Pra não ficar só na lembrança

12/07/2010

Duas histórias diferentes, um mesmo ideal: recuperar o contato com o rio

Entre a paisagem

o rio fluía

como uma espada de líquido espesso.

A cidade é fecundada

por aquela espada

que se derrama

“O Cão sem Plumas”, João Cabral
de Melo Neto

(Extraído do livro Rios e Paisagens Urbanas em cidades
brasileiras
)

Quem nunca
ouviu uma pessoa mais velha contar de quando brincava no rio? As cidades
nasceram e cresceram no entorno dos cursos d’água. No princípio da ocupação, as
pessoas procuravam se instalar próximo às margens porque dependiam da água para
uma série de atividades. Com a expansão das cidades, as águas foram
contaminadas pelo lançamento de lixo e esgoto. E em muitos casos, o rio, que
era local de vida, foi canalizado e sumiu da paisagem.

Dona Ivana
Eva, que vive próximo a uma das nascentes do ribeirão Arrudas, no Vale do
Jatobá em Belo
Horizonte, conhece bem essa história. Quando se mudou para lá,
em 1967, o Arrudas fazia parte de sua paisagem cotidiana. “Era o paraíso. Os
meninos pegavam piabinha, pescavam na lagoa”, conta. Ela mesma chegou a lavar
roupa e vasilhas no ribeirão.

Paisagem perdida

Depois, a
região passou a ser ocupada. O que era uma área só de sitiantes começou a se
encher de gente. Veio o lançamento de esgoto, todas as práticas de lazer
deixaram de existir. “Se por um lado esse progresso que chegou aqui nos trouxe
facilidades, por outro, perdemos a essência do lugar”, lamenta. Para o
professor do departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rogério Oliveira, a poluição dos rios determinou o
distanciamento das pessoas. “Aquilo que era um atributo cênico da paisagem
passa a não ser mais, passa a ser algo desagradável”, afirma.

Hoje, a calha
do Arrudas é quase toda revestida de concreto. Quem passa pela Avenida dos
Andradas em BH, por exemplo, pode não ter ideia de que debaixo do asfalto corre
um rio. Normalmente só lembram dele quando há mau cheiro ou enchentes.

Mas há
pequenos trechos que permanecem ainda sem canalização. São as nascentes. Lá a
água é limpa, ainda não cai esgoto e dá até pra sentir o cheirinho de mato.
Dona Ivana trabalha há anos pela preservação das nascentes. E a tarefa não é fácil.
Muitos olhos d’água do Arrudas já foram destruídos. E os que restam estão
ameaçados. Para ela, cuidar desses locais reacende a esperança de revitalizar
todo o ribeirão. “Você já pensou se o Arrudas passasse no centro da cidade com
aquela água limpinha?”, imagina.

História parecida…

Dona Sebastiana da Silva, de
66 anos, mais conhecida como dona Tita, moradora do bairro Aarão Reis, também
tem suas histórias para contar. Ela e a família moraram da beira do córrego
Nossa Senhora da Piedade, na região Norte de BH, por muitos anos. Seus filhos
foram criados lá, nadando, pescando e brincando no rio. “A gente tomava água da
mina, na nascente ali. A água passava na minha porta e desse ‘corguinho’ a
gente pegava pra lavar roupa, pra beber, pra cozinhar”, relembra.

Com o passar do tempo, o
número de casas no local aumentou muito e o rio foi continuamente poluído. Era
um que vinha e jogava um pneu de carro, um sofá velho, animais mortos. “O povo
não tinha sabedoria, tá vendo que o córrego é para correr, não era pra jogar
entulho dentro”, lamenta dona Tita. O rio foi só “entupindo”, de tal jeito que
foi perdendo os peixes e as plantas. “Acabou. Estava tudo estragado, não tinha
lazer nenhum, nada. Cheirava mal, tinha cachorro morto na minha porta, era uma
lama preta”.

Além da falta de atrativos,
começaram a surgir problemas de saúde. Os ratos invadiam as casas e as crianças
que entravam na água estavam adoecendo. Isso chamou a atenção da escola.
Percebeu-se que toda semana um aluno faltava por dor de cabeça, febre ou diarreia.
Essa preocupação começou a motivar os moradores a pensar em ações de combate ao
lixo e à sujeira do local.

… final diferente

            Há uns dez anos, surgiu a proposta de
fazer um parque no entorno do córrego. A maior parte dos moradores inicialmente
resistiu à idéia, acreditando que seria melhor asfaltar as ruas e tampar o rio.
Foi necessário que a escola municipal do bairro – Hélio Pellegrino – os
moradores, o Projeto Manuelzão e o Programa de Recuperação Ambiental do município de Belo Horizonte.
(Drenurbs) unissem forças para a recuperação do córrego Nossa Senhora da
Piedade. Segundo a psicóloga social do Drenurbs, Solange Araújo, o programa
realizou a interceptação do esgoto, tratamento das erosões nas margens dos
cursos d’água e investiu em educação ambiental e mobilização da população. A
comunidade teve que abraçar a causa para ver o sonho de revitalização do
córrego realizado. Várias famílias, como a de dona Tita, tiveram que deixar de
morar na beira do córrego.

Com a recuperação do Córrego, as práticas de lazer voltaram a fazer parte da vida dos moradores no Parque Nossa Senhora da Piedade. (Foto: Júlia Marques)
Com a recuperação do Córrego, as práticas de lazer voltaram a fazer parte da vida dos moradores no Parque Nossa Senhora da Piedade. (Foto: Júlia Marques)

Um parque foi construído e hoje é um espaço com árvores, patos,
pássaros e um córrego com outra cara, cheio de peixes. “Quem chegar ali vai
perceber essas áreas revitalizadas como o quintal da casa dos moradores. É um
espaço de aproximação da natureza, de convívio e lazer”, afirma. O Nossa
Senhora da Piedade já não é mais esgoto, mas ainda não existe a perspectiva de
que se possa nadar no córrego a médio prazo. “Seria o ideal se as pessoas
pudessem brincar dentro d’água, eu mesma queria brincar lá dentro”, imagina
dona Tita. Ela contribui oferecendo uma oficina de artesanato, de confecção de
bonecas de pano e deseja mais avanços: “se tiver mais lazer aqui vai ser
melhor. Tem que ter atividades diárias no parque”.

Em um artigo no livro “Rios e
Paisagens Urbanas em cidades brasileiras”, as pesquisadoras na área de
Arquitetura e Urbanismo, Alessandra Ghilardi e Cristiane Duarte, apontam que
cada vez mais os projetos de intervenção ambiental procuram reconhecer as
questões culturais envolvidas, a percepção que cada indivíduo tem da natureza. Nesse
sentido, o lazer se insere como grande potencial das paisagens em torno do rio.

 As práticas de lazer levam as pessoas a
frequentar mais os rios, a se aproximar e ampliam o “sentido do lugar”. As
autoras apontam que os rios tem significados diferentes pra cada grupo de
pessoas já que estão relacionados com os aspectos culturais de um povo. Mas
várias características da paisagem como água em movimento, determinados sons, cheiros
e pequenos animais causam prazer de estar próximo à natureza. Contemplar o
pôr-do-sol e realizar atividades esportivas, por exemplo, não são diretamente
ligados à água e nem por isso deixam de ser lazer no espaço dos rios.

Leia mais na Revista Manuelzão 58

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