Mineração avança sobre Botafogo, Ouro Preto, e ameaça patrimônio ambiental e histórico – Projeto Manuelzão

Mineração avança sobre Botafogo, Ouro Preto, e ameaça patrimônio ambiental e histórico

19/09/2025

Mina e comunidade ficam a apenas 90 metros de distância; após soterramento ilegal de gruta, atividades foram embargadas pela Justiça e licença pode ser cancelada

[Matéria de Cláudia Marques e Ferdinando Silva publicada nas páginas 26 e 27 da Revista Manuelzão 95, na editoria Enfrentamentos; republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse a edição 95 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

Um temor antigo dos moradores de Botafogo, comunidade a 7 quilômetros do Centro de Ouro Preto, tornou-se realidade em fevereiro. A Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) concedeu à “Patrimônio Mineração” uma licença válida por dez anos para explorar ferro e manganês em uma mina a 90 metros da comunidade, separadas apenas pela BR-356. A Feam publicou o parecer no dia 10, e a empresa iniciou suas atividades no dia seguinte. 

O órgão concedeu uma licença ambiental concomitante (LAC1), que abrange as licenças prévia, de instalação e de funcionamento de uma só vez. O projeto prevê a mineração a céu aberto de 1,35 milhão de toneladas de ferro e de 150 mil toneladas de manganês ao ano, uma unidade de tratamento de minerais e a instalação de pilhas de rejeito e estéril numa área de 5,4 hectares. O porte e o potencial poluidor foram classificados como médios.

A Associação de Moradores e Amigos de Botafogo questiona o rigor da Feam na condução do licenciamento, apontando omissões no estudo de impacto ambiental apresentado pela empresa. Também ressalta a gravidade dos danos que uma mina bem ao lado da comunidade acarretará à qualidade de vida, à disponibilidade de água e ao acervo arqueológico e histórico local, incluindo a capela seiscentista de Santo Amaro, uma das mais antigas do estado.

Além da mineradora de nome sardônico, a RS Mineração atua desde agosto de 2022 no limite sul da comunidade e outras cinco pleiteiam licenças na área. São elas BHP Billiton — uma das controladoras da Samarco, responsável pelo rompimento de barragem em 2015 no distrito marianense de Bento Rodrigues que devastou o Rio Doce e vitimou 19 pessoas —, CBRT Participações, HG Mineração, Mineração Três Cruzes e CSN Mineração.

“Fiquei muito triste ao ver máquinas pesadas iniciando as obras, a mineração na área é um atentado ao patrimônio natural e cultural”, lamentou Ronald Guerra, vice-presidente do Instituto Guaicuy e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. 

A resistência comunitária se fortaleceu ao longo dos anos, diante da estratégia das mineradoras de buscar licenciamentos simplificados e evitar análises dos impactos ambientais cumulativos. Em 22 de março, Dia Mundial da Água, foi realizada a terceira edição do evento Hidrogeodia, com o tema “Patrimônio Hídrico da Serra do Botafogo: aquíferos ameaçados pela expansão da mineração”, reunindo cerca de 150 pessoas.

Aquíferos ameaçados

A Serra de Ouro Preto, chamada de Serra do Botafogo nos arredores da comunidade, é uma formação geológica que garante a recarga hídrica das bacias do Rio Doce e do Rio das Velhas, esta responsável por parte significativa do abastecimento de água de Ouro Preto e da Grande BH. No alto da serra estão as cabeceiras do Córrego Botafogo, na bacia do Doce, e do Ribeirão Funil, na bacia do Velhas, que abastece entre 13 mil e 15 mil pessoas nos distritos de Cachoeira do Campo, Glaura, Santo Antônio do Leite e nas comunidades de Bocaina, Siqueira e Maracujá.

“Há na serra um segmento importante do Aquífero Cauê, uma camada ferrífera que fica no interior das montanhas, armazena muita água e é fundamental para manter as nascentes e a vazão dos cursos d’água superficiais”, explica a geóloga Adivane Costa, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e coordenadora da Cátedra Unesco Água, Mulheres e Desenvolvimento. A Unesco, ligada à ONU, atribuiu em 1980 o título de Patrimônio Mundial a Ouro Preto, o primeiro sítio brasileiro a receber tal distinção. 

