10/12/2024
Tendo como símbolo o Ribeirão Araras e a Cachoeira da Belinha, mobilização é marco para a defesa ambiental no estado; região na Serra da Canastra era alvo de mineradoras
A Câmara Municipal de Piumhi, cidade no Oeste de Minas Gerais, aprovou recentemente — por unanimidade — a criação da Área de Preservação Ambiental (APA) Serras e Águas de Piumhi. A lei foi sancionada pelo prefeito em 24 de setembro e é fruto da mobilização de moradores através do Movimento Amigos do Araras e da Belinha, nomeado em referência ao Ribeirão Araras e à Cachoeira da Belinha, patrimônios naturais que agora estarão mais seguros dentro dos limites da unidade de conservação.
A APA Serras e Águas de Piumhi foi delimitada em uma extensa área de mais de 12 mil hectares, circundando o centro urbano na porção sudeste da cidade, na divisa com as vizinhas Capitólio, Guapé e Pimenta. O objetivo primeiro de sua criação é “proteger as áreas de recarga hídrica dos mananciais de abastecimento público de Piumhi, bem como melhorar a qualidade da água captada, visando a saúde da população”.
Para os “Amigos do Araras e da Belinha”, a criação da APA representa uma conquista histórica. O movimento surgiu em 2023 em resposta à ameaça da mineração na região, caracterizada pelas belas paisagens, pela rica fauna e flora do Cerrado, por seu patrimônio arqueológico e por seu potencial ecoturístico. Piumhi está próxima do lago de Furnas e do Parque Nacional da Serra da Canastra, que a cercam a sul e a oeste.
A mobilização popular em defesa das serras e águas da região conseguiu o apoio unânime dos vereadores e impulsionou a legislação específica para a proteção.
Igor Messias da Silva, engenheiro ambiental e coordenador técnico do movimento, destacou o dia da aprovação como um marco para a região e a criação da área protegida como um exemplo de defesa do meio ambiente. “Mais de um ano de trabalho para demonstrar as riquezas de Piumhi, demonstrar que a maior riqueza não está debaixo da terra, não é minério. Se a gente estragar toda a terra para tirar o minério, toda a beleza que está em cima, todas as plantas, afastar todos os animais, a gente não recupera nunca mais”.
A APA Serras e Águas de Piumhi está situada na Sub-bacia Hidrográfica do Ribeirão Araras, na porção leste do município, que integra a Bacia do Rio São Francisco. A Sub-bacia do Araras é a principal fonte de água para a população local e está classificada como Classe 1, segunda maior gradação, o que indica a alta qualidade de suas águas e a necessidade de manutenção rigorosa de sua pureza.
A área apresenta uma geomorfologia caracterizada pela presença da unidade geomorfológica Serra da Canastra, de relevo acidentado e paisagens naturais que possuem grande apelo para o ecoturismo, característico da região.
A Serra da Canastra é reconhecida como uma das mais importantes regiões de preservação do Cerrado brasileiro. Seu ecossistema singular abriga espécies nativas ameaçadas e uma flora rara, além de cânions, cachoeiras e vales profundos que fazem parte do patrimônio geológico e ambiental. A criação da APA em Piumhi é uma maneira de resguardar um trecho importante desse ecossistema valioso e assegurar que a exploração de recursos não degrade o ambiente local.
A cidade de Piumhi também faz parte da Rota do Queijo Canastra, ao lado de outras cidades da região, como Delfinópolis e São Roque de Minas. A rota é famosa entre os adeptos do turismo cultural e gastronômico, atraindo visitantes interessados em conhecer a produção artesanal do queijo Canastra e o modo de vida rural. Principalmente a partir deste início de dezembro, quando os modos de fazer o queijo Minas artesanal foram reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Os modos de fazer o queijo Minas artesanal já são reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2008. Essa é a primeira vez que os modos de fazer um alimento brasileiro recebem o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
No início de 2023, começou a circular em Piumhi a informação de que uma mineradora estava sondando proprietários de terra na Bacia do Ribeirão Araras, com o intuito de negociar a instalação de um empreendimento, a essa altura dado como certo. Como o Araras é responsável por 90% da água que abastece a população piumhiense, a notícia gerou grande temor entre os moradores quanto aos impactos que a mineração poderia acarretar.
O Movimento Amigos do Araras e da Belinha formou-se nesse contexto, em março do ano passado, reunindo moradores de diversas áreas de atuação. Logo o grupo de cidadãos se organizou pelas redes sociais e ganhou a adesão de voluntários e simpatizantes.
Como forma de reconhecer e valorizar o patrimônio natural da região, o movimento realizou sete expedições botânicas aos campos rupestres que predominam no alto das serras de Piumhi. Característicos das regiões de altitude e muito associados ao Cerrado, os campos rupestres desenvolvem-se sobre formações rochosas e são conhecidos por abrigar rica e, em boa parte, inexplorada biodiversidade. Uma espécie de planta rara e ainda não descrita, de delicadas flores amarelas, foi encontrada e agora passa pelo processo de descrição científica. Outra — nomeada Byttneria sagittifolia —, que há muito não era vista, foi reencontrada 205 anos depois de ser coletada pelo célebre botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire em sua passagem por Piumhi em 1819. Trata-se de uma pequena amostra dos tesouros que a região guarda.
