Repactuação tarifária atenua as agruras da privatização do saneamento em Ouro PretoProjeto Manuelzão

Repactuação tarifária atenua as agruras da privatização do saneamento em Ouro Preto

01/08/2023

Após crise marcada por contas estratosféricas e uma enxurrada de reclamações a respeito do serviço prestado, negociação para conter o caos instaurado avança

[Reportagem de Paulo Barcala publicada no site do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Das Velhas nesta terça-feira, 1º de agosto. Imagem da capa: População protesta contra a Saneouro em 8 de junho de 2021, aniversário de 310 anos da cidade; a foto é de César Diab/Sinasefe IFMG.]

Ouro Preto é um dos municípios mineiros que optou por conceder ao setor privado os serviços essenciais de saneamento básico. O contrato de concessão, com vigência de 35 anos, data de outubro de 2019, ainda no governo Júlio Pimenta. O processo de licitação contou com um único concorrente, o consórcio Saneouro, composto pela multinacional GS Inima, de capital sul-coreano, e o grupo mineiro de engenharias MIP.

A escolha se opôs a uma tendência internacional, segundo levantamento feito em 2017 por organizações principalmente europeias. O estudo constatou que, do início dos anos 2000 em diante, ocorreram mais de 250 casos de remunicipalização dos sistemas de água e esgoto ao redor do mundo. Nessa lista estão cidades do porte de Berlim, Paris e Buenos Aires.

A linha dominante faz sentido para o professor Rafael Bastos, doutor pela Universidade de Leeds, Inglaterra, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Coordenador de Projetos do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).

De acordo com Bastos, “a experiência da prestação de serviços pela iniciativa privada esbarra na contradição da maximização de lucros. Esses três exemplos [referindo-se às capitais de Alemanha, França e Argentina] são emblemáticos. Depois de muito tempo de iniciativa privada, o poder público chegou à conclusão de que essa lógica não é compatível com a prestação sob a ótica dos direitos humanos, da saúde pública e do bem-estar da população”.

Parado no tempo

Com um dos mais antigos sistemas de água e esgoto do Brasil, datado dos anos de 1890, a antiga Vila Rica praticamente “não se desenvolveu durante todo o século XX em relação à rede sanitária municipal”, como constatou o Ministério Público Estadual (MPE) ao analisar uma investigação preliminar aberta em 2021 a pedido da Força Associativa dos Moradores de Ouro Preto (Famop).

“Eu acredito no serviço público”, diz o atual prefeito Angelo Oswaldo, “tanto que, eleito em 2004, logo no primeiro mês de 2005 enviei Projeto de Lei à Câmara criando uma autarquia, o Serviço Municipal de Água e Esgoto [Semae], para que finalmente tivéssemos como implantar a política pública de saneamento e abastecimento”.

De 2005 a 2012, continua, “fizemos grandes investimentos e avançamos. Conseguimos implantar a ETE [Estação de Tratamento de Esgoto] pioneira de São Bartolomeu, despoluindo o Alto Rio das Velhas”.

Na campanha eleitoral de 2020, “muito preocupado com a situação”, Angelo se propôs “a retomar o serviço para o município”, mas admite: “Não consegui”. E explica: “Seriam necessários recursos da ordem de R$ 300 milhões entre indenizações à concessionária, pagamento de lucro cessante e investimentos para restabelecer um serviço que foi desmontado, além de correr contra o tempo, premidos pelo marco regulatório, pelo qual o não cumprimento das metas implica responsabilização até sobre a pessoa física do gestor”.

O ex-vereador e ex-prefeito Flávio Andrade resume o contexto: “O bicho-papão em toda eleição era o ‘relógio da água’, a cobrança. Isso atrasou 40 anos a modernização. Itabirito já cobra desde 1980 com o SAAE. Há uma cultura aqui que não há em outros lugares. Nesses anos todos, a prefeitura fez várias leis, a cobrança já era prevista desde pelo menos 2005, não só a TBO [Tarifa Básica Operacional], mas pelo consumo, e ninguém teve peito de colocar em prática. Ouro Preto virou uma ilha, a água é um dom de Deus, vovô nunca pagou, meu pai nunca, por que eu?”.

