Por um punhado de dólares: Mineradoras e governo do estado tentam acordo para destruir o Curral de Minas - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Por um punhado de dólares: Mineradoras e governo do estado tentam acordo para destruir o Curral de Minas

21/09/2021

Tombamento estadual da Serra do Curral é oportunidade de acertar as contas com o passado e assegurar que próximas gerações possam construir novas histórias emolduradas por uma serra preservada e ecologicamente equilibrada

[Matéria de Ferdinando Silva publicada na página 6 da Revista Manuelzão 89, na editoria Enfrentamentos. Republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse a edição 89 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

Há 2,2 bilhões de anos testemunhando incontáveis eventos tectônicos e ciclos do planeta, a Serra do Curral é um documento da riqueza geológica da Terra. Formada por uma cadeia de montanhas que possuem a mesma inclinação e direção, fenômeno que faz dela uma moldura natural, a serra liga duas das mais importantes bacias hidrográficas de Minas Gerais: a do rio das Velhas, a nordeste, e a do rio Paraopeba, em seu limite sudoeste. Se apresenta à Belo Horizonte em sua maior porção e compreende também, em seus 11 quilômetros de extensão, parte do território de Nova Lima e Sabará.

A história recente mostra, porém, que bilhões de anos de formação natural podem sucumbir a poucas décadas de exploração pelo homem.

Como os rios, as serras são os primeiros monumentos históricos de Minas Gerais e falar delas é falar da própria história e povoamento do estado, no fim do século XVI. As serras foram os principais pontos de orientação e de avistamento de territórios para os povos originários e as bandeiras e entradas – expedições de exploração territorial no Brasil-colônia – chegadas do sul, de São Paulo e Rio de Janeiro, e do norte e leste, da Bahia e Espírito Santo.

Entre outros importantes conjuntos de montanhas mineiras, a Serra do Curral é uma das que melhor ilustra a total simbiose que esses imponentes patrimônios estabelecem com a formação de habitações em seu entorno. Apenas cinco anos após a fundação do arraial de Nossa Senhora do Carmo, hoje Mariana, primeiro povoado de Minas, o bandeirante João Ortiz chegou à então chamada Serra das Congonhas à procura de ouro.

Encontrou uma paisagem acolhedora, repleta de rios e córregos, de clima ameno e próprio para a agricultura. Criou então a Fazenda do Cercado, em uma área onde está atualmente o bairro Calafate (ou Nova Cintra, a depender da fonte), em Belo Horizonte, que logo atraiu outros moradores e um povoado começou a se formar ao seu redor.

Os moradores deram o nome de Curral del Rey, em referência ao curral ali existente, segundo o historiador Abílio Barreto. A Serra das Congonhas começa a se tornar então a Serra do Curral.

Curral del Rey

O nome do arraial e do curral da Fazenda Cercado é uma provável referência a Francisco Homem del Rei. É sabido que o português chega à região em 1709 e inicia a construção da capela de Nossa Senhora da Boa Viagem. O povoado cresceu desde então a partir da criação de gado e da fabricação de farinha; também se produzia algodão e fundia-se ferro e bronze.

Em 1711, o rei de Portugal, concede a Ortiz o terreno da Fazenda do Cercado. Em abril de 1714, o arraial de Curral del Rei passa a pertencer à Comarca do Rio das Velhas e, em 1718, à de Sabará. O Distrito foi criado com a denominação de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral del Rey, por Ordem Régia de 1750. A população inicial limitada a algumas dezenas de famílias chegou a 18 mil habitantes.

Detalhe do Mapa da Comarca do Sabará, 1778. Imagem: Iepha – Dossiê pelo tombamento da Serra do Curral

“Margeando o rio São Francisco, o gado vindo da Bahia em direção às minas de ouro pernoitava em Curral del Rey e era contado em São Gonçalo de Contagem”, explica Françoise Souza, Diretora de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). O nome de Contagem deriva de uma homenagem ao santo protetor dos viajantes, São Gonçalo do Amarante e do fato do povoado ter surgido como um posto de registro do Brasil-colônia, no qual era realizada a contagem das cabeças de gado e mercadorias para serem taxadas.

