“Lama de Mariana pavimentou rios por onde passou. Dano é irreversível”

17/11/2015

Leia entrevista do coordenador do Projeto Manuelzão, Marcus Vinícius Polignano, ao jornal “El Pais”. Nela ele revela a preocupante situação do rompimento e sua relação com o meio ambiente.

A avalanche de rejeitos gerada em Minas Gerais pelo
rompimento de duas barragens da mineradora Samarco, controlada pela Vale e a
australiana BHP, causou danos ambientais imensuráveis e irreversíveis. Apesar
da lama não ter um teor tóxico, ela pavimentou os mais de 500 km por onde
passou devastando, com impacto ainda difícil de calcular completamente para
grande parte do ecossistema da região. “Podemos dizer que 80% do que foi
danificado lá é perda, não há como pensar em um plano de recuperação
ambiental”, explica Marcus Vinícius Polignano, coordenador do Projeto
Manuelzão. O projeto ambiental, da Universidade Federal de Minas Gerais,
monitora a atividade econômica e seus impactos ambientais nas bacias
hidrográficas e trabalha com a revitalização dos principais rios mineiros.

Em entrevista, ele afirmou que a mineração precisa
ser reinventada: “Não podemos continuar pensando que podemos fazer modelos
do século XVIII em situações do século XXI”.

 

Pergunta.
Qual a dimensão do estrago ambiental causado pelo rompimento das barragens?

Resposta. É de uma magnitude que eu diria
imensurável a princípio. Há várias situações. A extensão do dano é tal que
estamos com a lama chegando na foz do Rio Doce, no Estado do Espírito Santo, a
mais de 500 km do local do rompimento da barragem. A avalanche de lama rompeu e
despejou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Apesar dessa lama
não ter aparentemente uma composição tóxica do ponto de vista químico, a
densidade por si é altamente impactante, porque ela foi fazendo um tsunami de
rejeitos que por todos os lugares em que passou devastou, matou e impactou. Uma
mesma onda produziu três efeitos. Ela devastou, já que arrebentou tudo que viu
pela frente, ela impactou porque se consolidou, não foi passageira, se espalhou
ao longo de todo esse trajeto. Ela praticamente produziu os três efeitos
simultaneamente. As comunidades que estavam no caminho perderam seu meio de
vida, pequenos agricultores tiveram as fazendas devastadas

 

P. E como
fica o ecossistema?

R. A onda foi pavimentando o trajeto, porque aquilo
é uma massa com certa densidade, não é essa lama de enchente que é mais rala,
ela tem densidade e uma liga, dessa forma foi pavimentando onde passou. Ela
ocupou tanto o leito do curso d’água como as margens. Dependendo da região,
chegou a uma faixa de 50 a 100 metros para além da borda do rio. As comunidades
que estavam no caminho perderam todas as suas propriedades, perderam seu meio
de vida, porque tinham pequenos agricultores que tiveram as fazendas
devastadas, sem contar todo o prejuízo do ecossistema que substituído. Imagina
que o ecossistema aquático foi totalmente ocupado por esse material de
rejeitos.

 

P. E qual
situação dos rios da região?

R. Essa tsunami toda chegou rapidamente aos rios. A
lama saiu de um afluente, que era o Gualaxu, passou para o Rio do Carmo e
atingiu o Doce que é o rio principal, que configura a bacia. Então foi descendo
rio abaixo, trazendo outros efeitos, matando todos os peixes já que a densidade
da lama retirou o oxigênio da água. Há cenas chocantes de peixes pulando para
fora da água. Um quadro absolutamente tétrico, horrível, inimaginável. O rio
Doce tinha uma biodiversidade bem diversificada, cerca de 80 espécies
diferentes. Todos os sistemas se interligam, tem espécie no fundo do rio outro
debaixo de pedra, isso foi tudo alterado, são danos imensuráveis, porque o que
perdeu em cada metro que a onda passou é absurdo, você perdeu e terá um reflexo
na qualidade e quantidade da diversidade aquática que sobreviveu. Ou começamos
outro modelo ou vamos continuar enterrando biodiversidades, pessoas e histórias.

 

P. Há uma
previsão de recuperação do rio Doce?

 

R. No caso do rio Doce, como ele é maior, como tem
outros afluentes, isso ajuda na recuperação. Acho que em 10 anos talvez ele
consiga ter um padrão melhor, mas mesmo assim, dada a dimensão, ainda é uma
estimativa que não vai ter como medir.

