaó, na divisa entre Minas e Espírito Santo.

Em vigor desde 6 de fevereiro, a medida revoga quatro decretos assinados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e atende resolução publicada pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) em dezembro de 2023, por meio da qual foi revisada a carteira de projetos sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental que administra as UCs federais.

Para o biólogo e geógrafo, professor associado do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG, Bernardo Gontijo, a decisão “alivia um pouco a pressão que acontece sobre essas unidades de conservação quando vem essa proposta, essa imposição, às vezes, de ter que terceirizar o uso público”.

Todas as 19 unidades de conservação foram excluídas do PND, sob justificativa de que o Plano “deixou de ser necessário” com o amadurecimento das instituições envolvidas, segundo Resolução publicada pelo Conselho do PPI. O órgão afirma que os projetos foram inicialmente incluídos porque “poderiam contar com ferramentas e governança que seriam, e foram importantes para os projetos de parceria com o setor privado desenvolvidos até então”.

No entanto, 11 UCs ainda foram mantidas no PPI (lista ao fim do texto), inclusive o parque da Serra do Caparaó, o que conserva a possibilidade de projetos de parcerias público-privadas nas unidades.

Com quase 2 mil km², a Serra da Canastra é lar das nascentes do Rio São Francisco e de comunidades tradicionais que ocupam a região há pelo menos 250 anos. Foto: Pedro Beraldo.

Criado em 2016, o PPI visa a ampliação de interações entre Estado e iniciativa privada, a partir de parcerias e outras medidas de desestatização. Já o PND, criado em 1990, transfere para a iniciativa privada a administração de estruturas públicas. A desestatização é um processo diferente da privatização, que é a transferência definitiva da posse de um bem ou serviço.

As UCs no PND poderiam ser transferidas à iniciativa privada por prazos definidos, com regras contratuais, para a execução de serviços públicos de visitação, conservação, proteção e gestão das unidades. Os projetos tratam-se, portanto, de concessões. No entanto, esse tipo de parceria, definida por Gontijo como uma “terceirização do uso público”, também gera desconfianças.

“Historicamente, tem sido privilegiada a iniciativa privada e empresas ou organizações já com uma certa capitalização e que, na maioria das vezes, não têm vínculo qualquer com a comunidade do entorno dessas unidades de conservação. Essa é a preocupação gerada, elas caem de paraquedas e tentam implementar um ritmo de trabalho, uma filosofia de trabalho, totalmente diferente do que seria a gestão de uso público por parte de um órgão público, dando ele conta ou não do serviço”, avalia o professor do IGC, que é coordenador do Grupo Integrado de Pesquisas do Espinhaço (GIPE).

A desestatização, como a privatização, foi uma das bandeiras do governo Bolsonaro. A entrega da gestão de UCs à iniciativa privada foi fortemente defendida pelo ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, réu em ação sobre contrabando de madeira ilegal. Em 2019, ele propôs a concessão das serras da Canastra e do Cipó à Vale, em troca de uma multa de R$250 milhões aplicada à mineradora pelos crimes de Brumadinho. A troca não chegou a ser realizada.

Cachoeira do Gavião, no Parque Nacional da Serra do Cipó. O parque é divisor entre as bacias do Velhas e do Rio Doce e abriga vegetação de Cerrado e muitas espécies endêmicas de fauna e flora. Foto: Portal Serra do Cipó.

Segundo Gontijo, um problema em relação à terceirização dos serviços de turismo é que, frequentemente, essas medidas contribuem para a elitização do acesso às áreas protegidas, o que acelera a desigualdade. Além disso, na prática, grande parte do orçamento disponibilizado para o ICMBio vai para a administração de pessoal terceirizado e resta menos para investir na melhoria dos serviços.

O professor explica que esse modelo de gestão é adotado porque se apresenta como uma solução para otimizar e fortalecer o turismo, já que uma gestão governamental não é rentável. No orçamento da União, “mais da metade vai para pagar dívidas, no modelo rentista atual. Isso aí já é um flagelo, e isso não é só no Brasil, isso é no mundo inteiro, essa lógica financeira do capital gerando o próprio capital. Então pro resto, saúde, educação, segurança, etc., vai o resto do tesouro. E o meio ambiente mal aparece nisso aí. A proteção ambiental não gera lucro”, afirma Gontijo.

