Sete anos após o desastre de Mariana, ninguém foi punido e crimes podem prescreverProjeto Manuelzão

Sete anos após o desastre de Mariana, ninguém foi punido e crimes podem prescrever

08/11/2022

Reportagem do Observatório da Mineração sobre o pior desastre ambiental da história do Brasil, de responsabilidade das mineradoras Samarco, Vale e BHP

[Especial de Pablo Pires Fernandes para o Observatório da Mineração, publicado nesta segunda-feira, 7 de novembro. As imagens são de Gustavo Ferreira / Jornalistas Livres.]

Sete anos após o pior desastre ambiental da história do Brasil, o rompimento da barragem da Vale, BHP e Samarco em Mariana, Minas Gerais, nenhum dos 26 acusados foi punido. Atualmente, 15 réus já foram considerados inocentes e restam apenas 11.

Ainda respondem pelos crimes a Samarco, Vale, BHP Billiton Brasil, a VogBR Recursos Hídricos e os empresários e administradores destas empresas.

No entanto, especialistas apontam que, diante da morosidade do processo, todos os acusados provavelmente ficarão livres de qualquer condenação no âmbito penal, restando às milhares de vítimas apenas a reparação na instância cível.

Os crimes ambientais, porém, devem prescrever no máximo até 2024 e muitos já prescreveram.

Entre os fatores que ajudaram a atrasar o andamento do processo, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, estão a complexidade do caso, o número de acusados e testemunhas arroladas, a interrupção das audiências durante a pandemia e os vários escritórios de advocacia que representam os réus, alguns entre os mais poderosos do país. Se sobressai, porém, a falta de estrutura do Judiciário e a inadequação da legislação brasileira para lidar com um crime de tal magnitude.

Com isso, no âmbito criminal, o caso tem grandes chances de ter como desfecho a impunidade por prescrição. Carlos Ferreira da Silva, procurador do Ministério Público Federal (MPF) e atual coordenador da força-tarefa sobre o caso, considera a situação “preocupante”.

“Apenas 14 testemunhas da ação penal foram ouvidas até o momento. A defesa pediu cerca de 90 testemunhas. Ainda temos dezenas de pessoas a serem ouvidas e estamos há tempos sem audiências mensais sobre essa ação penal. Estamos muito atrasados”, afirma.

A estimativa é que, ao serem retomadas as audiências, seriam necessários pelo menos mais 18 meses para que todas as testemunhas sejam ouvidas. Só assim a parte de instrução será finalizada.

Para um especialista em Direito Ambiental e ex-procurador, que não quis se identificar, o caso “é uma vergonha”. “O que está sendo feito é uma chicana”, diz, referindo-se ao termo que indica ações que têm como objetivo abusar de recursos para adiar o andamento do processo. “Nesse caso específico de Mariana, a documentação toda mostra que eles (os acusados) sabiam da situação. Então eles vão ficar empurrando o processo.”

Para o criminalista Hassan Souki, professor da Dom Helder Escola de Direito, de Belo Horizonte, chama a atenção “o período de tempo no processo em que absolutamente nada foi feito”. “A gente compreende que existe um excesso de processos sob responsabilidade do julgador, mas ficar tanto tempo sem movimentação nenhuma não é o ideal, não é algo aceitável.”

“Alguns crimes previstos na lei ambiental já prescreveram e corre o risco de haver a prescrição e não haver responsabilidade penal por nenhum fato, isso é um risco real”, afirma Souki.

O procurador do MPF, Carlos Ferreira da Silva, explica que preocupa o fato de que boa parte dos crimes ambientais tem prescrição máxima de oito anos e prescrição mínima em quatro anos.

“Muitos dos crimes ambientais já prescreveram ou, na melhor das hipóteses, prescreverão em novembro de 2024. Então, como ainda temos seis vezes mais testemunhas que não ouvimos até hoje, causa um perigo muito grande de que enquanto não terminamos a instrução criminal, todos os crimes ambientais já estejam prescritos.”

 15 acusados foram inocentados até agora

A denúncia penal foi apresentada em 16 de novembro de 2016. Dos 26 acusados inicialmente, 15 foram excluídos da ação penal por decisões judiciais e não irão mais responder por nenhum crime. Cinco desses réus obtiveram habeas corpus concedidos pelo TRF-1. Os outros 10 foram beneficiados pelas decisões de primeira instância. O MPF está recorrendo.

