12/12/2022
Mudanças flexibilizam regras, fragilizam a fiscalização, dispensam o licenciamento em alguns casos e contribuem para aumentar exploração e pesquisa mineral no país
O fim do governo Bolsonaro está marcado por uma verdadeira “xepa” no Congresso. Tudo que os parlamentares ligados ao atual presidente não conseguiram encaminhar até hoje foi retomado para aproveitar o fim do mandato de extrema-direita.
É o caso da proposta para um Novo Código de Mineração. Emperrado na Câmara dos Deputados há 1 ano, quando os membros do Grupo de Trabalho da época não chegaram a um consenso, um novo texto foi aprovado e encaminhado para se tornar um projeto de lei.
Liderados pelo relator Joaquim Passarinho (PL-PA), notório lobista a favor do garimpo e da mineração, e atendendo aos desejos de Arthur Lira, já com reeleição encaminhada junto ao PT, parlamentares apararam as arestas para atender a todas as áreas da mineração.
O resultado é uma verdadeira “proposta bomba” que deve ampliar significativamente os impactos socioambientais da mineração no Brasil. As mudanças também facilitam a captação de recursos por mineradores no mercado financeiro, flexibilizam regras, fragilizam a fiscalização, dispensam o licenciamento em alguns casos e contribuem para aumentar o ritmo da exploração e pesquisa mineral no país.
Lobistas do garimpo e da indústria dominaram a pauta do GT. Dos 15 membros do grupo atual responsável pela proposta, apenas 2 deputados – Airton Faleiro (PT/PA) e Odair Cunha (PT/MG) – não são ligados à base bolsonarista.
O objetivo inicial da reforma na lei, como me disse o coordenador do primeiro GT, Evandro Roman, é fazer com que a mineração atinja 10% do PIB brasileiro. Hoje, sozinha, representa míseros 1,2% e chega a 3,1% do PIB se incluirmos o setor siderúrgico. A cadeia minero-siderúrgica, porém, consome 11% da eletricidade produzida no Brasil e emite 5% dos gases responsáveis por causar o efeito estufa.
A reforma no Código foi uma encomenda direta de Arthur Lira e Jair Bolsonaro, assumiu Roman, que não se reelegeu esse ano.
O que motivou o GT foi a pequena e a média mineração, onde entra o garimpo. “É um pedido do presidente Bolsonaro e do presidente da Câmara Arthur Lira que nosso trabalho seja pensado para o micro, pequeno e médio minerador. Para que possamos dar segurança jurídica e previsibilidade a todo setor da mineração”, me disse Evandro Roman há 1 ano.
Procurado novamente agora, Roman não retornou aos pedidos da reportagem. Outros parlamentares também se esquivaram de comentar a proposta aprovada.
A pressa em aprovar o texto, mesmo nessa época do ano e com uma sessão esvaziada, foi evidente. Agora a reforma do Código de Mineração, que é de 1967, pode ser votada a qualquer momento na Câmara e Arthur Lira – que em 2014 foi financiado por empresas ligadas ao garimpo na Amazônia – consegue entregar uma das encomendas para o setor mineral. A outra é o PL 191/2020, que autoriza mineração e agronegócio em terras indígenas.
A lista de entidades ouvidas pelo GT em 2022 inclui notórios lobistas do garimpo e da mineração. A começar pela Associação Nacional do Ouro (Anoro), fundada pelo empresário Dirceu Frederico Sobrinho, próximo de Hamilton Mourão e acusado de comercializar toneladas de ouro ilegal, que chegou a ser preso esse ano.
A Anoro, em parceria com parlamentares como o ex-senador Flexa Ribeiro, exerce forte influência nas definições sobre o setor mineral do governo Bolsonaro desde o início do mandato. Outro defensor do garimpo, Ribeiro teve influência em mudanças centrais para a mineração ainda no governo Temer.
