Mais quente, das Minas aos GeraisProjeto Manuelzão

Mais quente, das Minas aos Gerais

13/06/2024

Por que o Jequitinhonha registrou os maiores aumentos de temperatura no Brasil em 2023? Uma entrevista com Samuel Abade, do Instituto Janelas do Jequitinhonha

Entre as dez cidades que mais esquentaram no Brasil em 2023, sete delas estão no Jequitinhonha. Foto: André Olmos/CC 4.0.

O Vale do Jequitinhonha tem enfrentado um assombroso aumento nas temperaturas nos últimos anos, alarmando especialistas e impactando moradores locais. Tal fenômeno está associado a diversas consequências, desde a intensificação da seca até impactos severos na agricultura e na qualidade de vida das comunidades. A elevação das temperaturas no Jequitinhonha realça a urgência de ações voltadas à adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Ao se olhar para a situação de Minas Gerais, as cidades do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas estão no topo da lista das que mais esquentaram no ano passado. Um estudo do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), vinculado ao Ministério da Ciência, mostrou que das 40 cidades que mais esquentaram no Brasil em 2023, em relação às suas médias históricas, 17 estão no Norte de Minas e 15 no Vale Jequitinhonha.

Apontado como responsável pelo aumento atípico da temperatura no país no último ano, o El Niño não é o único fator que explica a situação específica do Jequitinhonha. O monocultivo de eucalipto e a mineração de lítio, propagandeada pelo governador Romeu Zema (Novo) na bolsa de valores de Nasdaq, têm significativo poder de alteração da dinâmica do microclima local.

Em Turmalina, cidade do Jequitinhonha que chegou a 45°C em outubro do ano passado, há uma floresta de eucalipto que ocupa quase 24 mil hectares na zona rural. Uma outra floresta, da Aperam Bioenergia, tem 76 mil hectares e se estende pelos municípios de Turmalina, Capelinha, Veredinha, Itamarandiba e Minas Novas. O Cemaden aponta que em novembro as temperaturas nessas cidades foram acima da média, respectivamente, 5,53°C — maior aumento —, 5,47°C — terceiro maior aumento —, 5,42°C — quinto maior —, 5,37°C e 5,24°C.

O Projeto Manuelzão conversou com Samuel Rodrigues Abade, engenheiro florestal pela Universidade Federal de Lavras (UFLA), mestrando em Silvicultura e Genética Florestal na mesma universidade e diretor de Meio Ambiente, Clima e Cultura do Instituto Janelas do Jequitinhonha, para entender melhor esse cenário aterrador.

As dez cidades que registraram os maiores aumentos de temperatura no Brasil em 2023: todas no Norte de Minas e no Jequitinhonha e todas acima de 5°C.

Projeto Manuelzão: Os dados do Cemaden apontam que Minas Gerais, mais especificamente a região do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas, registraram os maiores valores em relação à média de temperatura nacional no último ano. O Cemaden já havia assinalado em outras pesquisas que as regiões estão entre as que mais esquentaram no Brasil durante os últimos 60 anos. Além do aquecimento global, o fenômeno do El Niño foi apontado como responsável por esse aumento anômalo da temperatura em 2023. No caso do Jequitinhonha, quais fatores tornam a região mais sensível a esse aumento?

Samuel Abade: Para contextualizar é importante trazer para este nosso diálogo a formação do Vale do Jequitinhonha. Durante a era colonial e imperial a região foi sumariamente saqueada, em especial pela intensa mineração de ouro e diamantes no Alto Jequitinhonha. Quando a exploração minerária deixou de atender as metas, grande parte dos garimpeiros e bandeirantes debandaram para as matas do Jequitinhonha, especialmente se aportando no Médio e Baixo Vale e se apossando de terras — antes ocupadas por Aranãs, Maxacalis e diversos outros povos indígenas que foram brutalmente massacrados e expulsos de seus territórios — resultando em um desmatamento indiscriminado para criação de pastos e agricultura.

