Permacultura: tecnologias para reutilizar as águas residuais e transformar poluição em recursoProjeto Manuelzão

Permacultura: tecnologias para reutilizar as águas residuais e transformar poluição em recurso

02/06/2022

Texto de Marina Utsch, jornalista e permacultora, apresentado no âmbito do V Encontro Pró-Mananciais da Copasa, abordando soluções para saneamento domiciliar

[Versão editada da palestra de Marina Utsch, jornalista e permacultora, realizada no âmbito do V Encontro do Pró-Mananciais da Copasa, no dia 2 de dezembro de 2021. O Pró-Mananciais é o Programa de Proteção e Recuperação de Mananciais da companhia.]

A ideia da permacultura é criar uma cultura permanente. Temos o cuidado com a natureza de transformar o que às vezes é poluição em recurso. O que vemos com as esterqueiras é justamente isso: transformar a poluição em recurso, fazer com que tenhamos sistemas que sejam mais eficientes, que não gerem poluição, que fechem seus próprios ciclos dentro da propriedade.

Com isso, importamos menos recursos, gastamos menos com a compra de recursos externos. Também temos propriedades mais eficientes energeticamente, tanto em grande escala, como as propriedades rurais, quanto em pequena escala, e quintais, subúrbios e praças nas cidades.

A permacultura também propõe o processo de uma criar uma cultura de permanência e não de impermanência. O que seria a impermanência? Seria nos levarmos à nossa própria extinção, porque utilizamos mais do que o planeta é capaz de repor. Temos estudos dos limites de crescimento e esses limites já ultrapassaram a capacidade do planeta de se regenerar.

Venho há 14 anos estudando essas tecnologias, principalmente focadas no baixo custo e em pequena escala, pequenas propriedades.

Água cinza

O foco da minha palestra hoje é a água cinza. Temos a água escura, que é uma água que está cheia de restos orgânicos, como as águas da casa provenientes do banheiro, do vaso sanitário, as águas que têm fezes e urina. As águas cinzas são diferentes. Elas têm uma maior carga inorgânica do que orgânica, ou seja, elas são diferentes do exemplo da esterqueira, que é uma carga orgânica, de valor biológico muito grande, com capacidade de biodigestão muito grande por causa de algo vivo. Quando o boi faz cocô, o esterco dele está cheio de microrganismos.

Há o exemplo de grupos humanos que aprenderam a comer o cocô dos camelos como um probiótico, para poder se regenerar, para poder, quando se tinha diarreia, se recuperar dela. Da mesma maneira, isso é possível quando você tem uma água com uma alta carga orgânica. É uma “água viva”.

Mas a água com uma carga inorgânica, proveniente dos produtos de higiene e limpeza que utilizamos, é chamada de água cinza. Ela também tem alguma carga orgânica porque é aquela água vinda do chuveiro, aquela água vinda da pia, vinda do tanque, da pia da cozinha. Embora seja uma água que tem alta carga inorgânica dos detergentes e do sabão, ela vai ter também uma carga orgânica que é a gordura, partículas de resto de alimento, então, há uma carga orgânica.

As águas cinzas são águas que também têm, assim como a água de esterco jogada a céu aberto, potencial de contaminação. Tanto é que quando usamos uma máquina de lavar e queremos reutilizar a água, jogamos essa água numa bombona, num balde grande, e se deixamos essa água parada um dia inteiro, ela começa a soltar cheiro, a ficar fedida. Por quê? Porque começa a ocorrer o processo de digestão anaeróbica, ou seja, sem a presença de ar.

A digestão anaeróbia gera gases, inclusive quando se trata de um material orgânico. Uma carga orgânica, uma carga de esterco, pode ser utilizada para fazer gás de cozinha – o biogás, que é o gás do biodigestor. No caso da água cinza, a geração de gás não é suficiente para alimentar um fogão, mas é suficiente para dar um cheirinho, incomodar e também atrair moscas.

