Para que a história não vire poeiraProjeto Manuelzão

Para que a história não vire poeira

11/03/2024

Distrito bicentenário de Itabirito, São Gonçalo do Bação luta por seu patrimônio cultural ante às ameaças da mineração

[Matéria de Ferdinando Silva e Isadora Oliveira publicada nas páginas 18 e 19 da Revista Manuelzão 90, na editoria Trilha do Velhas; republicamos aqui com algumas edições para adaptar o texto ao formato do site. Acesse a edição 90 e as edições anteriores da Revista Manuelzão através deste link.]

O arraial de São Gonçalo do Bação, hoje distrito de Itabirito, nasceu no século XVIII como rota de tropeiros e garimpeiros do ouro de aluvião, a partir de uma promessa. Enfermo, o português Antônio Alves Bação se comprometeu a erguer uma capela a São Gonçalo do Amarante caso se curasse. Em 1740, a promessa foi paga, a capela construída e o arraial se formou em seu entorno. 

Entre a religiosidade e o ouro, o pacato vilarejo se desenvolveu e, hoje, na contramão da visão de progresso que a atividade minerária carrega, a comunidade de cerca de 600 habitantes enxerga no potencial de atrair visitas e afeto um melhor caminho para o futuro. 

Um projeto de um terminal de carga, no entanto, capaz de escoar 4 milhões de toneladas de minério por ano, a 1,6 quilômetro do centro histórico, coloca em risco o patrimônio histórico-cultural, hídrico e de fauna e flora de Mata Atlântica e Cerrado da região*. 

A Igreja de São Gonçalo do Bação foi construída em homenagem ao santo português pelo bandeirante Antônio Alves Bação; a capela original, atual sacristia, data de 1740. Foto: Ferdinando Silva.

“Temos um exemplo próximo de um local histórico que virou pátio da Gerdau: Miguel Burnier, em Ouro Preto, transformado em um distrito fantasma. A comunidade precisa entender que Bação só existirá se for conservado”, alerta Clarisse Marinho, idealizadora da Feira Bação Cultural, que desde 2016 promove oficinas e reúne quitandeiras, produtores de cachaça, doces, conservas, mel e massas, além de artesanato.

Para os moradores que lutam contra o terminal, da empresa Bação Logística, não restam dúvidas que sua instalação condenaria a riqueza cultural e natural do local ao rápido empoeiramento e os modos de vida da comunidade sofreriam um impacto drástico e definitivo.

Memória viva

A capela erguida em 1740 continua preservada e serve hoje como a sacristia da atual Igreja Matriz, construída em 1924, com altares em estilo rococó. Já a Capela Nossa Senhora do Rosário, de características arquitetônicas do século XVIII, foi edificada junto do cemitério, no alto dum morro, do qual é possível avistar dezenas de quilômetros da região em todas as direções.

Além das edificações do centro do distrito, Bação também abriga becos, ruínas e muros de pedra, que podem datar do século XVII, época do início da ocupação de Minas Gerais. Toda essa riqueza histórica, alia-se ao patrimônio natural da região e à cultura viva criada atualmente por sua comunidade. 

Além da feira cultural, está ativo o Grupo de Teatro São Gonçalo do Bação, criado em 1997 por Mauro Ghõna para valorizar a história e os moradores locais. No centro histórico, também está o casarão que abriga o Memória de Agulha, projeto criado em 2008 por Vânia Carvalho para manter viva a tradição do bordado, passada de geração em geração, de mães para filhas, contando hoje com seis bordadeiras. 

Bação também sedia um festival de inverno, que vai para sua 19ª edição e, junto dos outros atrativos, fazem do distrito um polo turístico de Itabirito e região. 

O projeto Memória de Agulha resgata ensinamentos familiares e promove o protagonismo feminino com técnicas de bordado. Foto: Ferdinando Silva.

