29/10/2021
Encontrando subterfúgios e ignorando as mortes de Brumadinho, a defesa de Fabio Schvartsman, consegue invalidar a ação penal que corria em âmbito estadual
O ex-presidente da Vale à época do rompimento em Brumadinho, Fabio Schvartsman e os outros 15 funcionários da mineradora e da empresa de consultoria alemã Tüv Süd não são mais réus pela Justiça Estadual. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, no dia 19 de outubro, que por haver acusações que envolviam órgãos reguladores da União e políticas nacionais, cabia à Justiça Federal dar seguimento à ação penal. Com a decisão, as denúncias imputadas pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) de homicídio qualificado por 270 vezes (número total de mortos na tragédia) e crimes ambientais contra a fauna, a flora e de poluição caem por terra.
São quase três anos da tragédia, oito famílias ainda esperam por uma despedida justa e nenhum dirigente ou envolvido foi punido.
A ação tramitava no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) mas a defesa do ex-dirigente da Vale, Fabio Schvartsman, tentava questionar a competência estadual para julgar o caso. A justificativa é que haviam sítios arqueológicos que são patrimônios da União, uma manobra para protelar o julgamento. A Sexta Turma do STJ decidiu invalidar o processo estadual por unanimidade e, com esse artifício, o processo volta à estaca zero após quase três anos de impunidade da tragédia.
A Súmula 122 do STJ afirma que havendo conexão entre crimes de competência estadual e federal, prevalece a Justiça Federal. Mas esse padrão processual não exclui as incongruências do julgamento de competência em questão, já que em junho do ano passado o STJ havia negado o pedido de recurso da defesa de Schvartsman por sete votos a um. Além disso, o Ministério Público Federal e Estadual se alinham na tese de que não há bem jurídico da União atingido na denúncia.
Segundo laudo técnico do MPMG, os 12 bens culturais nos arredores do rio Paraopeba não são protegidos por lei federal. Entre a lista de bens culturais e arqueológicos que a defesa do acusado usou como subterfúgio estão a Estrada Cavaleira, o Sítio Arqueológico Aqueduto Córrego do Feijão, o Sítio Arqueológico Fazenda Velha, os Sítios Arqueológicos dos Berro I e II, os Sítios Arqueológicos Fazenda Recanto I e II e os Sítios Arqueológicos Samambaia I e II.
Outro ponto que pesou para que o julgamento passasse para a esfera federal é que o relator e desembargador Olindo Menezes apontou que as falsas declarações de estabilidade prestadas à Agência Nacional de Mineração e o descumprimento da Política Nacional de Barragens “evidenciam ofensa a bem e interesse direto e específico de órgão regulador federal e da União”.
Fora do juridiquês, isso quer dizer que na prática os 11 funcionários da Vale e cinco da Tüv Süd não são mais réus e que o Ministério Público Federal deve apresentar outra denúncia para reiniciar a ação penal.
No âmbito federal, um inquérito que corre em sigilo e foi dividido em duas partes pela Polícia Federal indiciou em 2019 sete funcionários da Vale e seis da Tüv Süd por falsidade ideológica. A segunda parte do inquérito sobre crimes ambientais e contra a vida teve informações preliminares divulgadas em fevereiro constatando que uma perfuração para instalar instrumentos de medição da pressão da água no solo estava sendo realizada na hora do rompimento e isso pode ter causado a liquefação local e propagação pela estrutura, como confirmou estudo da Universidade Politécnica da Catalunha.
O crime de Brumadinho completou 1000 dias há cerca de duas semanas e até o momento oito das 270 vítimas (incluindo duas grávidas) não foram encontradas.
A federalização do caso é outra perda para os atingidos, já que impede o júri popular em Brumadinho. Em nota de repúdio, a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão de Brumadinho (Avabrum) afirmou que o crime aconteceu aqui em terras mineiras e não há motivo para a federalização do processo. “Todos os denunciados tinham conhecimento das consequências dos seus atos e escolhas e ESCOLHERAM MATAR! Então que a justiça de Minas faça seu papel, aqui no solo assolado pela lama”, diz a declaração.
O Movimento Atingidos por Barragens (MAB) também emitiu nota dizendo que “o povo de Brumadinho deve ter o direito de acompanhar o julgamento dos crimes da Vale, deve ter o direito de ver julgados os responsáveis pelas 272 mortes no Tribunal do Juri, instrumento da cidadania e do exercício da democracia, na justiça estadual daquela cidade”.
A 9ª Vara Federal de Belo Horizonte está responsável pelo caso a partir de agora e o MPMG confirmou que recorrerá da decisão.
O Coordenador do Projeto Manuelzão e membro da Diretoria do Instituto Guaicuy, Marcus Vinícius Polignano, também divulgou nota em rechaço à decisão. Confira abaixo:
“É imprescindível registrar a nossa indignação sobre a decisão da Justiça Federal proferida nesta semana de que o processo criminal sobre o rompimento da barragem da Vale sobre o rio Paraopeba não acontecerá na esfera estadual, mas sim na federal.
Apesar dos 270 mortos, oito desaparecidos e milhares dos atingidos serem mineiros, do rio Paraopeba – que foi gravemente contaminado – estar localizado no estado, de todas propriedades afetadas também estarem em Minas Gerais, assim como toda a biodiversidade que foi comprometida, ainda assim, decidiram mudar a jurisprudência!
A decisão se baseou em argumentos jurídicos propostos pela Vale, por meio da defesa do ex-presidente da mineradora, de que sítios arqueológicos foram afetados e tais sítios serem de competência de órgão federal. Nessa argumentação, para os advogados do réu, a competência do julgamento deveria ir para a justiça federal.
Como se a Vale tivesse alguma preocupação com sítios arqueológicos brasileiros! É uma vergonha!
Trata-se, claramente, de uma mera manobra protelatória, buscando encontrar subterfúgios para que os responsáveis não respondam criminalmente pelos seus atos.
Há também que se lamentar que a decisão tenha sido proferida por uma turma do STJ.
Nós, do Instituto Guaicuy, nos solidarizamos com as vítimas que estão simplesmente em busca de Justiça e apoiamos a interposição de recurso pelo Ministério Público de Minas Gerais para que o processo continue na esfera estadual.
O Instituto Guaicuy tem lado: o lado das pessoas atingidas.
Seguimos firmes na luta pela reparação integral!
Marcus Vinícius Polignano
Membro da Diretoria
Instituto Guaicuy”