“A Serra do Curral era o eixo fundamental de articulação entre duas Minas Gerais: a dos sertões, em referência ao grande sertão narrado brilhantemente por Guimarães Rosa [no Norte do estado] e a das minas gerais, da exploração de minério de ferro e metais preciosos, na região do Quadrilátero Ferrífero”, explica Françoise. Essa última, de verve drummondiana, nota-se.

O nome Serra do Curral aparece pela primeira vez em 1862, em um mapa.

A construção de Belo Horizonte

A Serra do Curral também foi uma referência fundamental para o projeto de modernização de Minas, após a Proclamação da República e o estabelecimento de uma nova capital do estado, para substituir Ouro Preto, antiga expoente do ciclo do ouro no Brasil-colônia.

O então governador, Augusto de Lima, determinou em 1891 a transferência da capital para um lugar que oferecesse as melhores condições de habitação. A região do arraial de Curral del Rey foi indicada como a mais adequada, em função de sua beleza cênica, da ótima condição climática que oferecia e da riqueza hídrica, capaz de abastecer a nova capital.

A Serra do Curral é um local “produtor” de água tanto para a bacia do rio das Velhas quanto para a do Paraopeba, principais responsáveis pelo abastecimento da atual Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Nela nascem grande parte dos cursos d’água que banham a RMBH, como o ribeirão Arrudas, os córregos do Clemente, Capão da Posse, Cercadinho, Acaba Mundo e Serra. Abriga ainda grande diversidade de espécies de fauna e flora.

Planta original da cidade de Belo Horizonte. Imagem: Iepha – Dossiê pelo tombamento da Serra do Curral

A partir do projeto do engenheiro Aarão Reis, a Cidade de Minas é inaugurada no dia 12 de dezembro de 1897, ainda em construção. Em 1901, o nome foi alterado para Belo Horizonte, como não poderia deixar de ser, em referência à presença da Serra do Curral del Rey. Ela também está em destaque no brasão da cidade, em fundo azul, com um sol nascente surgindo de seu lado esquerdo.

Serra do Curral no
Brasão de Belo
Horizonte.

“A cidade foi toda pensada na direção da serra, o que fica evidente no traçado de Aarão Reis de sua principal avenida, a Afonso Pena, ressaltando a serra como uma moldura a ser contemplada”, aponta Françoise. Dela, podia-se observar toda a cidade e da cidade, podia-se observar toda a serra.

Desfigurações e tombamentos

O fato de ser o maior símbolo de Belo Horizonte não impediu que a exploração minerária, desde a década de 1940 e a ocupação imobiliária, a partir de 1960, alterassem significantemente a paisagem da Serra do Curral. Já em 1960, ela foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), após articulação do então governador de Minas, Bias Fortes.

À época, explica a Diretora de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da PBH, Françoise Souza, o principal objetivo era manter o aspecto monumental do paredão, visto de Belo Horizonte.

“Tinha-se um entendimento muito restrito de patrimônio cultural e, por isso, a proteção foi insuficiente”, observa. Foi tombado pelo Iphan apenas o trecho que, tendo como eixo central a Afonso Pena, se estendia 900 metros à esquerda e à direita. Ou seja, protegeu-se apenas a visão de Belo Horizonte da serra.

Panorama de Belo Horizonte visto da Avenida Afonso Pena, 1935-1939. Imagem: Iepha – Dossiê pelo tombamento da Serra do Curral

A proteção não impediu que, longe da vista dos belo-horizontinos, a mineração literalmente sumisse com morros e rebaixasse outros em função da retirada de ferro. Mesmo em Belo Horizonte somaram-se ainda à degradação a formação de ocupações como o Aglomerado da Serra e a verticalização imobiliária em bairros ricos como o Mangabeiras.

Em 1976, Carlos Drummond de Andrade expressa sua melancolia com os rumos de Belo Horizonte no poema Tristes Horizontes.