Se ficar à céu aberto, se for um solo impermeabilizado, se for um solo argiloso e você deixa sua água cinza, como acontece muito nas zonas rurais, você deixa essa água da pia escorrer superficialmente, vai adubar seu pé de banana, mas vai também ficar ali criando uma zona úmida que às vezes pode atrair moscas, gerar gases, gerar um cheiro, que pode ser fonte de contaminação para o subsolo se essa carga, se esse material nessa água cinza infiltrar e for para o subsolo, principalmente em solos arenosos.

Se ela não foi digerida antes, ela entra com amônia, às vezes com um produto de limpeza muito pesado que pode ter chumbo ou outro metal pesado ou petroquímicos, que são derivados de petróleo. Então é legal fazermos essa digestão.

Ela também pode ser digerida assim como os estercos, as fezes. Ela também pode passar pelo processo de pré-digestão e ao invés de poluição, ela se torna recurso. É um princípio muito forte na permacultura que a poluição só existe porque ela é um recurso não utilizado.

Jardim subirrigado

Falamos de soluções baseadas na natureza, soluções simples. Para vocês entenderem como fazemos essa reutilização das águas cinzas, eu trouxe coisas bem simples para vocês irem entendendo gradualmente como implementamos esse modelo.

Pode ser realizada em um jardim subirrigado, é uma tecnologia conhecida também como canteiro econômico. É um canteiro que é impermeabilizado por baixo, igual na esterqueira; você coloca uma membrana por baixo. Pode ser membrana um pouco mais cara ou, se se preferir soluções de baixo custo, uma lona de silo. Contudo, a lona de silo tem mais possibilidade de furar, de não ser tão durável a longo prazo.

Se for um investimento grande, o melhor é investir bem e fazer uma coisa permanente. Mas como estamos trabalhando com soluções caseiras, o meu foco é em pequena escala, soluções que possam ser experimentadas em casas, sítios e nos seus próprios quintais.

Podemos trabalhar com essas ideias: você impermeabiliza o fundo e ao contrário de qualquer vaso, onde fazemos uns furos para a água sair e não concentrar, no de um canteiro econômico ou de um jardim subirrigado vamos guardar essa água no fundo.

Imagem: Peter Cezar

Vamos criar uma camada embaixo para a água ficar, não pode ser enchida com terra embaixo, senão começa a ocorrer o processo de digestão anaeróbia: fica uma camada de água lá embaixo com terra e pode ocorrer a geração de gases dos restos orgânicos.

É como se fossem umas garrafas furadas, pode ser um cano de PVC, podem ser pedras, uma camada com algo que vai ocupar o espaço ao mesmo tempo em que deixa alguns espaços vazios para serem preenchidos por água. Em cima, colocamos uma manta, pode ser um cobertor, uma camiseta, uma manta, para que a terra não desça para baixo dessa camada, e a gente põe terra e faz uma drenagem, um extravasor, uma saída de água para que essa água também não encharque e vire um sistema anaeróbio, pois se virar um sistema cheio de água e sem ar, vai gerar gases, vai começar um processo de apodrecimento, de putrefação, de biodigetão anaeróbia.

Conforme o desenho acima, temos corte lateral do esquema, pedras no fundo, algum material que vai deixar espaço para a água no cano perfurado no meio, onde vai estar em L. Você enche o cano e vai ter um joelho para entregar essa água para dentro, vai espalhar a água na parte debaixo do nosso vaso, do nosso canteiro, do jardim, e vai ter um tecido separando uma camada da outra, em cima, haverão as plantas.

Isso é utilizado, por exemplo, em locais de clima seco, como nas hortas do Nordeste. Também é utilizado por pessoas que têm canteiro em casa, mas não tem disponibilidade para ficar regando. Isso diminui o consumo de água dos seus canteiros em até 50% ou mais.


Vendo no fundo dele como é, pode-se fazer uma bombona cortada ao meio, como uma solução para sua casa, uma caixa de geladeira ou mesmo uma caixa de isopor. Para fazer em maior escala, como fazem no Nordeste, você deve cavar e forrar as hortas com lona direto na terra.