Angelo se refere a essa “tradição de não pagar por água e esgoto”: “Muitas pessoas exploravam isso politicamente, até a TBO tinha altíssima inadimplência. O Semae tinha também um papel pedagógico, quanto à necessidade de se pagar, pois esses serviços têm custo, mas o processo foi atropelado por políticos populistas, que incitavam a população a não pagar e ao mesmo tempo promoviam a privatização”.

Várias frentes

O quiproquó suscitou, além de vários atos públicos vocalizando o clamor popular pela intervenção e pela anulação do contrato de concessão, a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal e a convocação de duas audiências públicas na Assembleia Legislativa (ALMG).

A CPI resultou, por iniciativa da prefeitura, na abertura do Inquérito Civil 0461.21.000261-8, de 14 de julho de 2021. A conclusão do Ministério Público Estadual (MPE) foi pelo arquivamento. A prefeitura recorreu, mas o Conselho do MPE manteve a decisão dos promotores.

As audiências da ALMG abriram espaço às denúncias da população contra “irregularidades na prestação dos serviços, como cortes no fornecimento de água e cobrança de tarifas exorbitantes”. Luiz Carlos Teixeira, presidente da Famop, explica o sentido: “Se ficássemos restritos a Ouro Preto, a coisa não ia para a frente. Levamos para Minas e para o Brasil, para repercutir no próprio Marco Legal”.

Leleco Pimentel, deputado estadual com atuação na região, critica: “O Ministério Público de Ouro Preto ficou surdo às irregularidades. Já deveria ter ocorrido a suspensão do contrato ou intervenção nessa empresa. Não houve consulta nos bairros, a população não participou. E a tarifa praticada em Ouro Preto é a que mais rouba o povo”.

Governo municipal

A atual gestão municipal agiu em diversas direções. De um lado, procurou o apoio do MPE com pedidos de investigação preliminares e recursos contra decisões desfavoráveis no âmbito local, nenhum com sucesso.

De outro, informa o coordenador do Procon e futuro secretário adjunto de Água e Esgoto, Narcísio Gonçalves, servidor efetivo desde 2009, “marcou de perto a concessionária, aplicando multas [que superaram a casa dos R$ 2 milhões], impedindo qualquer cobrança além da TBO até outubro passado [pelo não cumprimento das metas de hidrometração] ou notificando extrajudicialmente a Saneouro para adotar uma reestruturação tarifária mais compatível com a realidade econômico-financeira dos usuários”, e ainda “incluir na tarifa social setores mais amplos da comunidade, notadamente as famílias inscritas no Cadastro Único para programas sociais do governo federal [CadÚnico], o que pode beneficiar até 10 mil núcleos familiares”.

Frigir dos ovos

Com a via judicial “extremamente dificultada, para dizer o mínimo”, como observou Gonçalves, no que tem a concordância de Teixeira – “do ponto de vista jurídico é muito difícil desatar esse nó” –, o atual governo apostou na negociação.

O prefeito analisa o processo: “Felizmente, depois de um embate de dois anos e quatro meses, conseguimos uma repactuação com um quadro tarifário mais condizente com as condições socioeconômicas da nossa população. A empresa percebeu que com as tarifas acertadas com o governo anterior daria até guerra civil”.

Pelo acordo, além da tarifa social – que vai abarcar os cadastrados no CadÚnico – com valores bem abaixo das praticadas pela Copasa e inferiores até às do SAAE Itabirito, referência regional em termos de serviço público de saneamento, o desconto pactuado para a faixa residencial chegou a 28% para consumo de até 10 m3, beneficiando 52,8% da população.

Será implantada ainda a tarifa filantrópica para Santa Casa, Lar dos Idosos e outras instituições beneficentes.