Mesmo rico em recursos naturais e com grande diversidade de fauna, flora e povos, o Vale do Jequitinhonha foi castigado como a alcunha de Vale da Miséria por órgãos internacionais, como a ONU e o próprio governo, com base nos Índices de Desenvolvimento Humano da região, índices que são cicatrizes da intensa mineração de ouro e diamante no leito do rio Jequitinhonha associada ao desmatamento desenfreado e a expropriação dos povos originários daquela região. O Vale do Jequitinhonha nunca foi pobre, mas sempre foi (e ainda é) um lugar mega explorado. Nenhum povo é essencialmente pobre, exceto quando há dominação, apropriação e massacre de uma elite externa com interesse econômico em determinada região. Sendo assim, difundir a ideia de pobreza no Vale do Jequitinhonha, é propositalmente interessante para uma elite que mais tarde lucrará com a expropriação da região na usurpação de seus recursos sob um falso véu de desenvolvimento e  progresso.

Desde as décadas de 60 e 70, o Vale do Jequitinhonha tem sido pátio de incentivos fiscais governamentais, tanto para mineração de lítio e outros minerais quanto para cultivo de florestas de produção, como a monocultura de eucalipto. Essas atividades econômicas, conhecidas como Grandes Projetos de Desenvolvimento (GPD), têm um impacto significativo na dinâmica regional, tanto em termos econômicos quanto ambientais e sociais. A mineração, as monoculturas e a geração de energia, como as hidrelétricas, são atividades presentes no Vale do Jequitinhonha que afetam diretamente a dinâmica do microclima local.

Cava Grota do Cirilo, da canadense Sigma Lithium, em Itinga, no Vale do Jequitinhonha. Foto: Washington Alves/Reuters.

Projeto Manuelzão: As atividades econômicas como a mineração de lítio, o plantio de eucalipto e a pecuária — todas ligadas ao desmatamento do Cerrado — são as responsáveis exclusivas ou há dinâmicas ambientais próprias da região que também contribuem?

Abade: Os fatores que tornam a região mais sensível ao aumento de temperatura e escassez hídrica são apontados por estudos que mostram que a extração do minério que compõe o lítio tem alto impacto ambiental pelo uso intensivo de água. O Vale do Jequitinhonha possui grandes concentrações de minerais de onde se extraem o lítio, que é veiculado como uma forte aposta para a transição energética mundial. Porém, o que observamos é que esta dita transição energética não está beneficiando o Vale do Jequitinhonha em si. Por exemplo, como pode uma cidade ter dois empreendimentos bilionários e ainda assim amargar com uma das menores rendas anuais do país? A conta não fecha.

Não há uma transição energética justa, a população do Vale do Jequitinhonha não está sendo consultada, ou seja, não há uma participação ativa e autônoma no planejamento deste projeto com participação popular efetiva para escolher e direcionar os rumos deste empreendimento. Sem contar que a não consulta aos povos tradicionais infringe direitos humanos protegidos por acordo internacional do qual o Brasil é signatário. Nós, moradores do Jequitinhonha, cientistas, educadores, artistas, comunidades tradicionais e todas as pessoas mais afetadas pela mineração de lítio precisamos estar no centro desse debate.

Complementar a essas atividades da mineração, temos a presença da monocultura extensiva do eucalipto em Minas Gerais, onde há maior monocultura de eucalipto no Brasil, chegando a 2,2 milhões de hectares, e em especial no Vale do Jequitinhonha se torna problemático visto que há extensas áreas de produção. Com o ciclo de cortes sucessivos para abastecer fábricas de carvão e siderurgia, sem um mosaico garantindo a intercalação com a vegetação nativa, o solo fica descoberto. A cada sete, oito anos essas árvores são retiradas e até o replantio também de eucalipto, estas grandes áreas ficam expostas a radiação direita, o sol incide direto no solo sem nenhuma absorção, já que não tem vegetação cobrindo o solo. O calor é refletido e espalhado, aumentando as temperaturas na região onde predominam plantações de eucalipto, que além de contribuir com calor nos ciclos de rotação também contribui para os efeitos de escassez hídrica pois não se tem vegetação nativa intercalada aos plantios comerciais, o solo exposto não retém água e os lençóis freáticos não são suficientemente abastecidos para manter os cursos d’água.

