Reflexões Sobre a Escassez

10/08/2015

O atual momento de diminuição da oferta de água é apenas o colapso de uma crônica já anunciada. É preciso ter sabedoria para aprender com este momento e mudar, assim como é preciso cautela com o que é proposto como solução.

Pode-se aprender bastante em um momento de crise. O contexto atual de escassez hídrica pode ser muito importante para reflexões sobre a situação ambiental de nossos rios, da forma como estamos continuamente alterando e degradando áreas de fundamental importância ambiental e ainda como é feita a gestão de um recurso tão fundamental como a água.Tais questões nos leva a atentar para o nosso próprio modo de vida.

 Primeiramente é necessário definirmos o momento em que estamos. Não se trata apenas de um contexto de crise (aqui entendida como escassez hídrica), mas principalmente de uma crise (aqui no sentido de disputa e conflito) de gestão territorial e de recursos hídricos. O potencial desabastecimento de água que poderemos viver no Sudeste em 2015 foi intensificado pela baixa quantidade de chuvas em 2013 e 2014, isso é fato, mas as origens do problema são anteriores e bem mais profundas. 

 No ciclo hidrológico, em uma dada bacia hidrográfica, a água tem momentos de maior ou menor oferta, que se alternam no tempo: em um período temos mais chuvas, em outro teremos menos. Isso é natural. A diminuição da oferta hídrica é um fato previsível (como foi previsto, de fato); a crise da gestão de recursos hídricos também já estava apregoada. O atual momento de diminuição da oferta de água é apenas o colapso de uma crônica já anunciada e noticiada por diversos órgãos e entidades – vejam, por exemplo, as discussões do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. A escassez de água explicitou como nunca que não há nada de sustentável em nossa gestão territorial, ambiental e de recursos hídricos.

A forma como o nosso modo de vida se relaciona com a água se manifesta em todas as atividades exercidas em nossa sociedade. Nas áreas urbanas, o solo é impermeabilizado em percentuais incoerentes com a construção de uma cidade sensível à dinâmica das águas; os rios escoam (muitas vezes canalizados e tampados) apodrecidos pelo esgoto, pelos resíduos sólidos e pelos efluentes industriais. Há mais de dois séculos repetimos o mesmo modelo de esgotamento sanitário. Nas serras as minerações diminuem a vazão das nascentes e desmatam extensas áreas de cobertura natural em áreas de recarga hídrica; e como se não bastasse, a moda agora é usar bilhões de litros de água para escoamento de minério de ferro – os chamados minerodutos; nas áreas rurais, agrotóxicos e insumos químicos geram doenças aos trabalhadores, produzem alimentos contaminados e são carreados para os cursos hídricos, causando eutrofização e poluição.

Importantes áreas de mananciais que abastecem a Região Metropolitana de Belo Horizonte estão ameaçadas pela forma como desempenhamos algumas atividades econômicas, pela quantidade de vegetação nativa que insistimos em retirar e pelos diferentes impactos que geramos nessas áreas tão frágeis. No atual contexto é importante que fique claro: nós ainda não temos instrumentos políticos efetivos de proteção de mananciais para o abastecimento público.

Mas o maior problema não é este momento que vivemos de indisponibilidade de água para o abastecimento público. Esse é apenas o problema mais sensível atualmente. Hoje se fala tanto da “crise hídrica” porque ela caiu como “bomba” no colo do consumidor final que, sem estar ciente da crise que se arrasta há anos, pensa apenas que é culpa de si mesmo, de São Pedro ou das chuvas. Com o alarde da mídia, é inevitável que cada cidadão coloque a mão na consciência e pense que se não mudar sua conduta vai faltar água, vai pesar no bolso e que precisará, (urgentemente) diminuir seu consumo, não desperdiçar (o que já devia ser evitado independente de falta de água) e buscar formas domésticas alternativas de armazenamento de água. Isso, de fato, é muito importante. A crise também nos ensina a olhar para nosso próprio modo de vida. Será ótimo quando todos nós melhorarmos a forma de lidarmos com os recursos naturais. Entretanto, como mencionamos anteriormente, a questão é mais profunda, e reside na desigualdade de uso e para quem a falta d’água vai sair “mais cara”. 