Adivane explica que a mineração de ferro destroi exatamente essa camada geológica armazenadora de água. À medida que se cava para extrair o minério, é necessário bombear o grande volume de água contido nas montanhas para continuar a atividade, rebaixando o nível do aquífero, secando mananciais e reduzindo a vazão. Além da quantidade de água, a mineração também pode impactar a qualidade dela.

À época do início das atividades da mineradora, os impactos negativos já eram percebidos. “Com as chuvas, observamos um aumento exorbitante da turbidez e dos sólidos em suspensão no Ribeirão Funil, causado pelo carreamento de sedimentos como ferro e manganês”, relata Adivane.

Patrimônio histórico sob ameaça de destruição

Antes chamada Santo Amaro, Botafogo foi fundada no final do século XVII, após a descoberta de ouro na região. Marco de constituição do povoado, a capela de Santo Amaro foi construída nessa época e seu acervo original é mantido em bom estado de conservação. Seu adro é hoje utilizado para encontros e atividades da comunidade. No primeiro domingo de agosto, abriga a festa ao padroeiro Santo Amaro. 

Próxima à capela está uma notável tapera da antiga fazenda Irmãs Margaridas, hoje Sítio Histórico e Arqueológico Cabeceira do Funil. A edificação, descreve a arqueóloga Alenice Baeta, foi construída em pau a pique com estruturas de alvenaria de pedra, junto a um moinho sustentado por um muro de pedra. Há na região outros muros, trilhas, chafarizes e alicerces. 

Adivane Costa diz que denúncias foram realizadas ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e uma outra está sendo preparada, englobando “o avanço das várias mineradoras e estudos sobre o patrimônio hídrico, a flora e a questão arqueológica”. “Estamos juntando vários estudos em um documento abrangente”, conta a professora, que destaca a cooperação entre a academia e a comunidade.

“Outra frente é levar esse problema a nível internacional”, comenta Ronald Guerra, “mostrar que isso fragiliza, e muito, a chancela de patrimônio da humanidade de Ouro Preto”.

Adro da capela de Santo Amaro, do século XVII, palco de manifestações diversas dos moradores de Botafogo.

Em 21 e 22 de março, moradores registraram retroescavadeiras da “Patrimônio Mineração” soterrarem uma gruta, omitida no relatório espeleológico apresentado pela empresa no licenciamento ambiental. O caso foi divulgado nas redes sociais e a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) apresentou uma denúncia. Foram acionados o MPMG, o Ministério Público Federal (MPF) e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad). 

A Feam, vinculada à Semad, lavrou um auto de infração e embargou as atividades da mineradora num raio de 250 metros da gruta. De acordo com a Feam, sempre que cavidades não identificadas são encontradas, “é obrigação do empreendedor interromper imediatamente as atividades e comunicar o órgão ambiental”.

Em 1º de abril, a juíza Ana Paula de Freitas, da 2ª Vara de Ouro Preto, suspendeu totalmente as atividades, atendendo a um pedido do MPMG. Durante uma fiscalização na mesma semana, Semad e Feam encontraram nas proximidades outra cavidade não relatada e pediram o cancelamento da licença ambiental. Uma reportagem do Estado de Minas também mostrou a relação entre um sócio do grupo da “Patrimônio”, Helder Adriano Freitas, com a Gute Sicht, mineradora ré na Justiça Federal por uma verdadeira saga de exploração ilegal na Serra do Curral. 

Mas um promotor do próprio MPMG, Emmanuel Levenhagen, da 1ª Promotoria de Justiça de Ouro Preto, propôs, em 10 de abril, um acordo para permitir a volta das atividades da mineradora fora do raio de 250 metros ao redor da gruta soterrada.

A proposta gerou indignação. Líria Barros, da associação de moradores, relata que a comunidade tentou, sem sucesso, contato com o promotor. A juíza Ana Paula de Freitas, contudo, indeferiu o pedido dias depois e manteve o embargo. Enquanto os processos administrativo e judicial se desenrolam, a comunidade segue unida para garantir a proteção do território. “A gente está lutando por memória, água e vida”, resume Líria.

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