Embora o El Niño possa ter um impacto no clima do Vale do Jequitinhonha, outros fatores, como as atividades de eucaliptocultura, mineração e desmatamentos parecem desempenhar um papel mais significativo no aumento ou diminuição das temperaturas desta área em específico. O Vale do Jequitinhonha vem sendo palco de eventos climáticos extremos: a região foi a que mais esquentou no ano passado, mas também registrou temperaturas extremamente baixas, períodos de estiagem mais longos, comprometimento de acesso à água e período de chuvas mais curto e intenso que resulta em enchentes, deslizamentos e desmoronamentos.

Desta forma, os empreendimentos instalados no Vale do Jequitinhonha com a promessa de desenvolver social e economicamente a região resguardando os seus aspectos ambientais e culturais, não cumpre a promessa, visto que, o Vale do Jequitinhonha ainda é empobrecido e sofre historicamente com escassez hídrica e altas temperaturas, como sinalizado pelo Cemaden, que das 20 cidades mais quentes no Brasil, no ano de 2023, 18 estão no Vale do Jequitinhonha [e Norte de Minas].

Eucalipto alimenta fornos de produção de carvão vegetal da Apream BioEnergia. Foto: Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica.

Projeto Manuelzão: Quais as consequências que esse aumento de temperatura pode trazer para o ecossistema da região e para as cidades do Jequitinhonha?

Abade: O fenômeno climático natural do El Nino, quando combinado às mudanças climáticas antrópicas, acentuam os efeitos climáticos regionais, como alteração de temperatura e precipitação. Esses efeitos são particularizados em diferentes regiões do Brasil. No vale do Jequitinhonha as altas temperaturas e a estiagem são reforçadas com a duração deste fenômeno natural implicando para a população desconforto térmico causado pelo calor e incidência de doenças propagadas em altas temperaturas, como a dengue.

Quando o corpo humano é exposto às temperaturas extremas por longos períodos se aumentam os riscos de desidratação, insolação, problemas cardiovasculares, doenças respiratórias e até mesmo o óbito. No Brasil, as mortes por calor são “invisíveis”. Contudo, segundo relatório da OMS [Organização Mundial da Saúde] e OMM [Organização Meteorológica Mundial] em 2023: o calor mata 15 milhões de pessoas por ano em todo o mundo. Outra pesquisa recente publicada na revista Nature revelou que temperaturas extremas contribuíram para cerca de 6% das mortes em cidades da América Latina. Apesar disso, o Brasil não registra dados de morte por calor, o Ministério da Saúde ainda estuda como classificar e quantificar esses casos.

Por outro lado, para os ecossistemas da região ainda que adaptados a altas temperaturas e estiagem prolongadas, característicos de um bioma sazonal como Cerrado com chuvas no verão e estiagem ao longo do ano, as elevações recordes de calor comprometem o ciclo fisiológico da vegetação implicando diretamente nos recursos hídricos. Quanto maior o calor (elevação de temperatura), maior atividade fotossintética e transpiração dos ecossistemas que acabam sofrendo distúrbios fisiológicos com esses eventos de altas temperaturas aliadas à pouca disponibilidade hídrica destinada às atividades de mineração e extensas monoculturas. Os eventos climáticos antes inéditos e agora mais frequentes pelas projeções climáticas de painéis internacionais poderá acelerar a redução destes ecossistemas naturais pela alta temperatura e insuficiência hídrica se nada for feito para remediar essa situação imposta ao Vale do Jequitinhonha.

