04/08/2015
A relação predatória produz euforias consumistas inconsequentes
Como nossos hábitos, costumes e ações conduzem e nos transformaram numa sociedade que privilegia a abundancia momentânea, o consumo exacerbado? Porque mantemos o discurso de sustentabilidade praticando o desperdício e a dilapidação dos recursos planetários que estão nos conduzindo a quadros sombrios futuros, onde a gestão não será mais de riquezas e sim da escassez? É preciso debater esta condição humana e nos colocar em estado de alerta para que possamos repensar nossos valores e recuperar a consciência e o cuidado com os bens disponíveis, cujo acesso a estes bens aparentemente ilimitados, aconteceu muito recentemente na história humana. Este acesso fácil trouxe benefícios indiscutíveis à humanidade é também o que foi, em pouco mais de um século, o responsável pela degradação planetária em intensidade maior do que todo nosso passado.
A relação predatória e de muitas facilidades tem produzido euforias consumistas e inconsequentes. Em pequena parte da população, representada perfeitamente no perfil egocêntrico dos “yuppies” na década de noventa, onde o “eu sou, eu posso”, se refletiu no modo de vida, e cultura e arte de toda uma geração que almejava atingir aquele patamar idílico de sucesso e estilo de poder, na realidade insustentá- vel, logo se mostrou uma bolha explosiva de falsa riqueza. A crise que se seguiu, infelizmente, parece não produziu aprendizado contra o desenvolvimento a qualquer custo. As nações continuam, junto com o sistema capitalista, na prática do modelo de corrida pela geração de riqueza acumulativa de rendas descomunais para poucos e socialização dos prejuízos. O capitalismo tem seus méritos, pois foi o sistema que permitiu os avanços tecnológicos e de acessos para grande parte da humanidade, mas que necessita de correções para que aprenda a distribuir social e igualitariamente seus resultados, promovendo o equilíbrio entre pobres e ricos. Esta é a seara de políticas públicas nacionais e transnacionais a ser aprimorada, principalmente pelo desenvolvimento de valores para além dos meramente econômicos e que reduzam as perdas dos excedentes produzidos fomentando e praticando uma distribuição mais eficiente e igualitária.
Não é possível querer produzir cada vez mais e se jogar fora o excesso de produção quando o preço não é aceitável apenas na visão do capital e do lucro. Esta é a hora de ações do Estado regulador e fomentador de políticas pela nação e pela distribuição das benemesses. O planeta não aguenta o modelo do sempre mais e mais. A cultura do desperdício esta acabando com os recursos naturais em suas fontes mineração/produção, e no seu fim com a geração cada vez maior de resíduos, que apesar de serem matérias primas em potencial, são tratadas apenas como lixo descartável e que nesta quantidade e por sua composição contaminam todo o planeta, desde o solo, onde são jogados aos cursos d’água, e ao mar, formando uma triste pegada ecológica de passivos insustentáveis. A obsolescência programada estimula o desenvolvimento de novas tecnologias e novos mercados, mas seu exagero, praticada sem políticas publicas transnacionais de mínimo controle, tem consumido o estoque de matéria prima, exigindo outros planetas para esgotar a fúria consumista.
A nossa realidade brasileira não é diferente e, sim, possuidora de agravantes no modelo civilizatório imposto pelos europeus portugueses que aqui não vieram para morar e sim extrair riquezas de forma predatória e rápida. Modelo este, que a bacia do rio das Velhas foi palco preferencial por sua riqueza mineral, em especial o ouro. Queimadas eram praticadas pelos bandeirantes a partir das margens dos rios (Warming in Lagoa Santa 1908), instituindo a prática da destruição da vegetação em prol do interesse imediato. Prática que também norteou a agricultura nos últimos séculos com o nome de coivara para abrir novos campos de cultivo, trazendo grandes prejuízos para as terras, promovendo o seu rápido esgotamento pela lixiviação do solo e a perda da biodiversidade. Criou-se uma cultura e uma prática que até hoje persiste e é difícil de ser erradicada.