A peça inicial de denúncia do MPF incluía o crime de homicídio triplamente qualificado e lesões corporais, o que, segundo o Código Penal Brasileiro, é julgado por um tribunal do júri, por se tratar de crime contra a vida.

Em 2019, o Tribunal Regional Federal (TRF-1) considerou que o crime que deixou 19 mortos foi consequência de inundação e desabamentos causados pelo rompimento, ambos qualificados.

O advogado de defesa da BHP Billiton Brasil, empresa sócia da Vale na Samarco, Alberto Zacharias Toron, sustenta que o MPF apresentou uma denúncia inicial “absurdamente excessiva”.

“A denúncia, além dos crimes ambientais, articulava a ocorrência de 19 crimes de homicídios triplamente qualificados. Na verdade, a denúncia – certa ou errada, não vou entrar nesse mérito – descrevia um crime de inundação qualificada pelas mortes e não crimes de homicídio.” Toron relata que a decisão do TRF-1 foi unânime e que isso foi afastado da denúncia.

O advogado é um dos mais famosos criminalistas do Brasil, tendo acumulado a defesa de casos polêmicos ao longo da carreira, como as defesas de João de Deus, acusado de abusar sexualmente de centenas de mulheres e do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o “Lalau”, acusado de desviar centenas de milhões dos cofres públicos.

“Com essa decisão”, sustenta Toron, “o processo sofre uma reviravolta, porque a ordem foi concedida para apenas um réu, depois o TRF concede uma segunda ordem, e aí estende para todos os demais”. “Enquanto isso não ocorria, o processo ficou parado em primeira instância por conta de uma indefinição do rito a se seguir.”

Defesa “joga para a prescrição” e atuação do MPF é criticada

Como descreve Hassan Souki, o procedimento passou a ser tratado como ordinário, alterando a condução do processo. “Tem que ouvir a defesa e o Ministério Público novamente e isso atrasa o andamento”, diz. A decisão que exclui o crime de homicídio já transitou em julgado, portanto, não cabe recurso, inclusive para os que ainda restam no processo.

Para o especialista em direito ambiental que preferiu manter o anonimato, “houve uma desqualificação de homicídio doloso, o que é uma denúncia forte, mas a tradição do nosso direito seria colocar isso no culposo, que tem uma pena menor”, explica.

Mas destaca: “O que está acontecendo é que estão jogando para a prescrição”. Ele também critica o fato de o MPF ter arrolado mais de 100 testemunhas no caso. “O fato é público e notório, então, o MPF agiu mal porque ninguém vai ouvir 100 testemunhas, que vão, em sua maioria, dizer praticamente as mesmas coisas. Assim, o MPF cria uma dificuldade para si próprio”.

Toron, advogado da BHP, relata que, com isso, o juiz do caso em Ponte Nova “aproveitou e apreciou as defesas liminares, como manda a lei, e afastou um monte de gente do polo passivo da ação penal, ou seja, da condição de réus no processo”. “A ação, até que ficasse saneada, levou um tempo por conta desses erros e excessos processuais do MPF. Aí, o juiz retomou o processo”, afirmou Toron.

O MPF preferiu não comentar as críticas recebidas.

A reportagem solicitou insistentemente uma posição do juiz Jacques de Queiroz Ferreira, responsável pelo processo criminal em Ponte Nova, mas até o fechamento desta reportagem não obtivemos retorno.

Matheus Vellasco, advogado do escritório que representa os ex-executivos da Samarco à época do desastre Ricardo Vescovi (diretor-presidente) e Kleber Terra (diretor de Operações), afirma que segue com “total convicção da inocência de ambos”. A defesa entende que “não houve negligência nem dolo eventual”.

O advogado da VogBR, Leonardo Marinho Marques, empresa acusada de fornecer laudo adulterado sobre a segurança da barragem do Fundão, disse que “prefere não transferir esse debate para a imprensa” e que “os argumentos serão esclarecidos no final”.

