19/01/2016
Matéria veiculada na edição 75, da Revista Manuelzão já adiantava que a situação do licenciamento ambiental da Samarco desde 2007 era problemático. Leia artigo completo.
A tarde do
dia 5 de novembro de 2015 corria tranquila na pacata comunidade de Bento
Rodrigues, com cerca de 600 habitantes, onde os moradores se
cumprimentavam e se conheciam pelo nome. As donas de casa cuidavam de seus
afazeres domésticos, os homens trabalhavam, alguns na mineradora e crianças
estudavam na escola local. Por volta das 16h30min alguns celulares começaram a
tocar e avisar que a barragem de rejeitos da empresa Samarco (Vale-BHP), e não
São Marcos como se referiu a presidente, havia se rompido.
A
princípio todos foram tomados pelo espanto querendo acreditar que aquilo não
era verdade. Momentos depois, heróis anônimos montados em suas motos, movido
pelo mais nobre dos sentimentos humanos – a solidariedade -, gritavam
desesperadamente que a barragem tinha se rompido e que um mar de lama estava
descendo em direção à comunidade. As pessoas ainda incrédulas, e ao mesmo tempo
movidas pelo pânico, se deram conta de que teriam que se retirar rapidamente
das suas moradias, salvar as pessoas queridas e deixar para trás tudo aquilo
que foi construído ao longo de uma vida. Nem todos tiveram este tempo, a
possibilidade de escapar e foram soterrados pelo mar de lama. Contam-se para
mais de duas dezenas os mortos e desaparecidos, alguns que certamente nunca
serão encontrados.
A onda de
lama “tsulama” que se seguiu, com até 15 metros de altura, atingiu em cheio o
então límpido córrego Gualaxo do Sul, rasgando, devastando, destruindo áreas de
pequenos agricultores, matas ciliares, vegetação nativa, nascentes e matando
todas as espécies de animais que encontrou pela frente, domésticos e silvestres.
A destruição chegou ao Ribeirão do Carmo, atingindo as comunidades de Paracutu
de Baixo e Barra Longa, e finalmente ao leito do Rio Doce, já bastante
comprometido por uma longa história de degradação e escassez hídrica.
A “tsulama”
em nenhum momento perdeu a intensidade. Esta lama densa foi demonstrando uma
forte capacidade de destruição provocando a morte de toneladas de peixes. As
alterações físico-químicas da qualidade da água impediram o uso para o
abastecimento humano nas cidades ribeirinhas do Estado de Minas Gerais e Espírito
Santo, que ficaram desabastecidas e viveram uma situação de caos e calamidade
pública.
Após 10
dias a “tsulama” percorreu cerca de 550
quilômetros e desaguou no Oceano Atlântico, formando uma mancha avermelhada que
se espalhou por cerca de 20 quilômetros mar adentro e 40 quilômetros rumo ao
norte.
Plano de emergência
Diante desta
grave situação, o que se viu foi um total despreparo do estado para atuar num
evento desta magnitude, que inclusive, a princípio foi minimizado. A situação
deveria ter sido tratada como um ‘estado de guerra’ e criado imediatamente um
gabinete de crise, integrando todos os níveis: governo municipal, estadual,
federal, ministério público e até mesmo a sociedade.
Acuado e
sem saber como explicar um evento desta magnitude, o governo se viu numa
situação caótica. Criou um comando operacional dentro do espaço físico da
empresa e, passou ali, a conceder coletivas para imprensa, demonstrando insensibilidade
política diante da gravidade dos fatos ocorridos. Não foram tomadas as medidas
emergenciais preventivas já sabendo que as cidades atingidas entrariam em
colapso de abastecimento. Transferiu-se para a empresa a gestão da crise,
inclusive de questões como o do abastecimento público de água nas cidades
ribeirinhas.
Na sequência
dos fatos históricos faltou por vezes transparência nas informações tais como
os danos socioambientais sofridos, as buscas aos desaparecidos, a qualidade das
águas do Rio Doce, a presença de contaminantes tóxicos e as medidas que estavam
sendo tomadas pelo governo.
(Ir)responsabilidade
A SAMARCO
na verdade é uma joint venture (associação)
entre as duas maiores empresas mineradoras do mundo que são a Vale e a BHP Billiton.