O modelo da mineração do ouro promoveu desvios de cursos d’água para lavagem de barrancas auríferas, assoreando os rios, segundo o geólogo alemão Barão de Eschewege: “Revolvendo-se frequentemente as cabeceiras dos rios, estas se carregam cada vez mais de lama, a qual se foi depositando sobre a camada rica, alcançando de ano para ano maior espessura, tal como vinte, trinta e até mesmo cinquenta palmos. Por este motivo, as dificuldades tornaram-se tão grandes, que não se pode mais atingir o cascalho virgem.” (Eschwege, 1833, p. 168) apud Guedes. O assoreamento histórico, por causas naturais e minerárias, atingem até 12 metros conforme estudos realizados na calha do rio do Velhas por Giovana Parizzi et al (2011): “Geofísica e sedimentologia aplicadas à avaliação do grau de assoreamento de trecho do Rio das Velhas em Rio Acima, Minas Gerais”.
Este mesmo modelo extrativista adotado pela mineração do ferro e outros minerais, resulta em imensos passivos que extrapolam a área das minas. Um modelo relegado ao extrativismo sem preocupações em se desenvolver as fases sequenciais dos processos produtivos em que outros valores são agregados aos produtos finais por adição de tecnologia. O Rio das Velhas é testemunha dos assoreamentos, das contaminações químicas, dos desmatamentos, dos passivos históricos de cavas não recuperadas e do esgotamento de recursos e de insegurança de um futuro incerto para quando o mineral acabar. O resultado desta cultura predatória nos direciona para sermos gestores da escassez que o modelo produz.
A nossa forma de agir construiu um modelo civilizatório que claramente conduz a escassez deste líquido precioso, seja por conduzir à sua falta, seja por contaminá-la. Isto se reflete claramente na expressão “tempo bom” que significa sol de rachar. Esta expressão reflete nossa cultura de expulsão da água praticada na impermeabilização dos quintais, na eficiência dos sistemas de drenagem, nas retificações dos rios, na destruição dos sistemas naturais de absorção, como os alagadiços e matas ciliares.
Depois que a água desaparece pensamos em soluções emergenciais da reservação, sem praticar a recuperação dos sistemas naturais produtores de água. Uma floresta absorve a água da chuva e a libera lentamente por longos períodos. Em nossas cidades impermeabilizadas a absorção é muito baixa e a água é liberada com muita rapidez.
No campo á água é absorvida pela vegetação e pelo solo e demora para escoar enquanto na cidade impermeabilizada ela se esvai rapidamente provocando enchentes e outros problemas.
Culturalmente viramos as costas para o rio e nele jogamos nossos dejetos humanos e industriais como sendo a coisa mais normal a se fazer. Realmente o rio tem capacidade de depuração, mas esta nunca foi sua função, que é prioritariamente a de fornecer base de vida para todos os seres vivos. Quando o usamos para limpar nossa sujeira o estamos poluindo e prejudicando a todos os que dele ainda necessitarão fazer uso. Esta é a mentalidade mais perversa no modo que lidamos com a água, pois transfere aos outros o prejuízo da nossa inconsciência. O resultado é que rios que poderiam ser fonte de vida se tornam em locais evitados, malcheirosos, perigosamente poluídos: rios mortos produtores de doenças e mortes. Rios que para serem provedores de água para consumo humano e industrial necessitam de tratamento cada vez mais caros e na natureza produzem a escassez de vida, pois ela não têm como reagir. O produto final é a mortandade de peixes que nos faz lembrar o que diz o lema do Projeto Manuelzão: “o destino do peixe anuncia o nosso”.
Temos que mudar este paradigma ou nunca produziremos sustentabilidade e nossa herança para as próximas gerações será apenas a escassez.
WARMING, Eugênius. Lagoa Santa: a Vegetação dos Cerrados brasileiro por Ferri, Mario G. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Ed. da USP, 1973.
GUEDES, Valdir Lamim. Uma análise histórico-ambiental da região de Ouro Preto pelo relato de naturalistas viajantes do século XIX. Disponível em: https://naraiz.wordpress.com/2010/11/05/uma-analise-historico-ambiental-da-regiao-de-ouro-preto-pelo-relato-de-naturalistas-viajantes-do-seculo-xix/. Acessado em 12-06-2015
M.G. Parizzi, et al. / Geofísica e sedimentologia aplicadas à avaliação do grau de assoreamento de trecho do Rio das Velhas em Rio Acima, Minas Gerais – Geonomos, 19(2), 152-162, 2011.