No contexto de crise de abastecimento hídrico, temos o conflito instaurado entre diferentes usos: mineração, agricultura, áreas urbanas, abastecimento público, sistema ecológico dos rios. O conflito pode ter uma dimensão muito positiva, caso seja enfrentado de forma a garantir igualdade e compatibilização de usos. Não é isto que acontece. Alguns setores econômicos são muito mais fortes (mineração, agricultura e indústria, são exemplos), articulam-se com instâncias políticas e negam a relação conflituosa que existe na gestão das águas na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Negar o conflito é “varrer a sujeira para debaixo do tapete”. Não solucionamos o problema, apenas pensamos que é mais fácil resolvê-lo depois. O problema avoluma-se, ganha proporções e se torna ainda mais complexo. Mas em algum momento explode e se torna uma criatura de proporções imensas, algo que não percebemos crescer (apesar dos vários avisos) e não entendemos a sua complexidade. Esta criatura de origem estrutural, agora com cara de “crise hídrica para o abastecimento público”, é sintoma de uma gestão negligente e de um modelo de crescimento econômico injusto, que gera riqueza para poucos à medida que gera danos ambientais para muitos.

Temos agora que lutar contra esta criatura que se volta contra o criador, nossa própria sociedade, e seu modo de vida. Quais medidas tomaremos? Podemos começar repensando a forma como construímos nossas cidades, repensar os modelos econômicos que optamos por seguir, rediscutir as diversas injustiças ambientais e sociais que constroem tantos espaços de segregação e desigualdades. E com isso, repensar nossa própria participação na vida política da cidade e a gestão que se faz das águas, que também é de nossa responsabilidade. Para isso temos que olhar nas origens do problema, entender que a crise atual de abastecimento de água é um reflexo de um modelo social e econômico. É necessário entender que o problema é de uma escala estrutural e deve ser tratado como tal.

Outra situação sensível é tentar resolver apenas o problema de oferta de água. Para isto temos diversas soluções e o racionamento para o usuário final é a mais simplista delas. Podemos retirar mais água dos rios, como já foi proposto, e sacrificar todo um complexo sistema ecológico que se estende por centenas de quilômetros – por hora esquecemos que o rio e os peixes também têm direito à água, garantido inclusive por lei. 

Podemos fazer com que todos os usuários de água (incluído a mineração, as indústrias e também a agricultura irrigada e de grande porte) utilizem menos água. Mas, para isso, é preciso olhar para nosso próprio umbigo e não nos desassociarmos desta crise. É fundamental a participação social na gestão das águas. É fundamental não perdermos de vista o governo que elegemos suas promessas e seus acordos. É fundamental discutir seriamente a questão com toda a sociedade, mas é imprescindível que essa discussão permeie os locais em que haja encontro entre o poder público, as empresas e a sociedade civil, locais de decisão coletiva como os comitês de bacias. É importante desenvolvermos uma energia vital de compromisso com o outro, com o ambiente e com a vida. Para todas essas questões necessitaríamos de um modelo solidário e sério de gestão territorial e de recursos hídricos e isso, infelizmente, ainda não temos.

Essencialmente é importante que o conflito seja explicitado em toda a sua complexidade. A população tem direito de saber que sua água está sendo usada para produzir um refrigerante e não para chegar à torneira ou ainda para lavar minério ao invés de ir para o banho. O Estado tende a evitar o conflito e não aplicar a própria lei que ele criou, simplesmente porque irá impactar algumas poucas grandes empresas. A sociedade bem informada sobre a questão poderá entender até que ponto o racionamento de água é importante, assim como as limitações desse instrumento. O racionamento ajuda a diminuir o problema de agora, mas não enfrenta a questão central: os conflitos e diferentes usos da água na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Outra prioridade deveria ser uma discussão ampla e irrestrita sobre o que queremos para os nossos rios e o que queremos construir para a nossa sociedade. A crise de desabastecimento atual é a ponta de uma crise estrutural e que deve ser discutida com a sensatez que é necessária. Acreditamos que é possível construir outros modelos de cidade, outras formas de desenvolvimento econômico, mas para isso é preciso antes de tudo envolvimento de toda a população na reconstrução de um imaginário de cidade e de sociedade que seja sensível e incorpore em sua paisagem os cursos d’água. O Rio das Velhas não irá melhorar enquanto toda a sociedade não se comprometer e tiver certeza de que quer córregos, ribeirões e rios vivos, cheios de peixes e também de pessoas, por que não?

É necessário termos sabedoria para aprendermos com este momento e mudarmos, assim como é preciso cautela com o que é proposto como solução para o problema de oferta de água. Temos que ser cuidadosos ao tentar lutar contra a criatura que criamos e não perdermos nós mesmos nossa humanidade; que a nossa solução contemple a complexidade da discussão, em todas as suas necessidades, que a remediação não seja imediatista, simplista e egoísta ou corremos o risco de, à beira do abismo, tomarmos decisões ambientalmente temerárias e injustas. Neste caso, o remédio pode ser pior que a doença.

 

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