Nesse contexto, a PBH tomba, em 1991, toda a porção da serra inserida nos limites da capital. “Desta vez, as questões afetivas e simbólicas entraram no processo. O tombamento levou em conta os aspectos históricos, ecológicos, de pertencimento etc.”, explica Françoise.

Ainda segundo ela, já em 1991 o Conselho de Patrimônio Cultural da PBH indica a necessidade de um tombamento estadual, a fim de se proteger também suas porções em Nova Lima e Sabará.

O tombamento estadual

Em 2011, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) recomendou o novo tombamento ao Iepha (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais), a fim de se preservar todo o alinhamento montanhoso e a integridade da riqueza ambiental da Serra do Curral.

O MPMG finalmente assinou, em 2017, um termo de compromisso com o Iepha, pelo tombamento integral da serra. Após idas e vindas, o Iepha abriu o processo de tombamento em 2018 e concluiu, em 2020, um dossiê sobre o caso.

Comparação dos perfis topográficos da Serra do Curral (1950 e 2015) e indicação da área rebaixada pela mineração. Imagem: Iepha – Dossiê pelo tombamento da Serra do Curral

O corpo técnico e a direção do Iepha aprovaram o dossiê, com mais de 1000 páginas, que, em último nível, deve ser aprovado pelo Conep (Conselho Estadual do Patrimônio Cultural). Porém, a então presidente do Iepha, Michele Arroyo, que colocaria o dossiê para votação no Conep, foi destituída do cargo em abril deste ano.

O MPMG fez, então, uma recomendação ao Iepha exigindo que o dossiê fosse pautado na próxima reunião do Conep, o que ainda foi cumprido pelo governo.

O governo de Romeu Zema (Novo) e as mineradoras tentam desesperadamente alterar as bases do estudo para permitir a exploração na área, o que condenaria definitivamente a serra.

A partir desse cenário, a sociedade civil, entidades ambientalistas, políticos, artistas e o MPMG se mobilizaram para requerer ao Governo de Minas o urgente tombamento da Serra do Curral a nível estadual, com base no dossiê já aprovado. Um abaixo assinado promovido pela vereadora Duda Salabert (PDT) recolheu mais de 100 mil assinaturas contra a mineração na área.

A escolha pela história

“A cultura é dinâmica, se ressignifica continuamente e a política de patrimônio tem que dialogar com esse movimento. Congelar um patrimônio seria tirar sentido e restringir a apropriação. O patrimônio deve se abrir à contemporaneidade, sem que sua essência seja destruída. E não há melhor defesa de um bem do que sua apropriação pelas pessoas”, argumenta Françoise.

Para ela, é a hora de aproveitar a mobilização em torno da Serra do Curral para reimaginarmos suas possibilidades, que não tenham a ver com a exploração predatória. “É um momento para agregarmos formas sustentáveis de uso social e econômico do patrimônio; por exemplo investindo na criação de parques e no turismo ambiental” aponta Françoise, lembrando que este é o caso de tantas outras serras de Minas Gerais.

“Há séculos Minas vive a chamada minério-dependência​, mas se não tentarmos superar esse ciclo seremos obrigados a escolher entre nossa história ou a exploração predatória dela”, conclui.

Vista da Serra do Curral. Imagem: Eduardo Gabão

Para Marcus Vinicius Polignano coordenador do Projeto Manuelzão e um dos mobilizadores do movimento pela preservação Serra do Curral, a formação rochosa é um símbolo da nossa mineridade, um cenário que está na visão e no coração de todos que aqui moram e por aqui passam.

“A destruição da serra deixaria um sentimento de morte em Belo Horizonte. Deserdaria as futuras gerações do patrimônio que recebemos da natureza e dos que aqui viveram. Isto não tem preço. Aqueles que votarem contra a serra não merecem o voto dos que aqui habitam, e vão ser historicamente lembrados por isso. A Serra do Curral não está à venda”, sumariza Polignano.

E desafia: “ façam um plebiscito para saber se a população quer mineração na Serra do Curral”.

Mexeu com a Serra do Curral, mexeu comigo!

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