Como o ouro de garimpo é um ativo financeiro que é regulado – ou deveria ser – pelo Banco Central, a Anoro deixa claro que os interesses do garimpo e do mercado são os mesmos.
“Há comunhão de interesses entre mineração e mercado financeiro. Tratar de forma isolada os dois setores não referenda pontos de interesse comuns aos dois mercados”, afirmaram representantes da Anoro aos parlamentares do GT em reunião de 10 de novembro.
A Anoro reclama que o excesso de pareceres, do Banco Central, da Agência Nacional de Mineração e do Ministério de Minas e Energia “fragiliza a consistência jurídica” e, como propostas, defende a Nota Fiscal Eletrônica para o garimpo, a “criação de um cadastro” do pequeno garimpeiro e atualizar o conceito da atividade garimpeira, que de fato deixou de ser algo “artesanal”, há muito tempo, para virar uma indústria com uso intensivo de maquinário pesado. Agora, oficialmente, independente do tamanho e das práticas, é tudo garimpo.
Já o IBRAM, que representa 85% da mineração brasileira, reforçou a “necessidade de fomento à pesquisa mineral”, afirmou que “a mineração está longe do mercado financeiro”, que a reforma do código precisa atrair investimentos e o uso do título mineral como garantia em financiamentos.
Como resultado, foi incluído de novidade no anteprojeto do novo Código de Mineração a permissão para a comercialização e o uso do título de direito minerário em operações financeiras.
“Uma das novidades é você ter o direito, através da sua autorização de lavra, de captar recursos no mercado financeiro. Você pode ir na instituição financeira com um ativo financeiro que você pode usar”, disse Joaquim Passarinho.
O IBRAM também defendeu que a “prioridade” para a mineração seria um “fundamento há quase 100 anos na mineração” e que, nisso, “não se pode mexer”. Por “prioridade” entenda-se a prevalência do “critério locacional” – onde a jazida está – sobre outros direitos, como o desenvolvimento urbano e direitos socioambientais, de comunidades tradicionais, indígenas e ainda na criação de unidades de conservação.
A “área de interesse minerário”, diz o IBRAM, precisa ser “delimitada” para “evitar conflitos”. Sempre com prioridade, porém.
Foi a mesma defesa feita por Sandro Mabel, presidente do Conselho de Mineração da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Para Mabel, é fundamental “manter o direito de prioridade” e garantir a “concessão de lavra por tempo indeterminado”.
A CNI tem assumido papel cada vez mais forte no lobby mineral e emitiu nota defendendo as mudanças no Código de Mineração desde a primeira versão que, em essência, foi mantida para o texto aprovado ontem.
Outras entidades da indústria, como a FIEMG, chegou a apresentar um pacote de medidas que tem o potencial de causar uma verdadeira destruição ambiental caso sejam implementadas. Mesmo com a derrota de Bolsonaro, os pedidos – que detalhei no Observatório – indicam claramente o que a indústria brasileira quer para a mineração e a área socioambiental e como farão pressão e lobby para que essas medidas sejam implementadas a partir de 2023.
Sandro Mabel foi direto ao GT. É preciso “aprimorar direito minerário como garantia, ampliar prazos para pesquisa mineral com restrição de prorrogações, e instituir mineração como atividade de utilidade pública”, pediu.
O licenciamento ambiental, sempre visto como entrave e atacado por uma série de articulações no Congresso, não ficou de fora. “Necessário reduzir burocracias, incluindo suprimir licenciamento ambiental como pré-requisito para outorga de portaria de lavra, e restringir análise do Plano de Aproveitamento Econômico”, defendeu a CNI.
A fiscalização presencial nas atividades de pesquisa, já duramente prejudicada por falta de pessoal, de recursos e mudanças da própria ANM, privilegiando a “fiscalização à distância”, deve ser uma “excepcionalidade”, afirmou Mabel.