 

P. E as
comunidades ribeirinhas qual a extensão do dano?

R. Todas as comunidades também ao longo do curso da
água tiveram seu abastecimento comprometido. Quanto mais próximo do rompimento,
maior o comprometimento. Essas comunidades vão ficar sem água potável por um
tempo que a gente ainda não dá para calcular. Como a intensidade foi diminuindo
ao longo do percurso, existe uma tendência que o rio Doce em alguns pontos
melhore essa qualidade de uma forma mais rápida. Talvez no prazo de uma semana
a água possa ser tratada e distribuída para a população. Mas, em compensação,
esse material foi todo sedimentando ao longo do rio. E essa situação pode
piorar no próximo período das chuvas, já que grande parte do material que foi
despejado pela lama de resíduos vai ser levada para dentro do rio, contribuindo
de uma forma absolutamente incalculável para o assoreamento do rio Doce, de
importância nacional que esse ano já teve dificuldade para conseguir chegar até
a foz nessa época de seca. São danos imensuráveis na qualidade e quantidade da
diversidade aquática que sobreviveu

 

P. Ou seja,
a chuva criaria uma nova enxurrada de lama?

R. Sim, pois a chuva vai lavar tudo que está
pavimentado. Dessa forma, o monitoramento das águas do rio Doce terá que ser
muito frequentes para garantir a qualidade da água e a saúde das pessoas que
moram no entorno da região.

 

P. Há alguma
possibilidade de retirar essa lama concretada antes do período chuvoso?

R. Sem chance. Imagina tirar 62 milhões de metros
cúbicos de resíduos que se espalharam numa distância de mais de 100 km? Não há
como retirar esse material, nem para onde levar. Como isso foi feito ao longo
do rio, há lugares que você nem tem acesso. A realidade é que tivemos danos
ambientais irreparáveis. Quem vê dá televisão não tem dimensão da real situação
do que foi essa situação. Esses danos são irreversíveis. Podemos dizer que 80%
do que foi danificado lá é perda, não há como pensar em um plano de recuperação
ambiental. Não existe. Esse acidente vai ficar para sempre na história de
Minas, será sempre uma cicatriz da questão ambiental do Estado e um alerta para
que realmente a gente faça uma gestão ambiental comprometida com a vida e com o
meio ambiente. A economia é importante para gerar riqueza, mas ela não tem
juízo. Se nós não começarmos a ter mais juízo nessas práticas que a gente faz,
nós não vamos ter salvação. Imagina o custo disso além das perdas de vida, de
ecossistema, o próprio custo econômica para todos, inclusive para o próprio
Estado, é absolutamente impensável você continuar fazendo uma gestão temerária
como temos feito no meio ambiente ao longo da história. A situação pode piorar
no período das chuvas, contribuindo de uma forma incalculável para o
assoreamento do rio Doce.

 

P. Na sua
opinião falta fiscalização no setor?

R. Nos últimos 14 anos, já tivemos cinco
rompimentos de barragens de magnitude não tão grande como essa, mas que foram
impactantes. O que mostra que o nosso sistema está equivocado. Primeiro de tudo
temos que entender que isso não foi uma fatalidade, não foi terremoto,
cataclismo, isso diz de um projeto. E projetos são de responsabilidade da
empresa, isso diz da empresa e da falta de monitoramento do Estado. Falta
fiscalização, sim. Imagina em um desastre dessa proporção não havia nenhum
plano de contingência, sequer um alarme. Se não fosse por pessoas heroicas
anônimas que saíram correndo e avisando sobre o rompimento das barragens, o
número de vítimas seria absolutamente maior. Se tivesse acontecido às 4h da
manhã então, o efeito dessa tragédia teria quintuplicado. Isso diz muito de uma
insustentabilidade ambiental no Estado. Isso desmascara, fala contra tudo
aquilo que aparentemente se tenta produzir de propaganda e efeito. Mas um
acidente desse porte não existe apenas uma causa, o que tem é uma cadeia de
causas. O evento final pode ter sido uma fissura na barragem, mas começa lá
trás, no planejamento, no modelo de mineração, no monitoramento e na
fiscalização, tudo equivocado. Um conjunto de fatos tem que ser esclarecidos
para que Mariana não seja apenas mais um quadro na parede. Ou começamos outro
modelo ou vamos continuar enterrando biodiversidades, pessoas e histórias. Isso
não foi uma fatalidade, não foi terremoto, cataclismo, isso diz de um projeto.

 

P. E como
mudar esse modelo do qual várias cidades são tão dependentes?

R. A mineração precisa ser reinventada. Já há
tecnologias novas e é preciso entender que não se pode minerar em qualquer
lugar. Mas acima de tudo, não podemos continuar pensando que podemos fazer
modelos do século XVIII em situações do século XXI.

 

 

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