Em nenhum
momento a empresa veio a público se responsabilizar pelos fatos ocorridos. Ela
é certamente, como afirmam o Ministério Público e ambientalistas, diretamente
responsável pelas mortes, tanto de operários quanto de moradores da região; bem
como, pelos danos ambientais ao longo da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. O
rompimento provocou a liberação de cerca de 50 milhões de metros cúbicos de
rejeitos, por isso, não podemos considerar este fato como uma fatalidade, mas uma
tragédia anunciada. Ao construir grandes barragens, com alteamentos sucessivos
dentro dos limites máximos permitidos, a empresa, assumiu um risco cada vez
maior.
Em 2014, a
mineração não vivia seu melhor momento do ponto de vista econômico quando o preço
do minério passou US$190 para cerca de US$ 50 a tonelada. Para compensar a queda
de preço, a opção foi aumentar a produção em cerca de 9,5 milhões de toneladas
atingindo o total anual de 25 milhões, mesmo sabendo que isso significaria mais
rejeitos (21,9 milhões de toneladas) e menos segurança. E em 2014 a empresa
faturou R$ 7 bilhões e teve um lucro líquido de R$ 2,8 bilhões.
Para
manter o atual modelo de mineração as barragens de rejeitos foram a opção
escolhida. No caso SAMARCO não foi diferente e para operar estas barragens é
necessário a obtenção da licença ambiental. Em 2013, o COPAM avaliou a
revalidação da licença ambiental da barragem de Fundão e no Parecer Único Nº
257/2013 da SUPRAM, por solicitação do Ministério Público do Estado de Minas
Gerais, o Instituto Prístino apresentou o Laudo Técnico alertando que: “Outro ponto a ser destacado é que a
barragem do Fundão e a pilha de estéril União da Mina de Fábrica Nova da Vale
(LP+LI) fazem limite entre si, caracterizando sobreposição de áreas de
influência direta, com sinergia de impactos (…). Notam-se áreas de contato
entre a pilha e a barragem. Esta situação é inadequada para o contexto de ambas
estruturas, devido a possibilidade de desestabilização do maciço da pilha e da
potencialização de processos erosivos. Embora todos os programas atuem na
prevenção dos riscos, o contato entre elas não é recomendado pela sua própria natureza
física. A pilha de estéril requer baixa umidade e boa drenagem; a barragem de
rejeitos tem alta umidade, pois é reservatório de água”.
Apesar da
grave situação o processo foi aprovado pela SUPRAM, com exceção do voto do Ministério
Público e o representante de uma ONG. Ao final foram aprovados condicionantes
entre eles: Recomenda-se a apresentação
de um plano de contingência em caso de riscos ou acidentes (…) dada à
presença de população na comunidade de Bento Rodrigues, distrito do município
de Mariana-MG.
Na hora do
desastre descobriu-se que não havia nenhum plano de contingência a ser
acionado, nem sequer um alarme. E a perda de vidas só não foi maior devido à
ação heróica e solidária de pessoas residentes no local.
Para que
se estabeleça a verdade histórica é preciso reafirmar que vítimas foram todos
aqueles morreram – moradores e trabalhadores -, que perderam seus patrimônios, que
sofreram as consequências dos danos ambientais. Este desastre mostrou a
insustentabilidade da gestão ambiental demonstrando as falhas no processo de
gestão, licenciamento, fiscalização, monitoramento e sistema de emergência.
Todos estes processos foram incapazes de garantir a segurança do
empreendimento, prevenir e evitar que não houvesse um evento desta magnitude.
Descobrimos
depois da porta arrombada que Minas têm 754 barramentos, que 42 deles não tem
atestado de segurança e que o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)
tem somente quatro técnicos para fiscalizar. Ou seja, respondem solidariamente
por este desastre as empresas, governo Federal, governo Estadual e órgãos de
licenciamentos.
Das causas
É impossível
estabelecer ou buscar uma causa única para esta tragédia. Um acidente desta
proporção somente foi possível pela somatória de uma cadeia de eventos e fatores,
que precisam ser esclarecidos. Além de respostas a todos os que sofreram
diretamente as perdas de vidas humanas e ambientais é fundamental que a partir
da investigação, um dos principais resultados seja a criação de novas
diretrizes sobre as atividades minerárias.
