14/07/2025
Associação Coletiva tem transformado um bairro da periferia de BH em referência de mobilização socioambiental
Eram meados da década de 1980 quando os caminhões pararam na margem do Córrego Tamboril, afluente do Ribeirão Isidoro, que alimenta a bacia do Ribeirão do Onça, na região Norte de Belo Horizonte. Famílias inteiras chegavam ao que seria no futuro o bairro Jardim Felicidade, carregando seus pertences e seus sonhos. Os novos moradores ergueram ali suas próprias casas e realizaram as primeiras obras de infraestrutura do bairro a partir de mutirões.
Anos depois, Cleiton Henriques, aos 13 anos, após um doloroso processo de desapropriação, chegou ao Jardim Felicidade e se deparou com uma cena que se repetiria com frequência em sua memória: uma pessoa descartava entulho nas águas do córrego, então sujas e malcheirosas. Ali, no coração do bairro, começava uma história coletiva de transformação socioambiental que se estende até os dias de hoje.
“Eu estava em cima do caminhão, segurando meu cachorro com uma mão e a gaiola com as galinhas com a outra”, relembra Cleiton. “Um tempo depois, tem aquele alvoroço próprio da adolescência, mas a gente começa a se concentrar um pouco nas coisas e aquela angústia de ver o córrego ali me incomodava o tempo todo”.
Formado em filosofia e com vasta experiência em produção cultural, Cleiton encontrou no Núcleo Tamboril, ligado ao Projeto Manuelzão, uma maneira de canalizar aquela inquietação juvenil tão particular. “Quando comecei a me organizar, não tinha dúvida: eu queria participar da luta pelo córrego”, conta. “Arrastei a juventude toda nesse processo e levantamos a pauta da revitalização, contra o discurso de canalização que ainda paira nos dias de hoje”.
Segundo Cleiton, a mobilização partiu de um exercício de resgate da memória afetiva da comunidade com o córrego: “Nosso trabalho precisa lembrar às pessoas, ‘olha, isso aqui é água, foi com isso aqui que vocês construíram suas casas’ e esse foi o processo por muito tempo”. Além disso, a articulação de um coletivo pela causa socioambiental no Jardim Felicidade envolveu parcerias com diversos movimentos sociais e inúmeras reuniões com o poder público.
Dessa mobilização foi criado, em 2011, o Coletivo da Juventude, posteriormente batizado Associação Coletiva, oficializada em 2013 como instrumento fundamental para abordar não apenas questões ambientais, mas também cultura, lazer e qualidade de vida no bairro que hoje abriga mais de 20 mil habitantes. O grupo passou a realizar ações e reuniões no sentido de viabilizar o cumprimento das demandas dos moradores nessas frentes.
A criação de um espaço de lazer para o Jardim Felicidade era uma das pautas mais urgentes do coletivo e envolvia, também, a ideia de evidenciar as duas nascentes mais expressivas do bairro, que haviam sido revitalizadas pelo projeto Valorização das Nascentes Urbanas, parceria entre o Projeto Manuelzão e o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.
Nascente da Felicidade, revitalizada em 2017, localizada na Rua de Estar. Foto: Acervo Associação Coletiva.
Uma pesquisa realizada pelo Coletivo da Juventude em 2012, intitulada “O Coletivo Bate em Sua Porta”, revelou que o bairro contava com apenas um campo oficial e três “micro-praças” precárias como áreas de lazer, em contraste às cerca de 75 igrejas, para os quase 20 mil habitantes.
Para Cleiton, espaços públicos de lazer “proporcionam qualidade de vida para as pessoas, a possibilidade de encontros, de festejar e brincar. Tudo isso muda o cenário de uma comunidade”. A oportunidade surgiu em 2016 através do projeto Oásis, da Faculdade de Arquitetura da UFMG, que propunha transformar espaços ociosos em áreas de lazer comunitário.
A Associação Coletiva abraçou imediatamente a ideia e passou a ocupar, aos poucos, o espaço que se tornaria a Rua de Estar, também conhecida pelos moradores como Biquinha, onde estão localizadas as nascentes revitalizadas. O que começou de forma irregular, em 2017, logo ganhou legitimidade institucional: o Coletivo conseguiu uma autorização inédita para fechar uma avenida por um ano inteiro.
A concretização do sonho não foi livre de desafios, que incluíram a destruição total do espaço por parte de um grupo contrário ao projeto e uma interrupção temporária durante a pandemia de Covid-19. A retomada das atividades se deu pela parceria com o Movimento Nossa BH, através de um edital de captação de recursos que foram aplicados na construção da rua de lazer, com projeto desenvolvido junto à Faculdade de Arquitetura da UFMG.
Mutirão de construção da Rua de Estar, em 2018. Foto: Acervo Associação Coletiva.
Hoje, qualquer pessoa que visite a Rua de Estar encontrará crianças brincando e, nos fins de semana, famílias inteiras aproveitando o lugar. “A gente tem esse espaço hoje como referência do lazer da população e de um lugar seguro, que é uma coisa que a gente não tinha antes”, declara Rosilene Valéria, moradora do Jardim Felicidade, estudante de Ciências Socioambientais na UFMG e integrante da Associação Coletiva. “E ainda ficou um espaço lindo, super acolhedor, colorido e eu acho que isso traz para nós, enquanto comunidade, uma sensação também de dignidade, de merecimento de ter um espaço que, mesmo que na periferia, seja bonito e acolhedor”.
A Associação Coletiva acaba de iniciar, junto ao Núcleo Tamboril, a retomada de suas atividades regulares, a fim de acompanhar as necessidades da comunidade. O coletivo promove encontros abertos para as discussões, oficinas educativas e de recreação, eventos culturais e ecológicos no bairro e desenvolve projetos para viabilizar soluções para as reivindicações dos moradores. É possível acompanhar e apoiar as iniciativas pelo perfil da Associação Coletiva no Instagram.
O principal foco de atuação do Núcleo Tamboril, ainda hoje, é a luta pela revitalização do Córrego Tamboril, que encontra-se em sua maior extensão em canal aberto ou leito natural, mas não apresenta mata ciliar relevante. A criação de um parque linear ao longo do córrego é uma das demandas mais urgentes.
Além do Jardim Felicidade, o núcleo abrange os bairros Solimões, Jardim Guanabara, Granja Werneck, Tupi e Floramar.