O primeiro ataque

 A proposta do terminal, surgida em 2018, não chegou acompanhada de qualquer diálogo com a comunidade. Máquinas começaram a operar com base em uma Licença Ambiental Simplificada, concedida a empreendimentos ou atividades de pequeno porte e baixo potencial poluidor. Logo nas primeiras obras, contudo, ao menos duas nascentes foram assoreadas e a lama de um talude foi despejada diretamente no ribeirão Carioca e nas cachoeiras Bem-Vinda e Três Quedas, denunciou a associação comunitária**. 

A partir da mobilização da comunidade, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou uma ação, apontando irregularidades na concessão da licença e pedindo a interrupção das atividades da empresa. As obras foram classificadas, inicialmente, como um “pátio de estocagem” e não o que de fato eram: um terminal de carga de minério, empreendimento de impacto muitas vezes maior. 

Com isso, numa escala de impacto que vai de 1 a 6, o empreendimento foi reclassificado de 2 para 4. As obras foram paralisadas até que projeto cumpra o licenciamento adequado, em curso na superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram) da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

A empresa também foi multada três vezes, ainda em 2018, por supressão de floresta, captação de água superficial e obras degradadoras sem autorização. 

O tamanho do problema

A instalação do terminal estaria ligada a altos índices de emissão de poeira nas vias locais e ao dano patrimonial à Igreja Matriz e à Capela Nossa Senhora do Rosário, que estão em processo de tombamento. Além da poluição sonora gerada por carretas e maquinário pesado, a associação comunitária estima a geração de 18 mil m³ de lama em um período normal de chuvas, com base nos dados apresentados pela empresa. Mas não para por aí. 

“Para conectar o terminal, a empresa quer construir um segmento de estrada, que se ligaria às estreitas estradas de Bação, com a previsão de circulação de 450 caminhões diariamente, cada um carregado com 27 toneladas de minério. Além disso, esse trecho ligaria a BR-040 à BR-356 e serviria de atalho para ao menos 1500 veículos de passeio por dia”, estima Elias Rezende, engenheiro aposentado, proprietário da cachaçaria Itabirito e um dos líderes da associação comunitária de Bação.

A empresa não apresentou qualquer estudo de tráfego induzido da estrada. Pior, também não apresentou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), documento técnico fundamental em um processo de licenciamento. 

O terminal também colocaria em cheque a riqueza hídrica da região e poderia impactar populações a centenas de quilômetros dali. O território de Bação abriga diversos cursos hídricos, nascentes e cachoeiras. A bacia hidrográfica do ribeirão Carioca, tem suas águas classificadas como de classe especial e classe 1, ou seja, de altíssima qualidade. Esses cursos d’água integram a sub-bacia do rio Itabirito, fundamental para o rio das Velhas e o abastecimento da cidade e da RMBH. 

A luta continua

O casarão da Dona Divina, onde está instalado o projeto Memória de Agulha; os casarões da cidade carregam uma história de quase 300 anos. Foto: Ferdinando Silva.

Após o empreendimento ter seu nível de impacto alterado, a Bação Logística precisa de uma Licença Ambiental Concomitante, mais exigente, para que o terminal possa ser instalado. Tendo em vista a riqueza histórico-cultural do distrito, também precisará da liberação dos órgãos patrimoniais competentes. 

O segundo revés da empresa veio em agosto deste ano, quando o Conselho Consultivo e Deliberativo do Patrimônio Cultural e Natural de Itabirito (Compatri) indeferiu uma licença solicitada por 8 votos a 2. A empresa tenta um recurso contra a decisão, sem sucesso até então. 

Enquanto isso, os protetores do distrito que guarda parte importante da história de Minas não arredam o pé, seguem atentos e mobilizados. A memória de São Gonçalo do Bação está viva e resiste.


* Trecho corrigido em relação à versão impressa, que informava 1,2 quilômetro de distância entre o terminal e o centro histórico.
** Trecho corrigido em relação à versão impressa, que informava que eram quatro nascentes assoreadas.

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