O movimento enfrentou uma série de desafios, entre eles, a disseminação de informações falsas que sugeriam que a mineração já era um fato consumado, o que poderia desestimular a mobilização. Os integrantes responderam com estudos técnicos e diagnósticos, identificando as mineradoras envolvidas e verificando o status de cada processo junto à Agência Nacional de Mineração (ANM) e à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Esse trabalho de esclarecimento foi fundamental para manter a população informada e engajada.
Eram quatro os processos minerários em território piumhiense em tramitação. A FME apresentou à ANM um pedido de lavra a céu aberto de 300 mil toneladas ao ano e um pedido de pesquisa, ambos de minério de ferro. Já a Cromita Piumhiense, que por várias décadas extraiu cromo na região até a Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), tem um pedido para retomar a exploração nas cavas abandonadas. Por fim, a WEG Mineração tem um pedido de lavra em curso na ANM para explorar manganês.
Para fortalecer a mobilização e divulgar informações precisas, os moradores compilaram toda a informação coletada em um dossiê. O documento detalha o histórico de exploração mineral na região, os passivos ambientais deixados por mineradoras anteriores e a legislação ambiental municipal vigente. O trabalho revelou o impacto da mineração em áreas semelhantes e serviu como uma importante ferramenta de apoio à criação da APA, fornecendo subsídios para os debates e ajudando a atrair mais apoiadores para a causa.
Em julho do ano passado, a vereadora Shirley Elaine Gonçalves, conhecida como Shirley da Educação, apresentou na Câmara Municipal o Projeto de Lei 48/2023 que visava a criação de unidades de conservação previstas no Plano Diretor de Piumhi. Originalmente, o projeto propunha a criação de duas APAs, mas, ao longo das discussões, os envolvidos decidiram unir as áreas em uma única unidade de conservação, que abrangeria tanto a bacia do Ribeirão Araras quanto as serras da região. Assim, surgiu a proposta da APA Serras e Águas de Piumhi.
O processo de tramitação do projeto enfrentou obstáculos, especialmente em relação aos custos dos estudos técnicos necessários para a avaliação do impacto ambiental. Sem estrutura formal e sem recursos financeiros, o movimento recorreu a parcerias com universidades federais e profissionais da área ambiental, que colaboraram em troca de apoio logístico. As parcerias foram essenciais para viabilizar o levantamento de dados e a elaboração de relatórios técnicos que embasaram a proposta de criação da APA.
Em agosto deste ano, uma audiência pública foi realizada na Câmara Municipal para discutir o projeto. A audiência teve grande participação popular, com muitos cidadãos interessados em conhecer as riquezas naturais da região. Durante a sessão, espécimes de plantas raras foram apresentados ao público, a fim de demonstrar a importância ecológica do território.
A prefeitura contratou um estudo técnico alternativo que propunha uma APA menor, mas, ao final, o Ministério Público de Minas Gerais destacou que a proposta original do movimento atendia plenamente aos requisitos de preservação. Em 23 de setembro, o projeto foi aprovado, com a área da APA ampliada para 12.151 hectares. No dia seguinte, a Lei nº 2.767/2024 foi sancionada pelo prefeito.
Com a criação da APA formalizada, os Amigos do Araras e da Belinha agora se concentram na implementação das medidas de proteção previstas na nova legislação. Segundo Igor Messias, o próximo passo é garantir a consolidação da proteção do território, o que inclui ações como a sinalização da área e a conscientização dos moradores sobre a importância da preservação. O movimento também planeja formar uma brigada de manejo do fogo e combate a incêndios, dada à vulnerabilidade do Cerrado a queimadas.
Além disso, o movimento reconhece a importância de uma estrutura formal para dar continuidade à atuação em defesa do meio ambiente. Nesse sentido, foi criada recentemente a Associação de Defesa Ambiental de Piumhi e Região (Adap), que, com o apoio de um símbolo regional — a Byttneria sagittifolia descrita por Saint-Hilaire e reencontrada pelos piumhienses — busca captar recursos e firmar parcerias que possam fortalecer a proteção da APA. A associação representa uma evolução na organização do movimento e oferece novas oportunidades para garantir a preservação e o desenvolvimento sustentável na região.
Para Igor Messias, a experiência de mobilização em Piumhi é um exemplo inspirador que pode motivar outras comunidades a defenderem seus territórios. Ele ressalta que, embora o risco iminente da mineração tenha sido o motor inicial da mobilização, a luta por proteção ambiental é contínua e exige esforços permanentes. “Nossa esperança é que a combinação entre conhecimento técnico e participação popular, que nos trouxe até aqui, continue sendo nossa força no futuro”, conclui.