A Vale disse que “reforça o compromisso com a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão”. A Samarco, em nota, afirmou que “sabe da complexidade das ações” e “segue firme no compromisso com as pessoas atingidas e o meio ambiente”.

De acordo com a Samarco, até o momento foram destinados mais de R$ 24 bilhões para a reparação, incluindo a indenização de mais de 402 mil pessoas. O “sistema indenizatório simplificado” foi duramente criticado por atingidos e pelo MPF, que pediu a suspeição do juiz responsável pelo caso a partir de matérias do Observatório da Mineração.

Em junho desse ano, a justiça revogou a obrigatoriedade de “quitação definitiva” que os adeptos do novo sistema precisavam assinar, garantiu a justiça gratuita e também obrigou a Fundação Renova a pagar os auxílios que haviam sido cortados.

Em julho, em uma reviravolta incomum, o Tribunal de Apelação em Londres finalmente aceitou que o caso de Mariana poderá ser julgado no Reino Unido. A mineradora anglo-australiana BHP, sócia da Vale na Samarco, é o alvo da ação que representa mais de 200 mil pessoas, dezenas de prefeituras e o povo indígena Krenak no Brasil.

Pandemia atrasou o processo, mas testemunhas poderiam ter sido ouvidas por vídeo

O segundo fator que levou à morosidade no andamento do processo foi a pandemia de Covid-19, que já matou quase 700 mil brasileiros.  Isso deixou a Vara Federal de Ponte Nova (MG), responsável pela instância criminal, em um impasse.

O juiz do caso, Jacques de Queiroz Ferreira, suspendeu as oitivas. O MPF, em contrapartida, quis dar celeridade ao processo e entrou com o pedido de correição parcial para retomar as audiências durante o período de pandemia com base na resolução nº 329 do Conselho Nacional de Justiça, de julho de 2020.

“Havia um entendimento que não se poderia fazer o andamento da instrução criminal pela necessidade de as oitivas serem presenciais. Mas mostramos que, até pelos outros processos em que a gente atua, era possível fazer as oitivas por videoconferência”, declara o procurador do MPF, Carlos Bruno.

O criminalista Hassan Souki argumenta que as audiências poderiam ter sido realizadas. “Fiz várias audiências na Justiça Federal de maneira online, ouvindo testemunhas e não houve nenhum problema. Daria para ouvir, sim”, relata.

O professor criminalista ainda questiona a decisão do juiz de se ater ao artigo 192 do Código Penal, de 1941, que determina que “as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados”. Para Souki, “com toda essa tecnologia, a gente não pode ficar aferrado a uma legislação da década de 1940”. “Isso não faz muito sentido”, conclui.

O procurador do MPF lembra que, mesmo com a questão da pandemia superada, “não vemos uma aceleração palpável da instrução criminal e realmente ainda estamos relativamente no começo”.

Apesar de não ter respondido aos pedidos de comentário da reportagem, o espaço continua aberto para o juiz do caso se manifestar.

Justiça brasileira não está preparada para a complexidade do caso

Mesmo com a tentativa do Ministério Público Federal em acelerar as audiências, o processo segue na primeira etapa de instrução. “Na nossa visão, queremos que o caso chegue o mais rápido possível a julgamento, todas as provas já foram entregues, e, do ponto de vista da acusação, é uma ação que já está madura para ir a julgamento. Evidentemente têm que ser ouvidas as testemunhas de defesa”, afirma o procurador Carlos Ferreira da Silva, que crê ser justificável que o juízo se dedique quase exclusivamente a essas oitivas “pela gravidade e pela importância do crime da Samarco, em Mariana”.

O professor e criminalista Hassan Souki aponta que os habeas corpus, a quantidade de réus e de testemunhas arroladas são fatores que dificultam a celeridade do processo. “Não se pode ser tão célere a ponto de atropelar o direito à ampla defesa aos acusados, mas não se pode ser tão moroso como está acontecendo, ao ponto de se passarem vários anos e ainda estar no começo da instrução probatória”, pontua.

Leonardo Marques, advogado da VogBR, destaca a complexidade do processo com tantos crimes, acusados e testemunhas, além de desdobramentos em tribunais superiores. “Um processo como este deve ser analisado e verificado de uma forma diferente, não é um processo comum”.

