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No deserto da justiça, a miragem do direito

11/07/2022

Pessoas abaixo de barragem instável da Vale em Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, sofrem com manobras da mineradora para impedir reparação dos danos

[Reportagem do jornalista Paulo Barcala.]

Era abril de 2020 quando o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ajuíza a primeira ação contra a mineradora Vale em defesa das comunidades atingidas pela “lama invisível” da barragem Doutor, no distrito ouro-pretano de Antônio Pereira. A estrutura tivera o nível de emergência elevado de 1 para 2 apenas seis dias antes, deixando os cerca de 5 mil habitantes de cabelo em pé. Na cabeça de todos, ainda muito vivas, as cenas de terror da barragem de Brumadinho, rompida havia pouco mais de um ano.

No curso do processo, a Justiça reconhece, ainda em setembro de 2020, que as pessoas atingidas deveriam ter a seu serviço uma Assessoria Técnica Independente (ATI), custeada pela ré, para que fossem equilibradas as condições de informação e negociação que opunham as vítimas a uma empresa do porte e do poder da Vale.

Em janeiro de 2021, a própria legislação passa a reconhecer esse direito, com a promulgação da Lei 23.795, que institui a Política Estadual dos Atingidos por Barragens. Ainda hoje, porém, ambas, decisão da Justiça e lei, continuam mofando na gaveta, sem validade prática, pois as vítimas permanecem sem o apoio da ATI que escolheram – o Instituto Guaicuy, eleito com mais de dois terços do voto popular –, enfrentando sozinhas a gigante da mineração.

Proximidade entre a barragem Doutor, à direita ao fundo, e Antônio Pereira atormenta moradores do distrito. Foto: Leo Souza

Artifícios legais contra a Justiça e a lei

“Desde que houve a escolha da Assessoria Técnica pela comunidade, em seguida homologada pela justiça, a Vale vem tentando, de todas as formas e com todos os artifícios, evitar que a ATI esteja no território. Estamos acompanhando os atingidos , mas com todos os limites por não termos equipe em campo nem recursos necessários ao trabalho”, diz Ronald Guerra, o Roninho, vice-presidente do Instituto Guaicuy e coordenador do processo de implantação da assessoria em Antônio Pereira.

Carla Dias, uma das guerreiras que lideram essa luta desigual, é direta: “A Vale tem medo do resultado do trabalho da ATI, do levantamento da real matriz de danos, da realidade dos atingidos e de como foram atingidos, dos estudos de quais os danos coletivos e individuais, de qual é a verdadeira mancha de inundação. A ATI traz um peso técnico para enfrentar o outro lado com dados e argumentos fortes”.

“A ATI vai fazer um trabalho de informação e conscientização sobre os direitos da comunidade, realmente despertar a consciência de uma gente vulnerável, muitos ainda preso a crenças de que mineração é que sustenta e dá emprego, e por isso aceitam suas migalhas”, completa Ana Carla Cota, moradora do distrito e outra das principais ativistas. Ela também chama atenção para um segmento em particular: “as crianças e adolescentes formam um público invisível, sofrem calados, mas acumulando traumas e transtornos. Como a Vale vai cuidar dessa reparação? Estão roubando a infância e a adolescência dessa turma. A chegada da ATI abarcaria todos os atingidos”.

Manifestação das pessoas atingidas do Pereira em frente ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Foto: Leo Souza

Os tempos judiciais não são os de quem sofre. A morosidade está em tudo. De maio do ano passado até fevereiro último, já foram solicitadas ao Instituto Guaicuy três diferentes edições do Plano de Trabalho, mobilizando a cada turno um grande número de técnicos para readequar a peça às exigências processuais.  A cada ida e vinda, os prazos se esticam.

O pedido da empresa para levar o caso à mediação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), de segunda instância, também funciona como protelatório. Segundo a advogada Maria Tereza Queiroz Carvalho, assessora do Guaicuy, a discussão de acordos poderia ocorrer em primeira instância, sem suspender o processo: “na própria ação, qualquer das partes pode propor acordos, independentemente da fase do processo”. Só que assim não se comeriam mais de seis meses do precioso tempo dos atingidos, que viram a ação paralisada de dezembro a junho.

Enquanto isso…

Ana Carla analisa a estratégia: “a Vale quer ganhar tempo, um tempo usado contra os atingidos, em que ela articulou – enquanto o processo estava lá na 2ª instância – reuniões duas vezes por semana do comitê que ela criou, ainda que completamente esvaziado, até sem quórum, e sempre sem nenhuma notícia para a comunidade. O que a Vale quer passar é que tá tudo indo bem com o plano de compensação que ela finge ter sido feito em conjunto com a comunidade”.

Para Carla Dias, “é nisso que a Vale mais se especializou, alegar que a ATI não é necessária, que a empresa faz tudo direitinho, que já tem o Comitê, que na verdade é inacessível à comunidade, os que participam não dão retorno pra comunidade nem debatem os temas. A comunidade não acredita, os comentários das pessoas confirmam que ninguém bota fé. Todos sabem que o comitê é da Vale”.