Esta não é
situação isolada, mas um capítulo que se repete na história da mineração ao
longo dos últimos 14 anos, pois foi assim com a Mineração Rio Verde, em Nova
Lima (2001), a Mineração Rio Pomba Cataguases, em Miraí (2007) e a Mineração
Herculano, em Itabirito (2014).
Danos irreversíveis e ações mitigadoras
Pode-se
afirmar que grande parte dos danos serão irreparáveis e permanentes, como as
perdas de vidas humanas, dos ecossistemas e da história de vida das comunidades
atingidas. Um evento como o que ocorreu em Mariana alerta para as consequências
ambientais e humanas que podem ser geradas por uma gestão ambiental
descomprometida com a vida e com os ecossistemas. Por isso, é possível afirmar
que o acidente será sempre uma lembrança viva do que Minas Gerais não quer mais
ver acontecer. Uma cicatriz eterna na história ambiental do Estado e um alerta
constante de que temos que ter uma gestão ambiental verdadeiramente
comprometida com a vida e o ambiente.
Até o
fechamento desta edição tinham sido mencionados os seguintes valores de multas
e reparação por danos socioambientais. Cerca de R$ 250 milhões pelo IBAMA, do
qual a empresa pode recorrer, esclarecendo que apenas 3% das multas aplicadas
são efetivamente recolhidas. E que caso recebido o dinheiro irá para o caixa do
Tesouro Nacional. O Ministério Público propôs um acordo preliminar de reparo
dos danos em R$ 1 bilhão. Valores irrisórios diante dos danos ocorridos e dos
lucros obtidos pela empresa, que no ano passado faturou cerca de R$ 7 bilhões e
teve um lucro líquido de R$ 3 bilhões.
O Governo
Federal propôs uma ação judicial contra a empresa para recuperar os danos
ambientais de R$ 20 bilhões ao longo de um prazo. Lembrando que se trata de uma
proposta de ação jurídica ainda ser julgada.
Da
política
Ao longo
da história de Minas mineração e política sempre demonstraram relações perigosas
e perniciosas. O que sempre garantiu muitas regalias ao setor em detrimento de
outros setores econômicos e sociais.
A partir da Lei Kandir, que vem do governo Fernando Henrique
Cardoso, as mineradoras não pagam mais ICMS e
o royalty pago
é baixíssimo, nem se compara com o
royalty pago pelo petróleo. Além dos mais, tem se aumentado a velocidade
para possibilitar a exportação de minérios e, com isso, estão flexibilizando medidas de segurança no processo
produtivo para
exportar o máximo no menor tempo possível.
Para
manter uma atividade extrativista altamente impactante do ponto de vista socioambiental,
na qual “acidentes de trabalho” e ambientais sempre fizeram parte da história
de Minas Gerais, a convivência e a leniência dos políticos e das politicas sempre
foi uma realidade.
E assim
passou a fazer parte da carteira de investimentos das mineradoras o
financiamento de campanhas eleitorais de prefeitos, deputados, governadores e
até de presidentes da república. Este financiamento se faz independentemente da
legenda partidária e até mesmo de candidatos que se enfrentam, constituindo-se
por assim dizer uma Política Minerária e um Estado Minerário. Um ciclo que por
vezes se alimenta de chantagens para a obtenção de vantagens.
Isto custa
menos do que investir em segurança e outros modelos de desenvolvimento. E assim
é possível conviver com barramentos inseguros, tecnologias dos séculos
passados, desastres ambientais, perdas de vidas humanas. O que torna esse
acidente maior é que a lama não para de escorrer e, portanto, fica difícil de
estancar e esconder.
Exemplo
desta situação é que a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) não conseguiu
formar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o mais grave
acidente de mineração do mundo e no Senado Federal a CPI somente saiu por
iniciativa de um senador do Espirito Santo, pois nenhum dos três senadores de
Minas fez tal solicitação.
Os lucros ficam
para os grandes acionistas que pouco se importam com os danos socioambientais
que ficam para as comunidades atingidas.