O representante do Ibama, em contrapartida, criticou a previsão que está no Novo Código de dispensa de licenciamento para pesquisa mineral. Muitos empreendimentos, lembrou, operam mediante autorização de pesquisa. Ou seja, na prática, essa brecha deve facilitar enormemente que mineradoras atuem sem o devido licenciamento ambiental e, portanto, passando por cima de direitos socioambientais.
A Organização das Cooperativas do Brasil, que diz representar 60 mil garimpeiros, ouvida pelo GT, defendeu a “aprovação tácita” de autorizações de lavra garimpeira decorrido o prazo estabelecido em caso de ausência de resposta. Diversos outros representantes de garimpeiros, como o vereador de Itaituba e agora deputado estadual eleito pelo Pará, Wescley Tomaz, figura recorrente em Brasília, foram ouvidos pelo GT.
Em agosto, relatório do Tribunal de Contas da União deu o diagnóstico: as autorizações para garimpos são dadas mesmo com documentos incompletos, sem verificação, transparência, padronização e que as superintendências regionais da ANM apresentam erros sistêmicos.
Lília Mascarenhas, secretária de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do MME, defendeu para o GT a importância do capital internacional.
“Mineração é uma atividade que envolve riscos. Uma mina para cada mil projetos de pesquisa. E também é intensiva em capital e requer longo período de maturação. Precisamos de investidores familiarizados com o risco. O capital internacional procura países com potencial mineral e condição de bons negócios, que são feitos com confiança e estabilidade jurídica. Código de mineração é a base”, disse.
Não é só retórica. Nos últimos 4 anos o MME de Bolsonaro apostou forte na atração de investidores internacionais, fazendo verdadeiras turnês para captação de recursos e abertura de novas minas, especialmente no Canadá, centro financeiro da mineração mundial.
É preciso cuidado, alertou Mascarenhas, para qualquer alteração da base legal para o setor mineral, que pode provocar “fuga de investimentos”.
E comemorou a essencialidade da mineração na pandemia.
“Na pandemia, a mineração demonstrou toda a sua força. Foi considerada atividade essencial e não houve paralisação. Em vez disso, houve crescimento, sempre resguardada a preocupação com a saúde dos trabalhadores. Chegou a ser o principal segmento econômico brasileiro, maior que o Agro”, afirmou Mascarenhas.
De fato, graças a uma portaria assinada pelo MME no início de março de 2020, após matérias que eu fiz denunciando o impacto da pandemia de Covid-19 na saúde de trabalhadores da área, a mineração foi considerada “atividade essencial”. Em 2021 registrou recorde histórico de faturamento: quase R$ 340 bilhões de reais. Nunca se lucrou tanto na mineração brasileira quanto na pandemia.
Ao contrário do que diz Mascarenhas, porém, a situação foi tão grave que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) aceitou denúncia de entidades sindicais sobre as aglomerações de trabalhadores e as violações de direitos durante a pandemia nas operações de mineradoras brasileiras em maio de 2021.
Um ano atrás, ao analisar o texto apresentado pela ex-relatora do GT, deputada Greyce Elias, em grande parte mantido na versão atual, organizações da sociedade civil representadas pelo Observatório do Clima afirmaram que o texto é “inconsistente, irresponsável e inconstitucional”. O OC elencou diversos problemas graves no texto do GT.
“Não há condições mínimas de essa proposta tramitar como projeto de lei. Ela é uma releitura de um texto arcaico e autoritário do regime militar. Os ajustes realizados ignoram direitos fundamentais no campo socioambiental assegurados explicitamente pela Constituição de 1988. Meio ambiente, populações indígenas, patrimônio cultural e até mesmo o direito à cidade são colocados de forma subordinada aos interesses minerários”, disse Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.
Com o encaminhamento do anteprojeto aprovado agora, os interesses da indústria e do garimpo foram atendidos e uma nova disputa se abrirá no Congresso e possivelmente na justiça, dadas as potenciais inconstitucionalidades da proposta.