09/08/2023
Lar de animais gigantes no passado, cadeia de montanhas é hoje parque nacional pela abundância de águas cristalinas, contudo, segue ameaçada por projeto da Vale
Em uma manhã de céu limpo em 2011, um pequeno grupo de ambientalistas partiu, junto de fotógrafos amigos, rumo a uma caverna bem no alto da Serra do Gandarela, a cerca de 50 quilômetros de Belo Horizonte. O local poderia ter sido destruído dois anos antes por uma pesquisa mineral da Vale, que sem sucesso tentou uma licença ambiental simplificada para extrair desse ponto 16,5 mil toneladas de minério de ferro. A análise do material estava relacionada ao projeto Apolo, que previa um grande complexo minerário nos municípios de Caeté, Santa Bárbara, Rio Acima e Raposos.
No alto do Gandarela, com vista das intermináveis montanhas da região, o grupo ficou estupefato pelo que viu ao adentrar a caverna: um amplo sistema de câmaras, escavado em vários níveis, com túneis arredondados de até 3 metros de altura e 6 de largura, que se abriam em diversas direções. O teto e as paredes eram formados por cangas, solo ferruginoso duro, e tudo parecia intocado por milhões de anos.
A importância do achado seria atestada cientificamente pouco tempo depois. Tratava-se de uma paleotoca — um abrigo subterrâneo de animais da megafauna, nesse caso preguiças-gigantes de dois dedos, que mediam de 3 a 4 metros de altura —, a primeira encontrada na região do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero e a segunda maior em solo brasileiro, com 345 metros de comprimento total.
As paleotocas são escavações feitas por animais extintos, vestígios de atividades biológicas fósseis (os icnofósseis) que podem ser utilizados para reconstruir aspectos do passado do planeta. A megafauna é o conjunto de mamíferos gigantes que viveu à época do Pleistoceno, entre 2,5 milhões e 11.700 anos atrás, marcada pelas glaciações. Na América do Sul, haviam preguiças, tatus, tamanduás, entre outros. Em 1834, o fóssil de uma preguiça- gigante foi encontrado em Lagoa Santa, na bacia do Rio das Velhas, pelo naturalista Peter Lund.
Quase na crista da serra, a paleotoca do Gandarela também é a ocorrência em maior altitude no país, 1.531 metros.
Ainda que não soubessem, os ambientalistas chegaram à paleotoca quase simultaneamente ao professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Francisco Buchmann, pioneiro no registro e estudo dessas estruturas no Brasil e coordenador do Projeto Paleotocas. Entre os anos de 2010 e 2011, o professor Buchmann visitou as cavernas do Gandarela e teve “certeza de imediato do que se tratava” quando entrou na distinta cavidade, “uma das mais fantásticas entre as que conheci”, diz o paleontólogo. Ele publicou o achado pela primeira vez em 2012 em um artigo acadêmico escrito com outros pesquisadores.
A Vale manifestou em 2007 seu interesse em explorar as reservas de ferro do Gandarela, as únicas ainda intactas no desfigurado Quadrilátero. Após promessas à população local e à imprensa de vultosos “investimentos em Minas Gerais”, a empresa solicitou declarações de conformidade às prefeituras dos municípios que receberiam o projeto Apolo. À época também se iniciou a articulação daqueles que se opunham à mineração no local.
No início de 2009, a empresa deu entrada na Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad) ao pedido de uma licença simplificada para pesquisa mineral na área, depois negada. No segundo semestre, foi iniciado o licenciamento ambiental do projeto Apolo, com a disponibilização do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) contratado pela Vale.
No mapa da Vale, a paleotoca seria uma pedra no meio do caminho, incrustada na área prevista para a cava do projeto Apolo. Cientes do inestimável valor científico e histórico-cultural da paleotoca e da necessidade de sua proteção, um movimento ambientalista defensor da Serra do Gandarela comunicou a descoberta em 2012 à Promotoria de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que visitou a cavidade e se comprometeu a atuar para preservá-la. O artigo científico do professor Buchmann ainda não havia sido publicado a essa altura.
Na petição ao MPMG, as organizações relatam uma série de eventos que gerou grave suspeita sobre a Vale: a mineradora, sabendo que a caverna no alto do Gandarela possivelmente tinha valor paleontológico, tentou destruí-la com a pesquisa mineral no primeiro semestre de 2009 de modo a facilitar o posterior licenciamento do projeto Apolo.
Isso porque descobriu-se que um dos dois pontos que a Vale explodiria em sua pesquisa mineral era exatamente o da futura descoberta da paleotoca. Entre a centena de cavidades do Gandarela, o EIA do projeto Apolo listou a caverna AP-38 como de máxima relevância, com “possível valor paleontológico/educacional”. A AP-38 também estava registrada no sistema do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Cavernas (Cecav), vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Foi com as coordenadas indicadas no EIA dessa caverna de máxima relevância em mãos que o grupo de ambientalistas da região subiu o Gandarela em 2011 para avaliá-la. Depois, compararam com o ponto de amostragem mineral indicado pela Vale anos antes. Comentando a suspeita, Maria Teresa Corujo, a Teca, moradora de Caeté e ambientalista defensora do Gandarela, afirma: “seria apagado da História sem ninguém saber”.
O episódio da paleotoca é um entre muitos outros memoráveis esforços para frear as investidas da Vale e preservar o Gandarela. Após o início do licenciamento do projeto Apolo, em uma reunião na sede do Projeto Manuelzão, na Faculdade de Medicina da UFMG, foi criado por moradores e ambientalistas da região o Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela, o mesmo que comunicaria ao MPMG em 2012 a existência da paleotoca e o risco que corria.
O movimento tinha como tarefas iniciais pedir audiências públicas e analisar o EIA do projeto, além de iniciar estudos sobre a relevância ambiental e cultural do lugar, a fim de pedir a criação de uma Unidade de Conservação (UC) . Optou-se por pleitear ao ICMBio a criação de um parque nacional. Foi elaborado um dossiê, encaminhado ao órgão junto de um ofício, assinado pelo Projeto Manuelzão e vários outros movimentos ambientalistas.
O ICMBio abriu um processo para análise da proposta do parque nacional, que em menos de um ano era a prioridade máxima do órgão, enquanto a Vale sofria reveses em seu licenciamento. Na região do Quadrilátero Ferrífero-Aquífero, as montanhas em que se encontra minério são repletas de água subterrânea. É o único caso no planeta em que os aquíferos coincidem com as principais áreas de recarga dessas formações, os topos de morro, que são Área de Proteção Permanente (APP). As cangas ferruginosas, muito presentes no Gandarela, são as formações geológicas mais valiosas para a recarga hídrica, capazes de absorver até 30% da água caída das chuvas.
Por ser a única área não minerada do Quadrilátero, as reservas de água subterrânea do Gandarela têm importância redobrada e refletem-se na enorme disponibilidade de águas que abastecem as bacias do Rio das Velhas, em uma vertente, e do Rio Piracicaba, em outra. Centenas de nascentes se originam na serra, que guarda também a segunda maior faixa contínua de vegetação remanescente de Mata Atlântica de Minas Gerais.
A riqueza desse ambiente — a pureza de suas águas e a abundância de seus frutos —, a mesma capaz de sustentar a vida de imensos animais em um passado distante, se adaptou e atravessou o tempo, se oferecendo até os dias de hoje. Não sem muito esforço para mantê-la viva, a proveito de todos.
Uma próxima reportagem contará o desenrolar dessa história.