E assim de
atraso em atraso não criamos um novo modelo que nos tire de sermos perdulários
com o meio ambiente do Estado de Minas Gerais, por vezes sacrificando
ecossistemas, rios e socializando os prejuízos.
Por fim
para respaldar as afirmações acima o governo e ALMG no auge da crise ambiental do
Estado aprovam o Projeto de Lei (PL) 2946/2015, que propõe o fura-fila e
institucionaliza o licenciamento de gabinete de projetos e obras “considerados
prioritários” pelo poder econômico em Minas Gerais.
No
referido PL, disponível no site da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o
núcleo do governo Pimentel não propõe qualquer melhoria na composição do
Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), órgão que, nos últimos anos,
vem licenciando descalabros como as megabarragens de rejeitos e grandes
operações mineradoras, em total divergência com a preservação da água, da
natureza e o respeito às comunidades próximas às áreas impactadas e ameaçadas.
E ainda retirou o Ministério Público das Câmaras Técnicas do Copam.
O PL 2946,
por alguns, apelidado de “AI-5 ambiental” (um cheque em branco com força de
lei), propõe a centralização do licenciamento, mediante a criação de um setor
específico de “projetos considerados prioritários” no âmbito do comando da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). A
tentativa é de diminuir o controle social dos processos de licenciamento e
aumentar o poder do executivo nesses processos, sem contrapartida no que se
refere à fiscalização, controle e gestão.
Não por
acaso, este PL está afinado com outro que tramita no Senado Federal, por
iniciativa do senador Romero Jucá (PMDB/RO) – de número 654/2015. Segundo o
artigo 1º deste PL, regras excepcionais serão criadas “para o licenciamento
ambiental especial de empreendimentos de infraestrutura estratégicos para o
desenvolvimento nacional sustentável”, tais como: “sistemas viário, hidroviário,
ferroviário”, “portos”, “energia” e “exploração de recursos naturais”, que
“serão considerados de utilidade pública” – em consonância com o também
disposto na proposta do Código de Mineração (PL 5803/2013), defendido por
alguns deputados federais mineiros.
O que fazer?
É preciso afirmar
que esse modelo se esgotou e que essa política precisa ser revista para que a tragédia
de Mariana não se repita. A mineração terá que
se reinventar, pois não dá para continuar com processos tecnológicos atrasados
e inseguros, entender que não será possível minerar tudo, que a sociedade tem
que ser ouvida e que ela não quer mais compactuar com a negligência, a
insegurança, a perda de vidas humanas de moradores e trabalhadores e com a
destruição ambiental.
Neste
momento impõem-se como emergência a avalição imediata de todos os barramentos
existentes em Minas Gerais, a suspensão de novos licenciamentos de barramentos
minerários até que novos regramentos sejam dados, a melhoria da segurança de
processos de trabalho e que efetivamente o Estado assuma um papel de gestor da
crise.
Propostas:
1.
Imediata fiscalização de todas as barragens de Minas Gerais para publicização
da situação das barragens no Estado;
2.
Transparência de informações por parte dos órgãos do governo do Estado sobre
danos ambientais, sociais, econômicos e sobre a qualidade das águas do rio
Doce;
3. Suspensão
de novos processos de licenciamentos de barramentos minerários até que novas
regras e medidas de segurança e tecnologias sejam efetivadas;
4.
Rediscussão do modelo de mineração no Estado de Minas Gerais;
5. Que
todas as medidas tomadas sejam feitas com a participação da sociedade civil;
6. Que
haja um amplo plano de recuperação socioambiental da Bacia do Rio Doce com
reparação dos danos patrimoniais e ambientais, buscando sua revitalização.
Expedição Manuelzão
Ambientalistas
e pesquisadores do Projeto Manuelzão e da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) estiveram em Rio Doce e Barra Longa, regiões atingidas pelo rompimento
das barragens. A expedição percorreu cerca de 145 km para observar a realidade
da tragédia. Nos rios Piranga, Carmo e Gualaxo foram observados os problemas
causados pelos rejeitos cerca de 10 km rio acima. Durante a expedição, uma
equipe do Instituo de Geociências da UFMG coletou em vários pontos dos rios
amostras da água para serem analisadas a presença de metais pesados e
parâmetros físico-químicos.