Navegar sempre, preciso é - Projeto ManuelzãoProjeto Manuelzão

Navegar sempre, preciso é

18/01/2024

O Rio das Velhas e seus navegadores do passado: Richard Burton

[Artigo de Eugênio Marcos Andrade Goulart, professor da Faculdade de Medicina da UFMG e ex-coordenador do Projeto Manuelzão publicado nas páginas 8 e 9 da Revista Manuelzão 94, na editoria Em que pé que tá?; republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse a edição 94 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

Trecho inicial do artigo “Navegar sempre, preciso é”, que abre o 1o volume do livro Navegando o Rio das Velhas das Minas aos Gerais (2005); nas próximas edições da Revista Manuelzão, publicaremos os trechos seguintes, que abordam a vinda dos naturalistas europeus à região da bacia do Velhas, entre eles o barão Georg Heinrich von Langsdorff, médico alemão naturalizado russo, e sua Expedição Langsdorff, e o paleontólogo dinamarques Peter Wilhelm Lund.

Corria o ano de 1867 quando o escritor e aventureiro inglês Richard Francis Burton contratou, em Sabará, um canoeiro para guiá-lo até o mar. Teve que explicar muito para que o atônito sabaraense entendesse que pretendia descer o Velhas e o São Francisco por mais de 300 léguas. O fato é que o fez, travessia que gerou o precioso livro Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico (publicado pela primeira vez mais de cem anos depois, em 1977).

Estava com 47 anos e tinha como principais façanhas ter sido o primeiro europeu a entrar clandestinamente na proibida cidade de Meca, no Oriente Médio, ter descoberto as nascentes do Rio Nilo, na África Central, e ter traduzido do árabe As Mil e Uma Noites e do hindi o Kama Sutra. Por detrás do desinteressado viajante escondia-se na realidade um agente secreto da Coroa Britânica, a escrever relatórios que orientassem uma futura ocupação inglesa em terras além-mar. Pouco antes havia visitado a mina de ouro de Nova Lima, comandada por seus patrícios, e pretendia obter informações sobre diamantes e outras riquezas que sabia existirem no interior brasileiro.

Burton era um inglês à frente de seu tempo, pois via os povos colonizados sem o olhar preconceituoso de muitos de seus contemporâneos. Tinha uma especial admiração pelo maior entrosamento dos portugueses com os nativos de suas colônias da Ásia, África e do Brasil, e até mesmo mostrava desdém ao discurso de superioridade social e racial britânica que era ensinado nas academias militares que frequentara.

Richard Burton deixou registrado um extenso diário de bordo, desde o dia da partida de Sabará: 7 de agosto de 1867 – Encaminhamo-nos ao Porto da Ponte Grande, onde se encontra o ajojo, ou balsa. Jamais vira embarcação tão decrépita, verdadeira Arca de Noé, semelhante a uma carroça de ciganos flutuante, coberta por um toldo, cerca de dois metros e trinta centímetros de altura e um de comprimento, assentando-se sobre dois troncos ocos. O rio devia ser bem seguro, para que uma geringonça daquelas navegasse sem acidente.

A viagem transcorreu com muitos atrasos devido às dificuldades com as corredeiras do rio, mas hora nenhuma Burton arrependeu-se de seu ambicioso projeto. No entanto, ainda no primeiro dia de remadas, ao anotar suas observações de bordo, deixa escapar um tom de preocupação: O rio é profundamente encaixado; são curtos os trechos retos, e tem-se a impressão de navegar-se em direção a alcantis cujos altos penedos alcançam o leito, recortando-o em pequenas curvas.

Comparou o Rio das Velhas com o seu querido Tâmisa e com poucas semanas de viagem fez a predição entusiasmada de que uma grande civilização iria um dia ocupar aquelas paragens: Esse rio deserto tornar-se-á, dentro em pouco, uma estrada de nações, uma artéria que fornecerá ao mundo o sangue vital do comércio. A praia de areia em que estávamos talvez venha a ser o cais de alguma rica cidade. A Cachoeira da Onça e a Coroa Braba serão silenciadas para sempre. E o ruído do trabalho dos homens abafará os únicos sons que agora chegam aos nossos ouvidos, o uivar do guará e os gritinhos fracos do pequeno coelho castanho do mato.

Deixou o rio por alguns dias e subiu a cavalo a Serra do Espinhaço, chegando a Diamantina, onde permaneceu por algum tempo. Muito curioso, bisbilhotou sobre as diferentes formas de se garimpar o diamante, o seu preço no mercado local e internacional, as características climáticas e geográficas da região e a receptividade aos estrangeiros de origem inglesa, tendo aproveitado, ainda, para dar um longo giro por todo o Distrito Diamantino.

Ao chegar, finalmente, à barra do Rio das Velhas com o São Francisco, após 38 dias de viagem desde Sabará, Richard Burton deixa-se emocionar com o grandioso espetáculo das águas, e registra em seu diário: Era impossível contemplar sem entusiasmo o encontro dos dois poderosos cursos de água. O Rio das Velhas faz uma curva graciosa de nordeste quase que para oeste e, descendo por um trecho reto, com cerca de 183 metros de largura, mistura-se com o São Francisco, que vem de leste para recebê-lo (…) Se algum lugar merece o selo de grandeza conferido pela mão da Natureza é essa confluência.

 

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