A excepcionalidade do caso, sua magnitude e repercussão são o que sustentam o argumento do procurador para reivindicar um tratamento especial e a devida prioridade para o caso. Para ele, “um dos problemas, tanto na área cível quanto penal, tanto no caso de Brumadinho como no de Mariana, é a falta de estrutura no nosso sistema judiciário para que essas ações tenham realmente prioridade, já que, infelizmente, são ações muito graves, que têm muito reflexo sobre a sociedade”.

Por se tratar do maior crime ambiental ocorrido no país, Souki alerta para as consequências da impunidade. “É algo que o Estado, através do Ministério Público ou do Judiciário, não pode deixar acontecer e cair em prescrição. Isso vai levar a uma sensação de que nada acontece muito grande. Principalmente para as centenas de pessoas afetadas e pessoas que perderam familiares, a falta de punição vai trazer uma repercussão muito ruim.”

O procurador destaca o fato de que a maioria dos crimes ambientais prescreve em, no máximo, oito anos – alguns com 12, considerando a pena máxima, o que é raro de ser aplicada no Brasil. Como ele estima que as audiências das testemunhas levem cerca de 18 meses, a possibilidade de prescrição é grande. Para Toron, advogado criminalista da BHP, esta estimativa é exagerada. “Em três ou quatro meses é possível ouvir todas as testemunhas”, diz.

“Se não houver maior celeridade, no que diz respeito à prática dos atos processuais, a prescrição vai ocorrer. Isso é evidente a meu ver”, analisa Souki.

Legislação evoluiu pouco desde o desastre

O processo criminal do caso Samarco em Mariana evidencia como a estrutura judicial brasileira tem dificuldades para lidar com casos complexos e de grandes dimensões.

“Do ponto de vista processual no Brasil, seja por meio de lei, seja por meio de resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não houve realmente uma preocupação de trabalhar essas grandes tragédias, essas ações civis-públicas supercomplexas, que envolvem centenas de milhares de indivíduos e, no caso do Rio Doce, milhões de indivíduos. Não houve avanços significativos e substanciais no sentido de favorecer o julgamento cível e penal dessas megademandas”, afirma o procurador Ferreira da Silva, da força-tarefa que acompanha o caso.

Ele admite a dificuldade de se resolver o desafio imposto e obter avanços legais: “Não tenho dúvida de que não houve a visibilidade, especialmente no Congresso Nacional, para que se criasse uma legislação própria que permitisse o julgamento mais rápido dessas causas. E a consequência está aí a olhos vistos.”

O advogado de Direito Ambiental, que preferiu não se identificar na reportagem, explica que na época da criação da lei de crimes ambientais, em 1998, “a ideia era de que não se podia ter crimes muito pesados porque os juízes não aplicariam a lei”. “A maioria dos crimes ambientais tem uma pena muito pequena, porque estão sujeitos ao juizado especial criminal, que julga crimes de pequeno potencial ofensivo. E, no caso de Mariana, as ações penais vão prescrever”.

O especialista explica que existe uma discussão sobre a criação de uma nova tipificação penal para lidar com crimes ambientais de grande impacto: o crime de ecocídio. O projeto de lei (PL), aguardando apreciação do Senado Federal desde 2019, especifica: “Altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), para tipificar o crime de ecocídio e a conduta delitiva do responsável por desastre relativo a rompimento de barragem, e dá outras providências”.

A legislação sobre barragens é citada pelo especialista como o único avanço concreto no campo legislativo, mas faz uma importante ressalva. “A legislação de barragens se tornou mais rígida e proibiu a construção de barragens a montante. Então, agora só se pode construir barragens a seco. A Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha dado um prazo de três anos para se cumprir a lei e descomissionar as barragens a montante. Mas o estado de Minas Gerais fez um acordo com as mineradoras e transferiu o prazo de três para 25 anos. Então, na prática, o estado de MG rompeu com essa legislação.”

Hassan Souki afirma que “é necessário que haja uma reflexão, um avanço e maior controle por parte do poder público a respeito da atividade de mineração”. Para o professor, “é preciso ter uma maior regulamentação na fiscalização e maior empenho e frequência na fiscalização”.

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