Casas abandonas na área da mancha de inundação da barragem Doutor. Foto: Leo Souza

Roninho batuca na mesma tecla: “A Vale diz que está tomando todas as providências para mitigar os impactos do descomissionamento com o que ela chama de Plano de Desenvolvimento Econômico. Usa a própria comunidade para dizer que faz isso de forma participativa, mantendo uma divisão, colocando poucos representantes e decidindo o futuro em nome da comunidade, sem abrir para um debate verdadeiro nem trazer informação qualificada”.

Ana Carla aponta um dos nós: ”O que a Vale apresenta não é um plano de reparação, são obras de infraestrutura, esporte, lazer. Isso não é reparação integral dos danos, não traz nada sobre a desvalorização das casas, atingido é só quem foi removido, nem fala das perdas no comércio, da saúde mental…”.

De fato, o chamado Plano de Compensação e Desenvolvimento aborda ações como a instalação de muros de gabião, revitalização e plotagem de pontos de ônibus, reforma da escola, repasse de recursos para contratação temporária de servidores da saúde, entre outras. Nada que se assemelhe a um Plano de Reparação Integral dos danos de quem sofre, há centenas de dias, problemas de toda ordem: traumas psicológicos e emocionais, doenças respiratórias e cardiovasculares, perda de patrimônio e de fontes de trabalho e renda, rompimento de vínculos afetivos e comunitários.

É mais ou menos assim: eu levo embora a paz, a saúde, os modos de vida, a convivência, a história, os negócios, propriedades, moradias e sonhos da comunidade, e no lugar deixo pontos de ônibus revitalizados. Topa a troca?

De vítima a réu

Outra tática da companhia mineradora tem sido criminalizar a ação de quem está à frente da batalha. Na primeira delas, de modo direto, a Vale impetrou ação judicial contra os atingidos de Antônio Pereira, nominando algumas de suas principais militantes para tentar impedir que sejam realizadas manifestações em determinados locais públicos da comunidade e de seu entorno.

Mais recentemente, a Polícia Federal (PF) levou para deporem em Ouro Preto líderes do garimpo artesanal, atividade que acompanha o distrito desde o período colonial. Segundo uma das garimpeiras conduzidas pela PF, a destacada ativista Dona Ivone Pereira, um dos policiais afirmou com todas as letras que a ação era fruto de denúncia da Vale.

Para Ana Carla, “a Vale quer vencer pelo cansaço, numa prática extremamente desumana, negando direitos para jogar as pessoas no chão. Quando você está numa luta contra uma gigante, e ela abre processo contra você, reafirma que ela é que tem o poder. Isso afeta a moral, o equilíbrio psicológico, ninguém quer levar processo nas costas. Ela consegue coibir, colocar o terror na maioria. Multa de 10 mil reais é um valor muito alto pra gente aqui da comunidade”.

Tem fim o túnel?

Ana Carla desfia o rosário: “A morosidade do Ministério Público também nos afeta. Podiam ser mais céleres. Sabemos que o tempo da justiça é diferente do tempo dos atingidos, mas podiam andar mais depressa, é o que a comunidade gostaria. A Defesa Civil municipal tem tido reuniões frequentes com a Vale sem a presença da comunidade. Falta transparência. A prefeitura tem condições de pressionar a Vale. Precisamos do apoio do prefeito, que defenda os direitos das pessoas. Estamos órfãos”.

Carla Dias concorda: “As pessoas daqui não acreditam em reuniões da Vale e de seu Comitê, mas se o MP marcar reunião, a comunidade vai inteira. As pessoas não sabem mandar um e-mail, não tomam essa iniciativa, mas estão esperando a atitude do MP de vir”.

Roninho se revolta: “Já se passou um ano e meio e o que vemos são os relatos das pessoas sofrendo cada vez mais opressão. Criminalizam os movimentos democráticos, alimentam o apetite político de alguns com umas poucas obras, tudo migalhas do que ela tem obrigação de fazer”.

Moradores lutam contra o tempo suspenso imposto pelas obras da Vale para retomarem suas vidas. Foto: Felipe Chimicatti

Segundo a advogada Maria Tereza, “agora, com o encerramento da mediação, a Ação Civil Pública voltará a correr, e deverá ser retomada a discussão sobre a garantia do direito à ATI para as pessoas atingidas pela barragem Doutor. Nesse momento a Ação aguarda despacho da juíza de 1ª instância informando quais serão os próximos passos”.

Enquanto isso, as pessoas atingidas continuam aguardando que a lei 23.795/21 – assim como o despacho da 1ª Vara Cível de Ouro Peto de 10 de setembro de 2020 – deixe o mofo da gaveta e ganhe o sol do meio-dia, fazendo valer seu conteúdo inteiro, que traz, no artigo 3º, a garantia a três direitos: “à opção livre e informada das alternativas de reparação integral”, “à reparação integral dos impactos socioeconômicos” e à “assessoria técnica independente, escolhida pelos atingidos por barragem e a ser custeada pelo empreendedor, para orientá-los no processo de reparação integral”.

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