Joga-se água na entrada do cano e temos a saída pelo extravasor, que é onde a camada de água fica armazenada. Quanto mais alto o extravasor, mais encharcada vai ficar a camada de terra e, encharcada, vai se tornar um ambiente brejoso. Dependendo da altura da água armazenada nesse canteiro e da altura da camada de terra onde ficam as raízes, é possível cultivar nesse canteiro de cebolinhas a maracujás. Já colhi tomate nesse canteiro. Isso tudo, com pouco uso de água. Agora ele está nessa entressafra, mas tem uma babosa.

Caso se queira apenas um canteiro de hortaliças com água potável, ele é ideal para locais áridos e onde falta água.

No caso das águas cinzas:

– Fluxo subsuperficial aumenta a segurança;

– Necessidade de evitar colmatação em função da cabeleira formada pelas raízes ou resíduos sólidos como cabelo e gordura: caixa de gordura / sedimentador (1 dia de retenção máximo)


O jardim subirrigado pode funcionar também como uma zona de raízes, onde macrófitas (imitação de lagos, pântanos e alagados) farão um trabalho de evapotranspiração e tratamento biológico da água por meio das raízes. Nesse caso, dependendo do teor dos compostos químicos nos seus produtos de higiene, ele funciona apenas como um pré-filtro e não se deve comer as hortaliças dele, mas pode-se usá-lo para flores e plantas ornamentais fazendo a poda e o raleio constante e utilizando a biomassa coletada para sua compostagem.

O design básico na permacultura. Imagem: Ross Mars.

Isso é o que acontece com as macrófitas: elas conseguem trazer oxigênio para as suas raízes mesmo que esteja em um ambiente anaeróbio, sem ar, submersas em um ambiente que está cheio de água e sem oxigenação. As raízes estão debaixo da terra, a água está parada ali, mas mesmo assim as folhas das macrófitas estão absorvendo oxigênio do ar e levando para suas raízes. Tem as macrófitas, taboas, bananas.

É criada em uma película que a gente chama de biofilme, que é um filme vivo cheio de oxigênio. Ali moram muitas bactérias que vão deteriorar, vão comer esses compostos e transformá-los em compostos orgânicos. Os restos de coliformes fecais que eventualmente estiverem na água serão digeridos por esses organismos, que vão estar grudados nas raízes, e farão a digestão tanto da matéria orgânica quanto da matéria inorgânica.

Imagem: Oregon University

Há vários detalhes com os quais precisamos tomar alguns cuidados. Um deles, por exemplo, é a colmatação. Se há uma carga de gordura na água, se tem outras cargas na água, pode ocorrer a formação de pedriscos, que estão lá no fundo e as próprias raízes das plantas que começam a crescer demais, não deixam espaço para a água estar ali, então, o sistema entope.

Para evitar a colmatação, é preciso planejar o sistema para ter bastante pedras, bastante material. Por exemplo: um cano onde a água vai estar passando e que tenha espaço para essa água. A água vai passar nos furos mais largos e os compostos sólidos vão ter mais dificuldade de fazer esse processo, de colar a gordura no espaço e dificultar a água de fluir livremente, de entupir o sistema e também as raízes.

É necessário sempre fazer a poda dessas plantas, porque elas vão absorver os compostos e ficarão com eles no tecido das folhas. De vez em quando você tem que tirar com raiz mesmo para criar espaço para essa água, senão a água fica sem espaço e começa esse processo de entupimento.

Outro detalhe interessante é sempre pensar em promover o fluxo  dessa água para ela ter o máximo de contato com as raízes.

Imagem: Peter Cezar

O funcionamento é igual a um filtro de barro: em cima, são partículas mais finas, embaixo, partículas mais grossas. A água entra, às vezes tem carvão ativado, às vezes tem areia, depois, tomaria mais grossa. A água vai fazer esse fluxo de passagem, os sólidos vão ficar retidos e o que sai embaixo é o efluente, água cinza sem partículas sólidas.