Estudos mostram que a monocultura de eucalipto está associada a acentuado rebaixamento do lençol freático na região. Foto: Nilmar Lage/Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica.

Projeto Manuelzão: Quais as medidas, e quem deve tomá-las, para mitigar ou mesmo reverter essa tendência de aumento que tende a se acentuar a cada ano?

Abade: É preciso dar visibilidade ao problema. Um de nossos objetivos com o Instituto Janelas do Jequitinhonha e o Observatório do Vale do Jequitinhonha é conseguir incidir em políticas públicas, mas também é traduzir os dados, os riscos e impactos para a população mais afetada pelo extrativismo na região. Mudanças climáticas e investimento ambiental deve ser tema de candidatos e candidatas e estar no debate das eleições, e nós, o povo do Vale do Jequitinhonha, precisamos estar na centralidade desse debate.

A memória de nós cidadãos, ao longo do tempo, não pode sofrer com a aridez, a seca de ideias potáveis, tampouco penar com a inundação da fantasia do desenvolvimento neoliberal e da industrialização “inevitável” cujos impactos têm causado desmoronamento climático sentido em diversas regiões do Brasil. Nossa memória precisa alcançar o passado, resgatar a dinâmica harmônica do nosso convívio em natureza e investir no equilíbrio ambiental que necessitamos no presente e para futuras gerações, como também explicita o Código Florestal de 2012.

O clima precisa ser pensado como infraestrutura, compondo nosso arranjo natural de existência. Políticos devem estar letrados com o assunto meio ambiente e clima em seus discursos quando questionados, e, em suas práticas quando eleitos.

Há que se repensar os planos de manejo sustentáveis das empresas de monocultura no Vale do Jequitinhonha e que esteja incluído nestes planos o respeito e cuidado dos limites hídricos da Bacia do Jequitinhonha, rio principal que abrange o Vale de fora a fora, de Diamantina, região Central de Minas Gerais até Belmonte, ao Sul da Bahia.

Paralelo a um plano de manejo sustentável para as monoculturas na região, deve ser considerado para qualquer atividade econômica que utiliza recursos naturais o mapa de zoneamento ecológico econômico de Minas Gerais, que implica em pesquisar zonas de maior vulnerabilidade natural e insegurança hídrica para limitar a expansão do cultivo da monocultura do eucalipto ou eventual atividade de mineração.

Além disso, o Código Florestal de 2012 deve ser seguido ao pé da letra, o que prevê proteção às áreas de nascentes, recuperação das APP [áreas de preservação permanente] que não possuem cobertura vegetal nativa e que atuam na saúde dos cursos d’água. A mata ciliar ao longo do Rio Jequitinhonha e seus afluentes devem ser prontamente recuperadas e as existentes conservadas. Além das nascentes e áreas de preservação permanente, áreas de reserva legal dentro de propriedades rurais com atividade agropecuária devem ser respeitadas e /ou delimitadas pois contribuem para a sustentabilidade do solo e reposição hídrica.

Estas ainda são medidas mínimas (já previstas em legislações e estudos ambientais) para conter o impacto das mudanças climáticas a nível particular, no caso do Vale do Jequitinhonha e também Minas Gerais deve ter mais efetividade em fiscalização de órgãos ambientais.

Para além da preservação e garantia de direitos, é preciso mais investimento na restauração do meio ambiente, na recuperação de ecossistemas degradados com espécies nativas, na defesa e valorização dos povos e culturas do Vale do Jequitinhonha, no investimento em pesquisa e tradução para a população que é mais afetada, na incidência política por projetos de lei que mirem na soberania popular e limitem a monocultura de eucalipto e a mineração, bem como, respeitem os direitos dos povos tradicionais à consulta livre, prévia e informada, além da implementação de políticas de manejo sustentável da água e do solo, investimentos em tecnologias sustentáveis e a promoção de práticas agrícolas ecologicamente responsáveis em consonância com a soberania, saborania e saberania dos povos.

 

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