Instalação de fábrica da Heineken ameaça sítio arqueológico onde fóssil de Luzia foi encontrado - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Instalação de fábrica da Heineken ameaça sítio arqueológico onde fóssil de Luzia foi encontrado

14/10/2021

Esqueleto mais antigo da América do Sul pertenceu a mulher que viveu há cerca de 13 mil anos na região, que fica em área de proteção ambiental nos limites de Lagoa Santa e Pedro Leopoldo

Uma parceria entre a cervejaria holandesa Heineken e o governo de Minas Gerais foi anunciada em 2020 e prometia o investimento de 1,8 bilhão de reais no município de Pedro Leopoldo. O que não se esperava era que a região escolhida para a instalação de uma fábrica da empresa seria a Área de Proteção Ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa, onde, na década de 70, o fóssil mais antigo das Américas foi encontrado na gruta Lapa Vermelha IV, que faz parte da APA. Tratava-se de Luzia, que viveu há cerca de 13 mil anos. A instalação da fábrica causaria danos irreparáveis à unidade de conservação de geomorfologia cárstica, caracterizada pela corrosão de rochas calcárias e complexo de grutas e sítios arqueológicos.

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) instaurou um inquérito civil no último mês para apurar os impactos e identificou diversas violações no processo de licenciamento. A primeira violação encontrada no “pente fino sobre o processo de licenciamento”, como destacado pelo promotor Marcelo Maffra, é que mesmo tão próximo ao Monumento Natural Estadual da Lapa Vermelha o empreendimento não tinha anuência do gestor da unidade, neste caso, o Instituto Estadual de Florestas (IEF), com observância de um conselho consultivo, o que é obrigatório segundo a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

O MPMG também constatou, em vistoria realizada no dia 29 de setembro, com equipe que incluía uma historiadora, uma arqueóloga, um analista, além de profissionais do IEF, que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) não havia sido notificado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) sobre o empreendimento. O Iphan obrigatoriamente deve ser envolvido em processos de licenciamento que envolvam bens patrimoniais e históricos tombados, como é o caso dos sítios arqueológicos da região.

A cervejaria conseguiu as licenças prévia e de instalação junto à Semad, em 24 de agosto e começou os serviços de terraplenagem. Em 15 de setembro a obra foi embargada por ação dos fiscais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio-MG). Em nota técnica do ICMBio, os fiscais apontaram que uma das fontes de captação para produzir a cerveja é o subsolo, com um volume de 310 m³ por hora, o que seria suficiente para abastecer uma cidade de aproximadamente 37 mil habitantes.

Isso pode causar danos irreparáveis ao patrimônio espeleológico da APA Carste pelo altíssimo potencial da instalação da fábrica em afetar a dinâmica e a qualidade da água apontada no interior da caverna Lapa Vermelha I.  Além da possibilidade de comprometimento da bacia do córrego Samambaia, o que poderia afetar também a região vizinha do Parque Estadual do Sumidouro (Pesu), incluindo a lagoa do Sumidouro. 

Modelo de elevação 3D da nota técnica do ICMBio demonstra como a drenagem superficial próxima à caverna Lapa Vermelha I será afetada.

Do ponto de vista hidrogeológico, o empreendimento prevê o uso de 360 m³/h de água durante 24 horas por 365 dias. Deste total, 50 m³/h serão captadas no Ribeirão da Mata e 310 m³/h de dois poços artesianos localizados a 680 metros da planta da fábrica, podendo causar rebaixamento dos lençóis freáticos, desaparecimento de algumas lagoas na região, escassez hídrica e impactos nas cavernas do Fedo, Cipó e Nei. A falta de água causada pelos impactos no sistema de drenagem poderia afetar Pedro Leopoldo, Confins, Lagoa Santa e Matozinhos.

Essas informações fazem parte do artigo publicado pelos historiadores e arqueólogos Alenice Baeta, André Prous e Hugo Sales apontando risco de colapso hídrico, ambiental e patrimonial na APA Carste de Lagoa Santa. Os pesquisadores também apontaram incoerência em relatórios do licenciamento e desrespeito ao Plano de Manejo da Unidade.

Confira o artigo Risco de Colapso Hídrico, Ambiental e Patrimonial na APA Carste de Lagoa Santa publicado no site da Comissão Pastoral da Terra.

Grutas na região abrigavam o mais antigo fóssil das Américas

A importância histórica da APA Carste de Lagoa Santa começou a ser percebida já no século XIX, quando o “pai da paleontologia”, o dinamarquês Peter Lund, começou a explorar a área em busca de fósseis de animais gigantes que viviam na região. Um século depois, a equipe da missão franco-brasileira coordenada pela arqueóloga Annette Laming-Emperaire encontrou em 1975, a 11 metros de profundidade, os ossos do esqueleto mais antigo do Brasil e das Américas. O esqueleto de Luzia ficou duas décadas guardado no Museu Nacional quando o antropólogo e arqueólogo Walter Alves Neto começou a analisar a sua morfologia craniana. O nome foi inspirado em Lucy, o fóssil de Australopithecus afarensis de 3,5 milhões de anos achado na Etiópia em 1974.

No incêndio do Museu Nacional, em 2 de setembro de 2018, o crânio de Luzia foi parcialmente perdido junto do acervo de mais de 200 fósseis dos primeiros americanos oriundos da região de Lagoa Santa. Cerca de 80% de seus fragmentos foram encontrados nos destroços e a peça foi reconstituída em 3D por pesquisadores.

Réplicas impressas em 3D da reconstituição do rosto de Luzia e de seu crânio original expostos no jardim do Museu Nacional. As peças foram perdidas no incêndio. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

A APA Carste de Lagoa Santa e o Sítio Arqueológico Lapa Vermelha são considerados Geossítio de Relevância Internacional pela Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos, e, em 2017, graças aos esforços de dois pesquisadores do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, os professores José Eugênio Côrtes Figueira e Maria Auxiliadora Drumond, o território foi incluído como “Zona Úmida de Importância Internacional”, denominado como Sítio RAMSAR Lund Warming.

Após os técnicos do ICMBio embargarem as obras da Heineken, também foram aplicadas multas que somam 83 mil reais. O MPMG previa que o laudo técnico da vistoria ficasse pronto no início de outubro e que até o fim do mês sejam traçados os próximos passos. O promotor pretende, a partir da análise técnica, decidir se há elementos suficientes para um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), uma ação civil pública ou nenhuma das duas ações.

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