A ambientalista e educadora ambiental Maria Teresa Corujo, a Teca, acredita que, para os parques das serras do Cipó e da Canastra, a revogação é uma decisão a ser comemorada. “Os parques são unidades de conservação criadas para o bem e pro uso coletivo, para o bem comum, para tudo que tem a ver com o uso coletivo. Então a sua gestão teria que ser desvinculada do aspecto de um negócio”, defende a educadora. 

Para Teca, a importância de se reconhecer isso é que modelos de gestão privados e concessões não priorizam as relações das áreas protegidas com os visitantes e as comunidades do entorno. Nas concessões do PND, a gestão dos parques era transferida do ICMBio para a iniciativa privada. Com isso, reverte-se a lógica da proteção e conservação ambiental e os parques passam a ser entendidos como fonte de lucro. “Não vai ter um olhar contemplando e considerando questões de sociodiversidade e os direitos das populações locais, que poderiam e deveriam ser incluídas de imediato nessas questões de oferta dos serviços de turismo”, argumenta Teca, que ressalta ainda o papel dessas comunidades na preservação das unidades de conservação. 

Gontijo concorda que elas devem ser levadas em consideração no desenvolvimento de modelos de concessão. Geralmente, essas populações sofrem com pressão de especulação imobiliária, pelo atrativo turístico das regiões. “O modelo de concessão não necessariamente tem que ser voltado para uma empresa, ele pode ser muito bem discutido com uma sociedade civil organizada, de preferência com essas comunidades de entorno”, completa.

A Serra da Canastra se estende pelos municípios de São Roque de Minas, Sacramento e Delfinópolis. Foto: Portal Serra da Canastra.

Em consonância, Teca defende a priorização do turismo de base comunitária (TBC) como um caminho possível. Além de contribuir para a preservação do vínculo afetivo entre as unidades de conservação e as comunidades do entorno, esse modelo garante a elas um papel mais central na oferta de serviços de visitação. 

Gontijo concorda. “Nada impede que a concessão seja feita com uma associação comunitária, com uma organização local, com o protagonismo desses atores; esses sujeitos que são fundamentais para a continuidade do pertencimento das unidades de conservação com a comunidade do entorno. Isso serve pra Serra da Canastra e serve pra Serra do Cipó”, afirma.

O turismo de base comunitária é o tipo de turismo no qual a comunidade local do destino organiza e presta serviços para os visitantes, a fim de que a identidade cultural da região e suas relações com a área sejam respeitadas e preservadas. Além de gerar renda diretamente para a população, esse modelo promove a valorização da cultura local e contribui para o fortalecimento do senso de identidade do grupo, ampliando o que normalmente é tido apenas como uma relação comercial.

No Brasil, poucos destinos contam com legislação que ofereça embasamento para a prática do TBC. Em Minas Gerais, a Política Estadual de Turismo de Base Comunitária é prevista por lei desde 2021. As diretrizes determinam que a atividade pode ser realizada em comunidades indígenas; quilombolas; tradicionais e de matriz africana; de pescadores artesanais; de agricultores familiares; de assentamentos rurais e em unidades de conservação.

“Uma área protegida, como uma unidade de conservação, nunca é criada visando-se lucro. Nunca foi e nunca será. E aí tem que se pensar exatamente o modelo de parceria, o modelo de concessão, para que não haja elitização e para que haja incorporação das comunidades adjacentes, que são as que absorvem esse fluxo turístico e podem ganhar com isso. Se todos ganharem e a área continuar protegida, tá ótimo”, defende Gontijo.

Unidades de conservação excluídas do PND e do PPI:

– Lençóis Maranhenses/MA,
– São Joaquim/SC,
– Serra da Capivara/PI,
– Serra da Bocaina/RJ,
– Ubajara/CE,
– Restinga de Jurubatiba/RJ,
– Serra da Canastra/MG,
– Serra do Cipó/MG.

Unidades de conservação excluídas do PND e mantidas no PPI:

– Parque Nacional da Chapada dos Guimarães/MT,
– Parque Nacional de Jericoacoara/CE,
– Parque Nacional Serra da Bodoquena/MS,
– Parque Nacional e Floresta Nacional de Brasília/DF,
– Parque Nacional da Serra dos Órgãos/RJ,
– Floresta Nacional de Ipanema/SP,
– Parque Nacional Anavilhanas/AM,
– Parque Nacional Jaú/AM,
– Parque Nacional de Caparaó/MG/ES.

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