Teixeira entende que a questão pode ser resolvida “com uma tarifa mais justa e qualidade”, mas aponta: “Três anos e não mudou nada, o período de adequação tá custando a passar”. Para ele, “já entrou na cabeça do povo que vai ter que pagar, mas a tarifa precisa caber no bolso. A maioria mora na periferia, é pobre. É preciso desmistificar a ideia de que Ouro Preto é só o cartão portal”.

O presidente da Famop também cobra efetividade da fiscalização: “Já trocou umas quatro vezes o gestor do contrato. Fizeram obra e não tinha um fiscal para ver qual cano estavam enterrando, a qualidade de água, nada. Tem que ter fiscalização efetiva, não só no saneamento. No transporte também, o relatório da empresa é o que vale. Falhou muito e continua falhando”.

Angelo Oswaldo garante: “Com a criação da Secretaria Adjunta de Água e Esgoto entramos em nova fase em termos de garantir a prestação de um serviço de qualidade a preços compatíveis com a realidade socioeconômica dos ouro-pretanos. Nosso objetivo é acompanhar de perto os serviços da concessionária para sempre resguardar o interesse público e os direitos dos cidadãos e cidadãs, na sede e nos distritos”.

Angelo diz ter “retemperado o ânimo de luta por perceber, na população, esse novo entendimento, antes uma tarifa justa do que uma aventura para tentar a remunicipalização a um custo insuportável para os cofres públicos, o que poderia nos levar a um atraso ainda maior”.

Flávio Andrade retoma o tema que foi sua dissertação de mestrado: “O controle social é uma prática relativamente nova no Brasil, tem menos de 40 anos. Uma pesquisa de 2020 em Ouro Preto mostrava que 64% das pessoas nem imaginavam o que é isso, 59% nunca tinham ouvido falar em Conselho Municipal e 78% nunca haviam participado de uma conferência municipal”.

Mas diz que “qualquer que seja o modelo” adotado para o saneamento no município, a ideia do “controle social já se afirmou, a sociedade está mais organizada”. E ironiza: “É preciso erguer uma estátua à Saneouro, porque ela despertou a prática da cidadania”.

Saneouro

Segundo Bruno Mendes, analista de planejamento da Saneouro, a empresa tem previsão de investimentos de R$ 161 milhões, sendo R$ 49,5 milhões na bacia do Rio das Velhas, abarcando parte da sede e os distritos de Cachoeira do Campo, Santo Antônio do Leite, Amarantina, Glaura e São Bartolomeu. Entre as intervenções, estão 30 km de substituição e implantação de redes, perfuração de seis poços profundos, como o de Vila Alegre, no distrito de Cachoeira do Campo, e Riacho, em Amarantina.

Além da ETE de São Bartolomeu, única em funcionamento, estão no planejamento a inauguração de novas estações em até quatro anos em Cachoeira do Campo, Santo Antônio do Leite, Amarantina e Glaura, além da Estação Produtora de Água de Reuso (Epar) Osso de Boi, na sede, uma ETE que contempla tratamento para reuso da água em combate a incêndios, limpeza urbana, combate a poeira e atividades rotineiras de operação da própria Epar.

Com isso, o percentual de tratamento de esgotos no município saltará dos atuais menos de 1% para mais de 50%.

A companhia prevê uma série de ações emergenciais, como a implantação de filtros no subdistrito de Chapada, no distrito de Lavras Novas, e em várias outras captações até abril do ano que vem.

Ao todo, são 144 ações voltadas a garantir a quantidade e a qualidade da água distribuída entre 32 sistemas de abastecimento, com destaque para a implantação do monitoramento online dos principais parâmetros de qualidade da água, substituição das redes de água e esgoto e plano de reforma e modernização de reservatórios e estruturas de captação.

CBH

O Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas não é de hoje apoia a cidade de Ouro Preto em seus esforços pelo saneamento. Ainda em 2013, financiou o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB), base para a prefeitura estruturar o sistema e captar recursos.

Atualmente, desenvolve o robusto Programa de Conservação e Produção de Água na sub-bacia do Rio Maracujá e, mais à frente, entrará em cena o Programa de Saneamento Rural na localidade de Engenho D’Água.

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