16/08/2021
Este é o primeiro texto da série Agosto Indígena, que discutirá o avanço das pautas da bancada ruralista no Congresso Nacional, em detrimento do direito indígena à terra e à vida
No dia 9 de agosto comemorou-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994, visando elaborar uma Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. Um dos principais objetivos da declaração é garantir a autodeterminação para os povos indígenas do mundo, como expressa no artigo 3º: “Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
Ironicamente, no mês declarado como Agosto Indígena, avançam no Congresso Nacional pautas e projetos de lei que tornam as Casas curral de ruralistas, desmatadores e grileiros.
Esse é o tema de uma série de três matérias do Projeto Maneulzão que, neste primeiro texto, vai esclarecer os meandros do Projeto de Lei 2633/2020, o PL da Grilagem.
As duas casas do Congresso Nacional voltaram de recesso com a urgência de votar pautas que foram adiadas no fim de junho. Logo na primeira semana de atividades, a Câmara aprovou o texto principal do PL 2633/2020, do deputado Zé Silva (Solidariedade/MG), com a emenda substitutiva do relator Bosco Saraiva (Solidariedade/AM). Ele foi aprovado por 296 votos a favor e 136 contra, no último dia 3. O PL 2633 é conhecido como PL da Grilagem por alterar normas relacionadas à ocupação de terras públicas federais, legalizar ocupações irregulares e beneficiar grileiros.
Outro projeto sobre a regularização fundiária também tramita no Senado, o PL 510/2021, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD/TO). Os dois são herança da Medida Provisória 910, a MP da Grilagem. Agora que o PL 2633 vai ser apreciado pelo Senado, o risco de que o texto da Câmara absorva os parâmetros do PL 510 se torna iminente. Os dois juntos abririam caminho para a ocupação ilegal de 43 milhões de hectares, dos quais 24 milhões atualmente cobertos por florestas públicas não destinadas.
O principal risco dos PLs da Grilagem é permitir uma espécie de autodeclaração aos proprietários de que estes atendem às determinações da lei para adquirir regularização, possibilitando a fraude de documentos para terras indígenas, quilombolas ou da União, e deixando ainda mais vulneráveis os indivíduos do lado mais fraco dessa disputa.
Além disso, existe o risco de esvaziamento de órgãos ambientais como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Ministério do Meio Ambiente, já que o projeto autoriza a vistoria por sensoriamento remoto e exige somente a adesão ao Programa de Regularização Ambiental. Isso pode gerar subnotificação nos dados de desmatamento, por exemplo, que vem crescendo vertiginosamente na Amazônia durante o Governo Bolsonaro.
O texto aprovado na Câmara foi o substitutivo do relator Bosco Saraiva. A lei abre brechas para beneficiar inclusive posseiros multados por infração ao meio ambiente, dentro destas condições: imóvel registrado no Cadastro Ambiental Rural (CAR), adesão ao Programa de Regularização Ambiental ou se o interessado assinar termo de compromisso ou de ajustamento de conduta para recuperar vegetação extraída de reserva legal ou de Área de Preservação Permanente (APP).
O ponto principal da discussão, contudo, foi aumentar o tamanho de terras da União passíveis de regularização sem vistoria prévia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de 4 para 6 módulos fiscais. Módulo fiscal é uma unidade que varia de acordo com o município e pode corresponder de 5 a 110 hectares. Na Amazônia, a legislação atual estima os 4 módulos fiscais em 440 hectares.
As regras serão válidas para todo o país, em vez de apenas na Amazônia Legal. A data de referência da ocupação continua a ser 22 de julho de 2008. Essa data coincide com a anistia ambiental concedida pelo Código Florestal de 2012. Confira a notícia da Agência Câmara de Notícias.
Além da aprovação integral, mais 12 destaques foram apreciados e rejeitados. Apenas 7 partidos votaram contrários ao PL, confira os votos por deputado.