Quando se adiciona serragem com minhocas o filtro torna-se não só um filtro físico que vai absorver as partículas sólidas, mas também um filtro biológico, porque ele vai bloquear esses restos orgânicos, inorgânicos e até o mesmo o fósforo e o nitrogênio, todos esses compostos que estão nos nossos produtos de higiene e limpeza. Vai ocorrer a  digestão do material quando ele passar pelas minhocas e pelos milhões de microrganismos que estão dentro das minhocas e que vão fazer essa transformação.

A função das minhocas na primeira fase desse filtro é justamente fazer essa digestão dessa matéria, dos compostos sólidos. É muito eficiente porque 99% da nossa água cinza é água, só 1% são compostos sólidos. É muito pouco sólido que fica ali em cima nessa camada e a digestão é muito rápida. As minhocas ficam num ambiente muito propício, úmido, e tendo essa carga orgânica, as minhocas adoram.

No Brasil já é feito também o reuso da água cinza para fins de irrigação de hortaliças. Essa irrigação das hortaliças fazendo uma pré-filtragem é realizada com um filtro biológico: o vermifiltro. O desenho abaixo é o esquema de montagem do sistema de Bioágua Familiar, que é um sistema que foi trazido para o Brasil inspirado numa experiência africana. Ele tem o vermifiltro de forma, utilizado para colher 500 litros de água cinza.

Imagem: Cartilha Bioágua Familiar

Volume do biofiltro (vermifiltro): 1700 litros para uma produção de 500 litros de água cinza. Considerando que a média de consumo do brasileiro são 150 litros de água por dia, o sistema deve ser o suficiente para quatro ou cinco pessoas.

Consumimos muita água que poderíamos reutilizar e essa água na irrigação seria eficiente. Todos esses modelos apresentados mostram que é possível, inclusive porque a irrigação das plantas consome muita água. Numa casa faz muita diferença a economia de reutilizar essa água para irrigar.

Detalhe: A irrigação com água cinza nunca é por aspersão, sempre por gotejamento ou sempre jogar direto na terra, nunca nas folhas!

Questões a se considerar e soluções segundo as experiências da Marina Utsch:

– Salinização por deposição superficial dos sais contidos nos produtos de limpeza e higiene ou alterações de ph. Soluções: lavagem esporádica dos canteiros (com água de outra fonte que não o reuso) para drenagem e lixiviação dos sais, estágios iniciais filtrantes, plantas resistentes (ripícolas > anaerobiose), alternar canteiros.

– Produtos não biodegradáveis e compostos químicos bioacumulativos: uso dos pré-filtros e plantas não comestíveis nos estágios iniciais; uso de detergentes biológicos, ecoenzima, sabão artesanal e atenção aos rótulos evitando produtos que contenham metais pesados;

– Coliformes e carga orgânica com patógenos: ecoenzima, alternar filtros aeróbios e anaeróbios, não utilizar a água em sistemas de aspersão;

– Dimensionamento do sistema: calcular quanto de água vai para o sistema, achar a vazão média por hora e multiplicar pelo coeficiente da vazão de pico. Em geral, 1 m² de área de biofiltro por pessoa e pelo menos 50 centímetros de profundidade;

– Legislação e fiscalização: essa apresentação é para quem quer experimentar com suas águas de lavanderia, tanques, chuveiros em nível domiciliar e pequena escala.

A palestrante

Marina Utsch é jornalista desde 2007 e permacultora desde 2008, implementado de forma prática os princípios e técnicas da permacultura para o design sistêmico de ambientes no espaço LARboratorio, uma área experimental de referência para autossuficiência em alimentos, energia e água. O processo de pesquisa das tecnologias e os aprendizados são compartilhados no canal no Youtube Guia de Permacultura. Atuou na captação e gestão de projetos do Instituto de Permacultura EcoVIDA São Miguel, ministrou cursos para a Associação dos Agricultores familiares Orgânicos de Manhuaçu e região (Agrifom-MG) e é sócia da ONG Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas.

 

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