O professor Raoni Rajão do Departamento de Engenharia de Produção da UFMG e coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais (Lagesa) contradiz a afirmação de que os principais beneficiados serão os pequenos agricultores. “Mostramos em nossos estudos que mais de 90% dos produtores que aguardam regularização são pequenos, estão na faixa abaixo dos 4 módulos fiscais. E eles já estão presentes no território, então não faz sentido mudar a lei para privilegiar invasores recentes e incentivar a grilagem”, afirma Rajão.
Foi essa pressão que fez com que o PL 2633 não seguisse a proposta original dos 15 módulos fiscais da MP 910 e mantivesse o marco temporal do Código Florestal. Essa proposta não agradou a base do governo e a ala do agronegócio que propuseram, por exemplo, o limite autodeclaratório de 2500 hectares. Esse é o limite constitucional de titulação.
“Para se ter uma ideia, em 2500 hectares caberiam cerca de 25 pequenos lotes de assentamentos rurais, que podem ser de ocupação de populações tradicionais e pequenos produtores. Estes 2500 hectares podem ser titulados a grandes proprietários sem o devido controle, com áreas se sobrepondo à população que ocupa o local. E depois, com o titulo em mãos, esse grileiro pode inclusive chamar a polícia e expulsar os pequenos que estão lá morando há décadas. Por isso, esse processo da autodeclaração é tão perigoso”, ressalta o professor.
As ameaças no texto aprovado pela Câmara, contudo, não param por aí. As áreas que não podem ser tituladas em função de impedimentos como, por exemplo, uma invasão, passam a ser suscetíveis à licitação por decreto do governo, o que deixa ainda mais vulneráveis as populações que lutam pelo direito à terra.
Outro problema é que houve uma mudança de última hora e pouco debatida retirando a exigência de CAR ativo. O CAR tem como objetivo identificar se os imóveis rurais estão de acordo com o Novo Código Florestal, ajudar no planejamento do uso do território, combater o desmatamento e recuperar ou preservar áreas de mata importantes. É como uma fotografia do território que mostra onde há mata e onde há áreas de uso. Logo, ele é um dos principais instrumentos para que o estado identifique fraudes e cancele ou suspenda os cadastros de terras com inadequações legais. Retirando a exigência de cadastro ativo, ele pode servir como evidência de regularidade ambiental independente de sua situação.
O Greenpeace manifestou indignação com a aprovação do projeto. “O recado que esses deputados passam aos brasileiros é que vale a pena invadir e desmatar terra pública. Não há ninguém mais feliz que grileiro nesse momento, tendo governo e congresso a serviço deles. Em cinco meses de mandato, Lira conseguiu aprovar o pior texto do PL do Licenciamento Ambiental e, agora, o PL da Grilagem, apenas citando os retrocessos no campo socioambiental”, publicou em nota Mariana Mota, Coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace.
Mais de 800 indígenas de 48 povos diferentes ocuparam Brasília no Levante Pela Terra em junho. O objetivo era fazer resistência às pautas anti-indígenas que tramitavam no Congresso (veja manifesto que cita as tramitações em voga aqui). O acampamento teve apoio de outros povos em ao menos 10 estados, que fecharam rodovias e fizeram passeatas pacíficas. Entre eles Minas Gerais, onde os povos Krenak fecharam a BR-259, próxima ao distrito de Independência, em Resplendor, por dois dias.
O PL 2633, por si só, não apresenta uma ameaça direta às Terras Indígenas e Unidades de Conservação porque contempla somente terras da União não destinadas. Porém, somado a outras propostas que caminham no Congresso Nacional para enfraquecer ou desfazer terras indígenas, o PL fortalece a grilagem nesses territórios.
O acampamento já planeja um novo encontro do dia 22 a 28 de agosto, quando está previsto a contemplação pelo STF da repercussão geral do julgamento sobre o pedido de reintegração de posse contra o povo Xokleng que poderá suspender definitivamente os efeitos do Marco Temporal como tese jurídica. Saiba como ajudar o acampamento Luta Pela Vida em apiboficial.org.